O termo dharma parece ser um daqueles termos sânscritos que embaraçam os tradutores, e com toda razão, pois apresenta múltiplos sentidos, sendo impossível lhe outorgar uniformemente uma única tradução em qualquer língua ocidental. Razão pela qual se prefere mantê-lo sem uma tradução, porém cercá-lo de algum esclarecimento.
A noção guardada no termo dharma atravessa todo o mundo indiano e reveste-se de diferentes acepções, segundo distintos setores da indianidade. Vamos examinar neste trabalho esta noção segundo o bramanismo e, ao final, apresentar apenas algumas acepções específicas ao budismo .
Começando pelo bramanismo, para compreender as acepções divergentes do termo dharma em sânscrito clássico, é preciso ter em conta os dois vocábulos védicos aparentados aos quais ele se aderiu a principio e que, em seguida, superou:
- dharmán, masculino , acentuado sobre o sufixo, nome de agente significando “aquele que sustenta”;
- dhárman, neutro, acentuado sobre o radical, nome de ação, “o ato de sustentar ”, e secundariamente, “ a coisa sustentada”.
Esses valores abstratos aos quais nos orienta a etimologia (a raiz verbal dhar significa suportar, sustentar, manter, levar, conter) se concretizam em designações precisas:
- dharmán masculino, de emprego bastante raro, é um nome dado aos seres “sustentadores” por excelência: os deuses Agni e Soma (o fogo e a oferenda), os sacerdotes , a nutrição;
- neutro dhárman, se aparece frequentemente no Rigveda em função do infinitivo puro e simples (por exemplo, I, 159, 3, “no dhárman dos seres móveis e imóveis” = “em sustentando os seres”) tem igualmente o sentido de “lei”, enquanto esta dá consistência e estrutura aos seres que ela informa e que lhe são submetidos.
Dada sua raiz etimológica, como se viu anteriormente, o dharma se refere a um princípio de conservação dos seres, e, por conseguinte, de estabilidade, na medida em que esta é compatível com as condições de manifestação, pois todas as aplicações do dharma se referem sempre ao mundo manifestado. Neste sentido podemos dizer que o dharma é uma expressão que reflete a imutabilidade principial na ordem da manifestação. Ele só é din âmico enquanto a manifestação implica necessariamente “devir”, sendo assim aquilo que faz com que este devir não seja pura mudança ; o dharma é, deste modo, aquilo que mantém através de toda mudança do devir, uma estabilidade relativa.
Outra filiação etimológica do termo dharma é a raiz dhru, da qual deriva a palavra dhruva que designa “eixo ”; efetivamente, é desta ideia de eixo ou polo do mundo manifestado que devemos nos referir para compreender a noção de dharma: aquilo que permanece invariável no centro das revoluções de todas as coisas, e que, deste modo, regra o curso das mudanças sem delas participar. Essa acepção assinala, por sua vez, o parentesco da noção de dharma com a de rita, que tem o sentido etimológico de retitude, como o Te da tradição chinesa, que se refere também a ideia de eixo, de direção constante e invariável. Essa conformidade a uma “ordem” não deve ser entendida como se referindo exclusivamente à ordem humana, mas a antes de tudo, à ordem cósmica; havendo naturalmente uma correspondência entre as duas, mantida através do rito.
Constata-se, por conseguinte, que estamos aqui bem longe de uma concepção “moral”. Se a ideia de “justiça” parece por vezes convir, isto ocorre apenas pelas conotações que esta ainda guarda com as ideias de equilíbrio ou de harmonia , que são aspectos da manutenção da estabilidade cósmica. Com mais forte razão, a ideia de “virtude” só pode se associar a noção de dharma na medida que indica as ações de um ser em conformidade com sua própria natureza, e, por este lado, à ordem total que tem seu reflexo ou imagem na natureza de cada ser. O mesmo acontecendo com a ideia de “lei”, que pode ter alguma associação com a noção de dharma , até onde se possa entendê-la como uma adaptação da ordem cósmica a um meio social, o que é particularmente notável no que concerne a instituição das castas (varna), como veremos mais adiante.
