Excertos deste estudo publicado pelas Edições Loyola
Para uma exposição mais detalhada do ser do homem , devemos nos voltar agora às Preleções Privadas de Stuttgart de 1810. Esse texto nos oferece a descrição mais completa da antropologia schellinguiana. Em nenhum outro lugar, com exceção de dois pequenos textos - um deles o fragmento intitulado Esquema Psicológico, datado de 1837/38, e o outro uma carta endereçada a Maximilian II e escrita no ano de 1854 -, Schelling se ocupará desse tema de modo tão intensivo. Mais importante ainda: o esquema tricotômico [1] desenvolvido aqui pela primeira vez não sofrerá nenhuma mudança significativa até seus últimos textos. De modo que nos ocuparemos, a seguir, com o próprio núcleo conceituai da antropologia schellinguiana [2].
Schelling considera o homem um ser histórico: o ser do homem não constitui para ele nenhum estado estático, expressando, porém, um estado essencialmente din âmico. Resumindo isso em uma fórmula: ser homem (.Mensch-sein) não significa nada mais que tornar-se homem (Mensch-werden). Originariamente, o homem foi criado a fim de ser o vínculo (Rand) entre Deus e a Natureza. Este "Homem primordial" (por nós aqui denominado A° do ser-do-homem) "cai", todavia, no fluxo da história e reveste-se, então, na sucessão dos tempos, de distintas formas. Assim como a Divindade transpôs-se no tempo com o intuito de, ao se reconhecer em diferentes Pessoas, alcançar sua mais sublime perfeição, da mesma forma ocorre com o homem. Ele abandona seu estado primordial por meio de um ato livre - assim como a Divindade - e peregrina por meio de diversos estados até atingir sua completude. Em cada uma dessas fases o homem possui - como Deus - uma personalidade integral, ou seja, uma personalidade na qual as três potências estão atuantes. O primeiro estado depois da Queda é o mundano, no qual o homem (A1 do ser-do-homem) está sob a força do Real. Após a morte, o homem como um todo (A2 do ser-do-homem) estará sob o domínio do Ideal e, só depois disso, o homem alcançará sua forma perfeita (A3 do ser-do-homem) sob o predomínio da "Indiferença Absoluta". Todavia, isso ocorrerá, segundo Schelling, somente na Ressurreição, ou seja, quando Deus for efetivamente tudo em tudo.
É importante observar que agora Schelling não pensa mais a alma enquanto separada do corpo, como havia feito em sua obra inicial. Por meio dessa separação o corpo era associado com o próprio mal, ou seja, com aquilo que deveria ser transcendido para se poder atingir a bem-aventurança . Nesta fase, porém, o corpo não é mais per se o mal. Por isso, ele não tem mais de ser transcendido e está presente , em diferentes potências, exatamente como as outras instâncias do homem estão presentes em todos os estados do ser-do-homem - ou seja, A1, A2 e A3 do ser-do-homem - aqui mencionados. A seguir, investigaremos minuciosamente a situação do homem neste mundo, isto é, o A1 do ser-do-homem [3]. Schelling reconhece no homem três instâncias principais que são: Gemüt (A1), espírito (Geist) (A2) e alma (Seele) (A3). O modelo se complica quando ele afirma que nas duas primeiras potências, ou seja, no Gemüt e no espírito, deveríamos discernir, por sua vez, outras três potências. O Gemüt (A1) é o princípio obscuro no homem; tudo o que ocorre neste nível permanece oculto para o homem. No Gemüt Schelling identifica três elementos : a nostalgia (Sehnsucht) (A1 do Gemüt), que produz a simpatia entre o homem e a natureza; o desejo (Begiercle) (A3 do Gemüt), caracterizado como "uma fome pelo ser", e, por fim, o sentimento (Gefühl) (A2 do Gemüt), que, apesar de sua importante posição dentro do Gemüt, ainda assim permanece em uma esfera inconsciente e é, por isso mesmo, inadequado para fundamentar a ciência, dado que ele só pode estabelecer um "relacionamento obscuro" com o mundo externo. A segunda instância é o espírito (A2), que representa "o pessoal (Persõnliche) no homem", ou seja, é por meio do espírito que o reino da