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TÚNICAS DE CEGO

Nothomb (TC:64-67) – o conceber bíblico do "humano"

OS GRAUS DA LIBERDADE

segunda-feira 24 de outubro de 2022, por Cardoso de Castro

      

Os dois   textos começam praticamente pela mesma fórmula, que parece anunciar um mesmo propósito. “E Deus   Criou o Homem  ” no relato dos Seis dias, “e YHWH   Deus concebeu o Homem” no relato do Jardim   do Éden.

      

Procedamos agora como as inscrições bilíngues, tal a pedra   da Roseta que permitiu a Champollion decifrar da língua desconhecida as palavras que têm uma chance de se corresponder. Como se trata aqui de uma mesma língua que se exprime em duas linguagens diferentes, é mais fácil, enquanto encontra-se nos dois   textos duas palavras, uma idêntica e a um regime idêntico, o Homem   e outra YHWH   a quem o “compilador final” aditou “Deus  ” para identificá-lo. (o “Eterno” no quadro a seguir).

Ao ‘LHYM (pronunciado “elohim  ”) de Gen 1,27 faz eco YHAWH’LHYM de Gen 2,6, mas sobretudo H’DM (pronunciado “haadam  ”) é precedido em Gen 1,27 como em Gen 2,6 da marca   do “regime direto” ‘T (pronunciado “ett”) que o designa como o complemento do objeto do verbo do qual ‘LHYM (ou sua variante YHAWH’LHYM) é sujeito  .

Os dois textos começam praticamente pela mesma fórmula, que parece anunciar um mesmo propósito. “E Deus Criou o Homem” no relato dos Seis dias, “e YHWH Deus concebeu o Homem” no relato do Jardim   do Éden.

Mas depois deste início concordante, os dois textos na versão tradicional de nossas bíblias, não têm em aparência nada mais em comum. Senão que se compõem cada um de três frases, enumerando as três fase da operação descrita de uma parte a outra, em uma ordem   que parece à primeira vista diametralmente oposta.

Assim na bíblia de Segond:
1) Deus criou o homem a sua imagem 1) O Eterno Deus formou o homem do pó da terra  
2) o criou à imagem de Deus 2) soprou em suas narinas um sopro de vida
3) criou o homem e a mulher. 3) e o homem se tornou um ser vivo.
(Gen 1,27) (relato dos Seis dias) (Gen 2,7) (relato dito do “Jardim do Éden”)

No relato dos Seis dias a Criação se efetua “do alto para baixo”. O Homem é então, por duas vezes, Criado “a imagem de Deus”. E somente na última fase “Criado macho e fêmea” (e não “o homem e a mulher, como diz Segond). Enquanto que no relato do Jardim do Éden a progressão tem ar ascendente, o Homem, uma espécie de “golem” esculpido em efígie com “o pó da terra” antes de ser animado de um “sopro de vida” e de se tornar um ser vivo.

Este esquema invertido, hoje em dia implicitamente aceito por todos, procede sem dúvida da tese dualista que tende a creditar. Haveria de um lado o ser   espiritual, e do outro o ser material. O relato dos Seis dias falaria da Criação do primeiro, o relato do Jardim do Éden da “formação” do segundo. Mas esta divisão “grega” é todavia estranha à Bíblia das Origens e por conseguinte à Bíblia onde não é jamais questão da “alma  ” separada do “corpo”.

Ora esta tese não é somente anti-bíblica, é intelectualmente desonesta, pois repousa em nossas bíblias sobre um erro   de tradução deliberado para as necessidades da causa  , e que inventa o conceito de “ser vivente  ” ou de “alma vivente  ” englobando o Homem, enquanto em hebreu   e na Bíblia das Origens a expressão designa exclusivamente os animais.

Atestada na Bíblia das Origens em Gen 1,20, Gen 1,21, Gen 1,24 e Gen 1,30; Gen 2,7 e Gen 2,19 a expressão NP  (SH)HYH (pronunciada “nefesh” é de fato um sinônimo de HYH (pronunciado “haya”) que quer dizer animal, ou os animais em geral, e é assim a princípio que nossas bíblias a traduzem, salvo como por acaso no caso da “formação” do Homem em Gen 2,7 onde elas a traduzem por “ser vivente” ou “alma vivente”.

E desde que se corrija este erro   de tradução flagrante percebe-se que a última frase ou pelo menos do versículo do relato do Jardim do Éden consagrado à concepção do Homem remete à última frase do versículo do relato dos Seis dias relatando a Criação do Homem.

Uma, que se deve traduzir “e o Homem se tornou um animal” (e não “uma alma vivente” ou “um ser vivente” como em nossas bíblias) evoca com efeito como o outro “macho e fêmea os Criou” o que se pode denominar, sem qualquer nuance pejorativo nem desvalorizante a princípio, a animalidade do Homem, e a situa no mesmo nível existencial e descritivo — o último — da natureza do Homem, segundo sua Criação ou sua concepção.

Decorre que sua primeira fase começando pela mesma fórmula e sua última evocando o mesmo aspecto do Homem, as três fases que compõem uma e outra sequência enumeram na mesma ordem as três fases de sua Criação e de sua concepção, e não na ordem oposta, ver incompatível, que sugerem nossas bíblias.

Podemos logo compará-las em justapondo-as, frase por frase, fase por fase, em sua sucessão textual, e tentar encontrar, partindo do sentido conhecido (claro, muito claro!) do relato dos Seis dias, o sentido desconhecido  , que se tornou obscuro, do relato do Jardim do Éden, sabendo que é o mesmo.

E se não parece de todo o ser para as duas primeiras fases em nossas bíblias, é que a tradução, aí também, não é boa. Ela fala do Homem “formado do pó da terra” como uma massa   inerte na qual Deus insufla em seguida, para animá-la, um “sopro de vida”. Em outros termos, o Homem é então menos que uma besta antes de se tornar um espírito, depois uma “alma” no famoso esquema ascendente que se desaba com a significação de seu pretendido “topo” que não quer dizer “alma vivente” mas propriamente “animal”.


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