Frequentemente no Veda , o dhárman é o ordo rerum na sua totalidade. Mas as leis cósmicas se manifestam também no esquema subjacente à configuração normal, à “forma natural ” de um objeto ou comportamento . Esta norma é originária: os dhárman são primeiros (prathama) ou ancestrais (sanata). Deste modo, os dois planos, do cosmos e do objeto singular de que se trata, não estão dissociados: quando, por exemplo, no Rg-Veda I, 164, 50, se diz que “os deuses sacrificam o sacrifício pelo sacrifício” e que “este foram os primeiros dhárman”, fica claro que se trata de mostrar a natureza essencial do sacrifício (o fato que é um sistema fechado, a ambiguidade em virtude da qual o sacrifício é um meio, que se destrói no processo mesmo de sua “execução”, e ao mesmo tempo um fim: a finalidade do ato sacrificial é portanto de levar a perfeição o sacrifício ele próprio) e, simultaneamente, de afirmar que os deuses, instituindo o sacrifício, em dando a ele sua norma, põem em lugar não somente o modelo do sacrifício que devem oferecer os homens mas ainda as estruturas fundamentais do cosmos. Do mesmo modo, a expressão a primeira vista tautológica do Rg-Veda VI, 70, 3: “por sua progenitura ele se procria, em conformidade ao dharman” ensina ao mesmo tempo a lei interna das sucessões das gerações o fato que lá se tem um efeito ou uma manifestação da ordem universal . Os deuses guardam esta harmonia. A alguns dentre eles, mais que a outros, reconhece-se esta vocação: fazer que os diferentes tipos de seres e de ações correspondem bem a norma que os define. Notoriamente Savitar e Soma, mas sobretudo Agni, Mitra e Varuna : em Agni se celebra a “supervisão dos dharman”; Agni e Soma são qualificados de “mestres do dharman”; Mitra e Varuna e outros são satyadharman, ou seja, o dharman de cada um deles é verdadeiro, as normas que editam são efetivas. Assim também se encontra o dharman associado à vrata, “voto”, ou melhor, “regra de aliança”: o dharman instituído pelos deuses implica da parte deles uma espécie de promessa, eles se engajam a manter esta ordem, eles estão lá para punir quem o perturbe. Característica desta posição é a fórmula do Rg-Veda III, 60, 6: “segundo à vrata dos deuses e os dharman do homem ” (outra maneira de compreender: os vrata, quer dizer as promessas dos deuses e do homem, se acompanham de dharman”.
Em sânscrito clássico e já no vedismo tardio, o masculino dharma incorpora as significações dos dois dharma: quer dizer, ao mesmo tempo, o que sustenta, o ato de sustentar, o que é sustentado, o que se sustenta. É a ordem cósmica, enquanto esta deve ser preservada e indefinidamente confirmada pelo sistema dos sistemas de observâncias próprias a cada classe de seres. O acento é dado sobretudo sobre a ideia de regra de conduta, prática correta, dever . É ao mesmo tempo o bem o que a ele conduz. Concebe-se nestas condições que o termo dharma, frequentemente traduzido por “lei moral”, tenha sido compreendido ou utilizado como um equivalente aproximativo de “religião”. Note-se no entanto que embora caindo a segundo plano as acepções de “lei natural”, “forma própria”, “norma definidora” não são eliminadas, haja visto o vocabulário técnico da Gramática, onde se diz dharma como propriedade característica de uma palavra ou de um som (em oposição a sua substancia, dravya); e por outro lado o princípio muitas vezes formulado que as observâncias que se incubem a um ser estão em consonância com a natureza que é verdadeiramente a sua. Mas se trata-se de um ser humano, sua natureza própria se manifesta logo em seu status social, de modo que na conduta darmica, moralidade, aspiração ao bem, se confundem a preocupação de estar, na sociedade, no lugar que convém, ou melhor se manter no estilo de vida que corresponde ao lugar que se ocupa na sociedade.