consciência será determinado no homem. A essência do espírito, diz Schelling, é a busca pelo ser. Por isso ele foi representado como desejo na primeira potência (i. é, no Gemüt), já que o desejo representa exemplarmente esse processo cego e inconsciente de busca. Aqui, todavia, em seu próprio nível (no nível do próprio espírito), ele será compreendido como "desejo consciente", ou seja, como vontade (Wille) (A3 do espírito). A vontade possui dois lados: de um lado ela se relaciona à individualidade humana e será consequentemente denominada "vontade própria" (Eigenwille) ou "egoísmo" (Egoismus) (A1 do espírito), e do outro relaciona-se com o lado Ideal, isto é, com o geral, e será, então, denominada entendimento (Verstand) (A2 do espírito). Um indício de que o espírito não representa a instância mais elevada do homem reside no fato de que o espírito pode adoecer, enlouquecer, pecar e agir mal. Na opinião de Schelling, todas essas características do espírito humano são uma expressão do não-ser ou, dito mais precisamente, uma expressão da ausência de uma instância superior. Essa instância superior é a alma (A3 ), que Schelling caracteriza como "o especificamente divino no homem" [4]. Ela é o "impessoal (Unpersönliche)" e opõe-se ao espírito que representa o "pessoal (Persönliche)". A alma é a própria ciência, enquanto o espírito é apenas a possibilidade de conhecer; ela é o próprio bem, enquanto o espírito expressa apenas a possibilidade de ser bom. Em uma palavra: a alma é o ser (Seyende) que deve subjugar o não-ser (Nichtseyende) do espírito humano. Schelling concebe o homem como uma unidade dinâmica dessas três potências (Gemüt, espírito e alma), como podemos depreender com clareza de uma passagem do seu texto Clara: "O espírito passa através da alma para o corpo, o corpo, todavia, é elevado por meio da alma até o espírito; a alma relaciona-se com o espírito apenas quando há um corpo, ao mesmo tempo relaciona-se com o corpo apenas quando o espírito se encontra presente, pois, caso um dos dois se ausente, ela não poderia existir como unidade, ou seja, como alma. A totalidade do homem representa, portanto, um tipo de circuito (Umlauf) no qual sempre uma parte adere à outra, nenhuma pode deixar a outra, uma exige a outra" (Sch., SW, 1/9, 46). Entre as instâncias constituintes do homem, ou seja, desde o Gemüt até a alma, deve subsistir uma relação contínua e esta tem de ocorrer sob a direção da alma, dado ser ela que estabelece a "relação com Deus", sem a qual o homem, que é apenas uma criatura, não poderia existir. A saúde do Gemüt e do espírito depende totalmente dessa relação constante com a alma e do papel diretivo por ela desempenhado. Caso esse contato seja interrompido, aparecer ão alguns distúrbios. Esses poderão ser distúrbios do Gemüt ou do espírito, mas jamais serão distúrbios da alma, dado ser ela o próprio bem. Quando a ligação entre a nostalgia (A1 do Gemüt) e o sentimento (A2 do Gemüt) é interrompida, o indivíduo padecerá de melancolia. Caso a interrupção se dê, entretanto, entre o Gemüt (A1) e o entendimento (A2 do espírito), então a consequência será a idiotice (Blödsinn). Por fim, o mais terrível desses distúrbios, a loucura (Wahnsinn), surge quando o direcionamento do entendimento pela alma fracassa. Schelling não vê, na verdade, nenhuma separação rígida entre loucura, entendimento e entusiasmo , antes uma semelhança . O entendimento é apenas a "loucura regrada"; dito de outro modo, o incognoscivo é o fundamento do entendimento, ou seja, este incognoscivo deve estar presente apenas qua potentia. Caso ele tente se atualizar, surge, então, a loucura. Mas se esse "fundamento" incognoscível for conduzido pela alma, então aparecerá o entusiasmo, que nada mais é que a "loucura divina". Com isso Schelling explicita a fragilidade e vulnerabilidade da saúde humana. Porém, ao falar da saúde do homem, Schelling fala, na verdade, da liberdade humana, pois a expressão par excellence da saúde humana