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Religion after Religion

Wasserstrom – Eliade, sobre a Serafita de Balzac

terça-feira 23 de agosto de 2022, por Cardoso de Castro

      

Excertos da tradução em português de Dimas David   Santos Silva, do livro de Steven Wasserstrom  , Religion after Religion

      

Séraphita, a novela mística de Honoré de Balzac  , foi uma grande preocupação de Eliade  , uma obra que ele gostava muito de abordar em muitas conferências. Em 1947, por exemplo, ele descreveu um intenso interesse   em Balzac, dedicando ao mesmo um estudo (que aparentemente se perdeu), ao mesmo tempo em que estava planejando escrever   um livro sobre essa obra. Ele manteve estes temas maiores em mente   através dos anos. Em seu ensaio de 1974, ‘O oculto e o mundo moderno’, Eliade afirmou que, em Séraphita, ‘os temas ocultos e a ideologia refletiam a esperança em uma renovatio pessoal ou coletiva — uma recuperação mística da dignidade   e dos poderes originais do homem  ; em suma, as criações literárias refletiam e ampliavam as concepções dos teosofistas dos séculos dezessete e dezoito e de suas fontes.’

Entretanto, foi no ensaio Mefistófeles e o andrógino que ele deixou claro seu interesse teosófico em Séraphita, plena e explicitamente (mesmo com toda a devida reserva esotérica). Este ensaio trouxe consigo a maior parte dos temas principais abordados por Eliade em meados de sua carreira, e ele fez isto de uma maneira em que se dava muito bem. Falou de figuras culturais europeias muito conhecidas, neste caso Goethe   e Balzac, mas de uma forma que trazia uma luz absolutamente nova e quase chocante em seus textos. Mais especificamente, puxou o tapete histórico deles em uma demonstração de erudição destinada a reposicionar a ficção criada por eles no contexto de mito   pré-histórico. Assim concluiu ele:

Goethe e Balzac acreditavam na unidade   da literatura europeia e consideravam suas próprias obras como parte dessa literatura. Eles teriam ficado ainda mais orgulhosos do que já eram se tivessem compreendido que esta literatura europeia retrocedia até antes da história da Grécia e do Mediterrâneo, até mesmo antes do antigo Oriente Próximo e da Ásia; que os mitos chamados a vida em Fausto e em Séraphita vêm até nós de uma grande distância no espaço e no tempo, vêm a nós da própria pré-história.

Não é por acaso, penso eu, que ambos neste ensaio, e Eliade em seu texto de 1974 ‘O oculto e o mundo moderno’ falaram de Fausto e de Séraphita na mesma medida. De fato, o título anuncia essa intenção, que explicitamente caracteriza o ensaio em seu começo e em seu fim.

Eliade fez seu comentário sobre Séraphita, chamando esta obra de ‘a mais fascinante das novelas fantásticas de Balzac’. Foi este o caso, disse Eliade, não por causa   das teorias de Swedenborg das quais o texto está imbuído, mas porque Balzac conseguiu ali apresentar com força sem paralelo um tema fundamental da antropologia arcaica: o andrógino como o homem perfeito  ’. Esta noção do andrógino como homem perfeito foi repetida quase textualmente por Eliade no final de sua vida, em seu verbete sobre ‘o andrógino’ para a Enciclopédia da Religião, que ele próprio editou. Em outras palavras, Eliade, diante deste conceito e durante toda a sua longa carreira, celebrou um tipo ideal, o homem andrógino. Séraphita, na apresentação de Eliade, é exatamente esta criatura: durante todas as suas discussões, Eliade se refere a Séraphita como ‘ele’. Eliade insistia que Séraphita não é um anjo   mas, pelo contrário, é ‘um homem perfeito, um ser completo’. Séraphita era uma das obras preferidas de Eliade visto que, como o título original em romeno de seu estudo sobre a androginia sugere, ele estava basicamente preocupado com aquilo que chamava de ‘o mito da reintegração’. ‘Reintegração’ era um termo técnico tirado da ciência oculta da alquimia   e das sociedades secretas do Iluminismo. Em Yoga  , por exemplo, ele falou da ‘reintegração do andrógino primordial, da conjunção, em um único ser, do macho e da fêmea — em resumo, da reconquista da plenitude   que precede toda a criação’. Em outro ponto ele incentivou um movimento   para ‘acelerar a reintegração do estado   pré-cosmogônico, ou seja, o ‘fim do mundo’ e, por outro lado, a aproximação de Deus   através de uma ‘espermatização progressiva’.17

Os comentários de Henry Corbin   sobre Séraphita surgiram pela primeira vez em sua palestra de 1965 em Eranos, ‘A configuração do templo   da Ka’bah como o segredo da vida espiritual’. Ele abriu seu longo discurso com um contraste entre duas interpretações de Balzac que tinha lido no ano anterior  . Em uma segunda leitura de Séraphita, Corbin usou ‘Seraphitus-Séraphita’ para epitomizar a androginia do anjo. Depois de evocar a leitura de Swedenborg por Balzac, Corbin explicou a importância destes anjos recém-descobertos sobre a imaginação   de Balzac:

Assim nasceu a idéia de um livro que viria a se tornar a obra-prima mística de Balzac, a idéia de Séraphitus-Séraphita, um único anjo, mas um ser dual, masculino   e feminino, nascendo da união   de amante e da amada; liberando um no outro ‘a criatura angélica aprisionada no corpo físico’, este anjo é a duplicidade do amor deles. Daí veio o livro que teve o título definitivo de Séraphita, em que ressoa intensamente uma homenagem a Swedenborg e sua doutrina  .

Embora Séraphita não seja exatamente uma obra obscura, pode não ser   óbvio para leitores não iniciados por que foi que a suposta tendência de Balzac às doutrinas de Swedenborg, do ponto de vista comum de Eliade e Corbin, foi mostrada como sendo inusitadamente importante. Em outra passagem, Corbin esclareceu este ponto em sua exposição do andrógino de Swedenborg. De fato, este foi um dos mais sucintos resumos da teoria   esotérica da androginia:

O feminino no ser humano, ou o feminino interno do homem é, portanto, do próprio homem, um ‘self’ transparente para o Princípio que vivifica, pois como um ser celestial, o homem, criado na manhã do sétimo dia, é Homo, masculino e feminino (mas femineus, disse o alquimista), isto é, sua constituição espiritual era andrógina.

As associações feitas por Eliade e Corbin com as sociedades secretas do Iluminismo e do Martinismo não podem ser irrelevantes para entender tanto interesse no andrógino. Em um livro não publicado sobre o andrógino, o cineasta russo Sergei Eisenstein identificou dimensões psicológicas e históricas do andrógino, mas com uma importante diferença  . De acordo com um estudo feito por V. V. Ivanow, Eisenstein descobriu em Balzac e em Swedenborg ‘uma combinação de dois   temas primevos aparentemente opostos   (arquétipos) — Übermenschlichkeit e a indivisibilidade   e a não diferenciação manifestada na tendência de Balzac em retratar sociedades secretas’. Parece, igualmente, que a popularidade de Séraphita com Corbin e Eliade pode estar relacionada a ensinamentos esotéricos conhecidos por eles de alguma forma.


Ver online : Steven Wasserstrom


Excertos de Serafita (retirados da versão em espanhol do livro de Robert Amadou, « Anthologie litteraire de l’occultisme»):