Ordem cósmica e sistema de observâncias, dever e mérito, esta polissemia está bem ilustrada por esta passagem das Leis de Manu (I, 81-84) que descreve o arrefecimento progressivo do dharma à medida que se sucedem, se degradando as eras cósmicas (yuga ) no interior de cada ciclo: “na era da perfeição, o dharma é como um touro que repousa sobre quatro patas. Ele está inteiro. E do mesmo modo a verdade (satya ) (...) Nas eras seguintes (...) o dharma perde a cada vez uma pata e o mérito (dharma) diminui de um quarto. (...) Existem dharma diferentes para cada yuga.” Nesta sequência de quatro versos, a mesma palavra dharma é empregada em três acepções distintas:
- é o Bem objetivo, simbolizado pela imagem do touro e identificado ao corpo da Verdade;
- é o bem que os homens se fazem, quer dizer mérito que eles ganham quando eles são virtuosos;
- são, enfim, as observanças específicas que, em uma situação dada, constituem o dever.
Este dharma tão rico de sentido e tão difícil a apreender em sua unidade , que meios temos de o conhecer? “O dharma e o não-dharma não vêm nos dizer: ‘eis nos aqui’. Os próprios deuses ou os gênios (Gandharva) não afirmam: ‘isto é o dharma, isto é o não-dharma’. O dharma é o que os Aryas aprovam e o não-dharma o que eles condenam” (Dharmastra - Apastamba-Dharma-Sutra I, 7, 20). Os atos e os seres, portanto, não levam em si mesmos o sinal que permitiria reconhecer sua pertinência à esfera do Bem, e as potências sobrenaturais não intervêm para nos esclarecer. O critério pratico do dharma é a conformidade a uma tradição em vigor em uma sociedade humana bem precisa, definida aqui em termos amplos: chamam-se Aryas, nos textos provenientes do bramanismo, os homens pertencentes as quatro grandes classes (varna) da sociedade, tais quais se constituíram quando da gênese (uma das inumeráveis gêneses do vedismo) em forma de sacrifício, descrita no Rg-Veda X, 90: O Purusha primordial, gigante cósmico sob forma humana, apesar de “suas mil cabeças e seus mil olhos”, foi imolado e desmembrado, e das partes e órgãos de seu corpo, surgem de um mesmo movimento, os elementos constitutivos do cosmos (lua , sol, céu, vento , pontos cardeais ) e as quatro varna dele derivam: “sua boca se torna brâmane, o Guerreiro foi o produto de seus braços, suas coxas foram os Artesãos, de seus pés nasce o Servidor”. Mas estes quatro varna não são o todo da humanidade: destes Aryas se distinguem os bárbaros, chamados Dasyu ou Dasa no antigo Veda, mleccha nos textos mais recentes; os Aryas devem combatê-los, os repeli-los à periferia de seu domínio, não ter contato com eles, não aprender sua linguagem suplicante. Os Aryas têm um território, um “espaço de evolução” que lhes é próprio, e cujo os Brahmana descrevem sumariamente a maneira como foi conquistado: é o Aryavarta, a Índia do norte compreendida entre o Himalaia e a cadeia dos Vindhya, e a leste e a oeste os dois oceanos (Leis de Manu II, 22), espaço que coincide com aquele onde o antílope negro tem seu habitat natural. Existe, portanto, uma geografia do dharma. Enquanto sistema de valores e de observanças, o dharma se define como isto que é recebido no Aryavarta. Mas segundo esta mesma passagem de Manu (e de outros textos de mesma inspiração), o coração do Aryavarta é uma estreita região compreendida entre os rios Sarasvati e Drsadvati, à noroeste da atual Delhi: é o Brahmavarta e a “maneira de fazer gente de bem” (sadacara) é a que se transmite, de geração a geração, neste país. O nome Brahmavarta deve ser compreendido como domínio por excelência dos brahmanes, ou seja do primeiro dos quatro varna arya. A hierarquia geográfica é uma imagem da hierarquia social: entre os Aryas, com efeito, são os brâmanes que são os guardiões da tradição do dharma. Deste modo que se pode justificar o termo “bramanismo”, forjado pelos ocidentais, e aplicado a esta fase e a este aspecto da religião indiana que correspondem a ortodoxia formulada pelos tratados do dharma: a preeminência dos brâmanes sobre os outros varna se deve antes de mais nada ao fato que eles tem sobre o dharma o ponto de vista da totalidade; eles conhecem o dharma não apenas as observanças que lhes são próprias, mas o conjunto das regras e os diferentes níveis de interpretação. Ora, o dharma, como lemos no Brihadaranyaka Upanixade I, 4, 14, é um kshatra acima do kshatra, ou seja uma soberania superior a soberania dos kshatriya, dos guerreiros que em a vocação para exercer a autoridade real.