é a liberdade do homem. Nesta a vontade humana tem não só de alcançar um ponto de indiferença entre o egoísmo (A1 do espírito) e o entendimento (A2 do espírito) mas também estabelecer um equilíbrio hierárquico entre o Gemüt (A1) e a alma (A3), ou seja, a vontade tem de se situar, por um lado, acima do Gemüt e, por outro, sob a alma. Dessa unidade dinâmica do homem dependem suas boas ações. Suas más ações são, ao contrário, a expressão da destruição dessa unidade. A alma, dado ser ela apenas uma relação e não uma substância, não pode conter outros elementos em seu interior, como acontece no caso do Gemüt e do espírito, ambos subdivididos, a sua vez, em três elementos constitutivos. Ela se relaciona, todavia, de modo diverso com as outras instâncias que lhe são subalternas. Assim, caso a alma se relacione com o real do Gemüt e do espírito, isto é, com a nostalgia (A1 do Gemüt) e com a vontade própria (A1 do espírito), surge, então, a arte. A filosofia será produzida, ao contrário, quando a alma se relacionar com o aspecto ideal do Gemüt e do espírito, ou seja, com o sentimento (A2 do Gemüt) e com o entendimento (A2 do espírito). Por fim, a virtude é originada pela relação da alma com o ponto de indiferença do Gemüt e do espírito, ou seja, pela relação do desejo (A3 do desejo) com a vontade (A3 do espírito). A alma ainda pode atuar, entretanto, de modo incondicionado; em outras palavras, ela pode atuar sem estabelecer nenhuma relação com as outras instâncias. A consequência desta atuação é a religião que, embora similar, não deve ser confundida com a arte, com a filosofia ou com a ética. A alma é, em essência, o próprio amor divino e, por isso, toma parte na totalidade da produção cultural do homem, a saber, na arte, na filosofia e na religião.
O segundo estado do homem (A2 do ser-do-homem) inicia-se apenas depois de sua morte, e Schelling compreende este estado como sendo uma mera "intensificação do espírito". Aqui ainda permanecem presentes as três instâncias do homem, mas elas são "essencializadas (essentifizirt)", ou seja, por meio da morte separa-se do homem tudo aquilo que não lhe era essencial e o que permanece é "uma essência sumamente efetiva (ein höchstwirkliches Wesen)", que é para Schelling, na verdade, muito mais efetiva do que a condição do homem neste mundo. Neste estado todas as três potências do homem - Gemüt, espírito e alma - apresentam-se submetidas ao ideal (A2) e, por isso mesmo, o homem é compreendido aqui como sendo um espírito.
Sobre o terceiro estado do homem (A3 do ser-do-homem), Schelling expressa-se muito cautelosamente. Ele diz apenas que todas as instâncias constitutivas do homem devem ser observadas neste nível sob a perspectiva do ponto de indiferença (A3) entre o mundo da natureza e o mundo dos espíritos. A alma não deve mais ser representada como "o divino no homem", mas como "o humano no homem", pois agora se realizou "a completa encarnação de Deus" e, por conseguinte, não se pode diferenciar mais entre o homem e Deus. Deus, agora, é efetivamente tudo em tudo.
O mais rico nesses escritos da fase intermediária, como já dissemos na introdução, consiste em certa indecisão de Schelling em escolher um modelo filosófico definitivo. Ele experimenta frequentemente novas soluções, como as diversas versões do texto Idades do Mundo podem comprovar. Nesta fase, podemos seguir claramente as mudanças em sua filosofia, e no âmbito de suas concepções antropológicas isso é bastante evidente. O topos do homem como microcosmos permanece durante todo este período ativo, contudo ele é expandido, como já foi mostrado, pelo uso das categorias da vida e da pessoa. Por outro lado, as concepções teológicas da última fase já se prenunciam aqui, embora ainda não estejam completamente livres de ambiguidades indesejadas, o que só ocorrerá em sua filosofia tardia. A seguir, tentaremos comprovar com alguns exemplos o que dissemos. Em primeiro lugar, voltemo-nos para a problemática do microcosmos.
