“Agrapha ”
O interesse por encontrar ditos ou feitos de Jesus não consignados nos quatro evangelhos canônicos emerge com diversos graus de intensidade logo nos primeiros séculos do cristianismo. De fato, já constatava São João no final de seu Evangelho que se fosse tentar recolher tudo o que fez Jesus ao longo de sua vida, os livros para realizar isso “não caberiam no mundo todo” . A este interesse primigênio responde também a literatura apócrifa em geral, se bem que aqui a fabulação e a defesa de determinadas correntes ideológicas tem mais peso que a busca desinteressada da mensagem desconhecida de Jesus.
É a partir do século XVII quando se cunham os termos de “logia” (= ditos) e “agrapha” (= não escritos), referindo-se ao conjunto de palavras de Jesus que se podem encontrar dispersas em diversas fontes antigas, alheias aos quatro evangelhos. Ainda que ambas expressões sejam complementares, é comum empregar a palavra “logia” para referir-se aos ditos extra-canônicos de Jesus que foram se encontrando em diversos fragmentos de papiros de grande antiguidade — como os já resenhados de Oxyrhynchus, Fayum, Egerton, etc. — , enquanto que “agrapha” tem uma significação mais ampla, que compreende muitas outras fontes da tradição.
Sobre o interesse que despertou este tema no mundo científico pode o leitor fazer uma ideia consultando a ampla bibliografia que incluímos na edição bilíngue desta obra. As discrepâncias na definição geral e avaliação concreta de cada um de seus componentes saltam também à vista, tendo em conta que do material imenso de “agrapha” que recolheu A. Resch em 1889, não são muito mais de meia dúzia dos que a juízo de Hofius em 1990 oferecem alguma garantia de autenticidade (vide bibliografia).
Com toda a importância que possa ter esta questão da “autenticidade” , cremos que em uma coleção de “apócrifos” como a presente não deve faltar uma relação representativa dos “ditos” que se atribuíram a Jesus durante os primeiros séculos, ainda que em muitos casos sua autenticidade seja duvidosa ou dificilmente verificável.
Excluímos desta separata, por razões óbvias, os “agrapha-logia” já contidos em outros capítulos desta obra, por exemplo, evangelhos apócrifos, fragmentos de papiros, etc. Descartamos também — por sua insignificância — os que podem encontrar em fontes judaicas, como a “Mischna” ou o “Talmud ” , para centralizar nossa atenção em quatro grupos distintos de “ditos de Jesus” com acerto à diversidade de sua procedência:
I. “Agrapha” canônicos extra-evangélicos (n. 1-5). Trata-se de ditos de Jesus não consignados nos quatro evangelhos, mas sim em outros lugares do Novo Testamento, por exemplo nos Atos dos Apóstolos, nas Epístolas de São Paulo ou no Apocalipse . Sua autenticidade é, naturalmente, a mesma que a dos escritos de onde procedem.
II. Variantes dos manuscritos evangélicos (n. 6-12). É sabido que para obter um texto fiável dos quatro evangelhos tem sido necessário colecionar um grande número de manuscritos gregos de diversas épocas e pertencentes a diferentes famílias. Cada um destes códices apresenta uma quantidade de variantes de diverso gêneros com respeito à leitura creditada pelos melhores testemunhos. Estas “variantes” — que muitas vezes constituem também acréscimos ao texto canônico — são um grande canteiro de “agrapha” de variada índole. Um dos exemplos mais interessantes é o chamado “Logion de Freer” [1], que se encontra no códice W (manuscrito uncial do século V), e é na realidade uma interpolação entre os versículos 14 e 15 do c.16 de São Marcos (n.7). Nele se reproduz um diálogo entre Jesus ressuscitado e os apóstolos, parecido em sua estrutura ao que serve de marco e ponto de partida para numerosas obras da literatura gnóstica.
III. “Agrapha” citados pelos Padres (n. 13-38). É este o grupo mais numeroso, já que compreende “ditos de Jesus” cujo ponto de referência se encontra disseminado por todo o âmbito da literatura cristã antiga. Escritores do século II e III — como Justino, Irineu, Hipólito, Orígenes, Clemente e Dídimo de Alexandria — estão temporalmente longe das fontes evangélicas, mas são os que mais “agrapha” trazem em suas obras. Mais próximos às origens são os escritos da era apostólica, mas são poucos os “ditos de Jesus” extra-canônicos que nos foram conservados (n.13, 34-36), e mesmo estes nem sempre identificáveis com absoluta segurança como “palavras de Jesus” .
IV. “Agrapha” de origem muçulmana (n. 39-51). A ascética e mística muçulmana fazem referências com frequência à Jesus e aduz numerosas sentenças como “ditos” deste. Não tem isso nada de particular. uma vez que os representantes “muslines” [2] destas correntes recorrem não poucas vezes à mensagem evangélica como fonte de inspiração. As possibilidades, no entanto, de encontrar autênticos “agrapha” neste campo são muito remotas, seja porque a época de composição dos escritos correspondentes é muito recente (a maior parte data dos séculos XI e XII), seja porque a forma em que se apresentam estes “ditos” atribuídos à Jesus seja em geral meras adaptações dos temas tratados por seus autores. A coleção mais ampla destes “agrapha” foi publicada em 1916 por Miguel Asín Palácios (vide bibliografia): dela extraímos alguns exemplos.