Bem, que o dharma seja, como vimos, objeto de interrogação, e que ele suscite esta dharmajijnasa, este “desejo de conhecer o dharma” (ou segundo uma outra interpretação, este “desejo de conhecer, tendo em vista o dharma”) que é o tema do Purva-Mimamsa, é suscetível de uma definição operatória: “o dharma é o bem que tem por marca distintiva (de ser prescrito por) uma injunção” (Purva-Mimamsa-Sutra I, 1, 2). Uma injunção: um texto, portanto, e que incita a agir. O dharma assim entendido é “a fazer”, ele é um outro nome de karya, “o que se tem a fazer”. Ora as injunções darmicas , segundo a ortodoxia do bramanismo, tem seu lugar originário, sua justificação ultima, no Veda, onde elas figuram explicitamente ou enquanto pressupostos que se tratam de esclarecer, em função da exegese bramanica. Em outros termos, elas estão plenamente desenvolvidas nas coleções que lhes são exclusivamente consagradas (enquanto o Veda contêm também preces e passagens narrativas: toda a matéria mítica): estes são os dharma-sutra, aforismos em prosa, muito concisos, sobre o dharma, e mais tardiamente, os dharma-sastra, “tratados do dharma”, em verso, mais prolixos, dando menos espaço que as sutra às injunções propriamente rituais e muito mais ao que classificaríamos dentro de moral individual e social e direito. Estes dois grupos de textos sobre o dharma, que se imagina terem sido fixados entre o século II AC e V DC formam juntos a chamada Smrti, memória, ou melhor tradição. Sua validade repousa sobre a conformidade de seu ensinamento com o do Veda. A estas duas grandes fontes do dharma, o Veda e a Smrti que dele deriva, se associam segundo os filósofos da Mimamsa, as instruções dos homens instruídos com autoridade (os sista) e segundo Manu, como se viu, o modelo ou o teste que constitui a pratica de gente de bem (sadacara): desde que a lições que se possam tirar destes exemplos não sejam contrarias ao Veda e não cheguem a uma máxima que se possa pensar que é inspirada não pela preocupação com o dharma mas transcendente, mas pela vontade de obter um bem mundano (literalmente, visível, drshta). Interessante notar que Manu declara que existe para o homem uma quarta fonte de conhecimento do dharma: a satisfação de seu próprio si. A relação completa se encontra em Manu II, 12: “o Veda, a Smrti, a pratica de gente de bem e a satisfação de seu próprio si (svasya ca priyam atmanah), tal é visivelmente, como se diz, o quadruplo signo (lakshana) do dharma”. Deve-se ver nesta “satisfação do si” um equivalente do que denominamos “a consciência em paz ”? Uma passagem paralela do Yajnavalkya (I, 7) não nos encoraja nesta direção: se trataria, com efeito, de uma situação onde os textos deixariam o homem livre para escolher entre duas maneiras de fazer; ele deveria então decidir por aquilo que daria “satisfação”.