Nas Preleções Privadas de Stuttgart de 1810, Schelling caracteriza o homem, assim como já o havia feito anteriormente, como a "coroa da criação". O homem é a representação do ponto de indiferença entre o Real - representado pelo reino vegetal - e o Ideal - representado pelo reino animal . O corpo humano é "o mundo em miniatura, microcosmos" (Sch., SW, 1/7, 455.457). Também no texto Clara (1809-12), Schelling refere-se expressamente a esse topos e limita essa analogia , novamente, ao corpo humano: "Quem não conhece a vida da natureza em sua grandeza e totalidade", diz ele, "não apreende sua linguagem no indivíduo e nas pequenas coisas (Kleinen), não sabe até que ponto é verdade que o corpo humano é uma pequena natureza inerente à grande Natureza e que aquela possui muitas analogias com esta" (Sch., SW, 1/9, 27). Já em As Idades do Mundo, Schelling modifica esse topos. O processo analógico permanece, mas as analogias estabelecidas são totalmente diferentes. Agora é a temporalidade do homem ou seu caráter passional como pessoa que são comparados a Deus [5]. Explica-se, assim, que Schelling aqui não mais compare o homem com a Natureza ou com o Cosmos, mas sim com Deus e com a Divindade. Neste momento, portanto, seria mais adequado definir o homem como um mikrotheos (termo que Schelling não emprega, mas que será utilizado posteriormente por F. von Baader [6]), em vez de descrevê-lo como mero microcosmos. Nós nos encontramos em As Idades do Mundo no âmbito das estruturas teosóficas do pensamento de Schelling [7]; apesar disso, contudo, ele não se refere expressamente aqui a J. Boehme ou a F. Chr. Oetinger , mas, curiosamente, à tradição hipocrática a fim de fundamentar sua doutrina analógica: "Tudo o que é divino é humano, segundo Hipocrátes, e tudo o que é humano é divino. Podemos esperar, portanto, que estaremos nos aproximando da verdade, ao considerar tudo humano" [8]. Schelling utiliza nesta fase de sua filosofia até mesmo o tradicional teologúmeno da semelhança do homem com Deus, que caracterizará suas reflexões antropológicas tardias, sem, contudo, submetê-lo aos ditames de uma rigorosa argumentação teológica, o que ocorrerá apenas na última etapa de seu pensamento [9].
O que Schelling reivindica nesta fase é expresso com toda a clareza na seguinte afirmação: "Ou em nenhum lugar o antropomorfismo e, por conseguinte, também, nenhuma representação de um Deus pessoal que atue com consciência e intenção (o que já o faz plenamente humano), ou um antropomorfismo ilimitado, uma Encarnação geral e (com a única exceção do Ser necessário) total de Deus" [10]. É interessante constatar que agora a Encarnação de Deus é ressaltada, enquanto nos escritos iniciais de Schelling o acento recaía na deificação do homem [11]. Comprova-se com isso que a idéia central da antropologia schellinguiana, ou seja, a idéia de uma analogia entre o homem e Deus, permanece a mesma. A diferença consiste apenas em que Schelling concebe, agora, os dois elementos dessa relação - o homem e Deus - de modo totalmente diverso. Anteriormente ele falava de um Deus concebido como a Suma Indiferença. A identidade com esse Deus não podia, então, ser alcançada discursivamente, mas apenas intuitivamente por meio da "intuição intelectual"; em outras palavras, o Homem possuía somente um conhecimento imediato do Absoluto. Agora, porém, essa inexplicada passagem do Absoluto à dimensão finita é como que transposta por si mesma; mais precisamente, ela é transposta na medida em que essa própria passagem é concebida como um processo lógico, isto é, como a dialética. Schelling define esta como sendo nada mais que as etapas efetivas do des-envolvi-mento de Deus (explicatio Dei ), cujos vestígios permanecem ocultos nas profundezas mais recônditas da alma humana e podem ser trazidos à luz apenas e tão-somente pelo entendimento. Nos textos de sua fase inicial, a "intuição intelectual" era suficiente para esse fim, agora, contudo, esse tipo de conhecimento imediato necessita de uma outra instância, o entendimento, cuja finalidade é a de articular a imediatidade da primeira forma de conhecimento. Schelling tenta expressar por meio do conceito de "Co-ciência da Criação" a estreita relação existente entre essas duas modalidades de conhecimento.