A medida que os textos se acumulam, as prescrições relativas ao dharma se tornam mais complexas, mais precisas e mais diversificadas. O sistema é um, mas ele toma sua coerência do fato que as partes que o constituem são distintas. Um dos princípios do dharma é que vale mais fazer mal seu dever próprio que fazer bem o dever de outrem (Bhagavad Gita, III, 35 e XVIII, 47). Ora o que caracteriza a evolução da sociedade indiana (ou do pensamento indiano sobre a sociedade) entre o período védico e o dos dharma-sastra, é que as regras que definem o estatuto de um homem são mais numerosas e mais impeditivas: ideal de separação , de especialização e de complementaridade, conforme testemunhado pela expressão que se coloca como fórmula desenvolvida do termo dharma, varna-asrama-dharma, o dever enquanto especificado pelo varna ao qual se pertence e o estagio ou estado de vida (asrama) no qual se encontra uma pessoa . Sabe-se com efeito que no bramanismo que a vida de um “duas-vezes-nascido”, ou seja, de um homem nascido em um dos três primeiros varna, se divide teoricamente em fases bem delimitadas por ritos de passagem :
1. na saída da infância e depois da iniciação, que é para ele um segundo nascimento, ele se torna brahmacarin, “estudante bramânico”, e fica junto a seu mestre até o momento de se casar;
2. começa então para ele a vida ativa de “senhor de sua casa ”, grhastha;
3. “quando ele viu o rosto de seu neto”, o homem pode abraçar a vida eremita, se tornar “aquele que vai para a floresta”, um vanaprastha;
4. enfim pode-se levar ao extremo sua vontade de se isolar e de romper os liames que o prendem ao mundo da sociedade e da ação, ele se torna então um asceta renunciante, um samnyasin.
O svadharma, o dever próprio de um indivíduo é a interseção dos dharma das diferentes categorias as quais ele pertence simultaneamente de maneira permanente ou transitória.
Uma noção importante é a de apad-dharma, dharma do perigo: ela permite pensar sobre as situações nas quais um homem pode escapar de um perigo grave pode resolver transgredir seu svadharma (Manu, X).
Outro fator de diversidade: o dharma tem uma coloração diferente segundo a era cósmica, ou seja o numero de patas sobre as quais repousa o touro darmico: a virtude dominante, no inicio do ciclo, é o fervor ascético, tapas: depois é o conhecimento, jnana ou vidya; depois o sacrifício, yajna; enfim nesta era miserável e ultima que é a nossa, o único dever que nos é possível de preencher plenamente é o dom, a generosidade, dana.
Estes dharma distintos só tem sentido como partes de um todo. Embora os tratados de dharma parecem se interessar em fixar os homens e os grupos em seus contornos próprios, a unidade da humanidade, pelo menos da humanidade arya, não deixa de ser afirmada: o dharma, que é eterno, sanatana, comporta virtudes que cada um tem a obrigação e a possibilidade de praticar. Sua lista constitui o dharma geral, sadharana, comum a todos. Eis a relação que nos dá o Yajnavalkya I, 122: não fazer violência, observar a verdade, não roubar, aplicar as regras da pureza , ser mestre dos sentidos, ser generoso , saber se dominar, ser misericordioso , ser paciente: tal é para todos o meio de realizar o dharma”.
Concluindo essa panorâmica da noção de dharma no bramanismo é preciso situá-la entre as metas que as escrituras tradicionais hindus designam para a vida humana. Estas metas são em número de quatro (Purushartha), e são enumeradas em uma ordem hierarquicamente ascendente: artha, kama, dharma, moksha ; sendo esta última, a “Liberação”, a meta suprema, além do domínio da manifestação, portanto, de ordem inteiramente diferente das três outras e sem medida comum com elas, do mesmo modo que o absoluto é sem medida comum com o relativo.
As três primeiras metas, denominadas em conjunto Tri-Varga ( “No dizer de alguns, o Soberano Bem consiste na virtude e na riqueza ; mas segundo outros, no prazer a na riqueza; e segundo outros ainda, na virtude apenas, ou segundo outros enfim, na riqueza apenas; mas é a reunião (o grupamento, varga) dos três que constitui o Soberano Bem; tal é a decisão correta.” (II, 224 (os Três Valores da vida humana, mencionados pelos textos mais antigos como o Mahabharata , o Ramayana, as Leis de Manu, e outros mais) se referem exclusivamente ao manifestado: artha compreende o conjunto dos bens de ordem corporal; kama é o desejo, cuja satisfação constitui o bem de ordem psíquica; dharma, sendo superior aos dois anteriores, é preciso considerar sua realização como emergindo de uma ordem espiritual, que se coaduna com o caráter universal que lhe foi até então reconhecido. No entanto, estas três primeiras metas, incluindo o dharma, sendo contingentes como a manifestação fora da qual não poderiam ser reconhecidas, estão subordinadas à meta suprema, face a qual são apenas meios. Cabe ainda esclarecer que as metas que compõem o Tri-varga, guardam uma correspondência com as diferentes varnas (castas), repousando esta correspondência sobre a chamada Teoria das gunas , o que reforça ainda mais a concepção hindu de uma ligação indissolúvel entre a ordem humana e a ordem cósmica.
Se considerarmos o dharma em sua acepção mais próxima de “virtude”, é difícil para nós ocidentais conceber uma virtude que nos obrigue a ir em busca de riquezas e bens materiais (artha) e prazer e satisfação (kama). Os ocidentais consideram ao contrário que a virtude de um homem está em seu poder de exorcizar estes dois últimos valores da vida, dirigindo toda sua vontade para o espiritual. Mesmo na Índia, em uma época bem posterior à tradição primordial guardada nos Vedas, no Mahabharata, nas Leis de Manu, etc., concebeu-se um valor supremo, destacado e acima dos outros três, ao qual se deu o nome de moksha (Libertação). Razão pela qual alguns estudiosos dos Vedas contestam estes “quatro sentidos da vida” como não sendo originários da tradição primordial védica. Se os antigos arianos concebiam apenas três castas, três estações, três Vedas, etc., e por conseguinte de três valores ou Purusha-artha (Purusha = homem não nascido; artha = meio; ou seja, os três meios do homem não-nascido ), eles tinham suas razões (Philippe Lavastine , 1979).
Dharma, artha, kama, os três artha de Purusha, podem e devem ser considerados como meios. Mas visualizar moksha como meio, ao invés do fim que todos os Vedas proclamam, é um non-sens. Ou seja, a libertação do homem não-nascido, a possibilidade dele se manifestar através de cada um de nós, em nossa humanidade não pode ser um meio, mas um fim supremo. Neste sentido pode-se dizer que não existe um quarto artha, mas um valor de outra ordem como anteriormente preferimos colocar. Pode-se e deve-se buscar os artha, os meios que permitiriam ao “homem não-nascido” se manifestar através de cada um de nós, mas a ideia de ver o Vidente, de conhecer o Conhecedor, é loucura, como bem coloca o Brihadaranyaka Upanixade .
Para finalizar, cabe lembrar que no budismo, o termo pali dhamma se estabelece como fundamental, guardando diferentes sentidos, causando uma certa ambiguidade nos textos desta tradição:
1. “ordem cósmica”, explicando a regularidade do movimento dos astros, da sucessão das estações, etc.;
2. “ordem social, justiça”, e por extensão “leis”, pelas quais ele se exprime e se mantém;
3. “realidade universal” descoberta pelo Buda e ensinada por ele, esta realidade que a ignorância (avidya) esconde aos outros seres;
4. “doutrina budista” em seu conjunto, expressão da acepção precedente, distinta da disciplina (vinaya) ensinada e imposta aos monges;
5. “leis universais ”, partes constituintes da realidade acima referida e que regem o mundo e os seres, por exemplo a impermanência (anityata), a ausência de “si” (nairatmya), etc.;
6. “coisas, fenômenos” no sentido amplo, sem que se possa distinguir se a palavra dharma se refere a essência ou a existência, pois estas duas noções, tão importantes na filosofia ocidental, não são claramente distinguidas pelo budismo antigo;
7. “ideia”, enquanto objeto específico da mente (manas), ou órgão mental, como as formas e as cores são os objetos da visão, os sons da audição, etc..
Os sentidos 1 e 2, correntes na Índia antiga, são raros nas obras budistas. O sentido 3, raro antes de nossa era, vai tomar uma importância crescente, mantendo uma ambiguidade com o sentido 4. Os sentidos 4 e 6 são bastante empregados nos textos budistas, mesmos os mais antigos.