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O QUE É CIVILIZAÇÃO?

Coomaraswamy (AKCCivi:234-237) – Atena e Hefesto

Capítulo XX

sexta-feira 11 de novembro de 2022, por Cardoso de Castro

      

Reconhecemos que para qualquer coisa ser “bem feita e feita com dedicação” é indispensável a cooperação das mãos como causa   eficiente e do intelecto   como causa formal. A finalidade deste ensaio é chamar a atenção para as expressões disto em forma mitológica, em termos da relação entre Atena e Hefesto  , sendo Atena a Deusa   da Sabedoria   que surgiu da cabeça do pai   (Zeus  ) e Hefesto o ferreiro titã cujas obras maravilhosas são produzidas com o auxílio de Atena como colaboradora (syntechnos).

      

Na produção de qualquer coisa feita pela arte ou pelo exercício de qualquer arte existe uma participação simultânea de duas propriedades, uma imaginativa e outra operativa, uma livre e outra servil; a primeira consiste na concepção de alguma ideia numa forma imitável, e a segunda consiste na imitação (mimesis  ) deste modelo (paradeigma  ) invisível, uma imitação feita em um material qualquer que desse modo fica “in-formado”. Assim sendo, a imitação, que é o caráter distintivo de todas as artes, é dupla: de um lado o trabalho   do intelecto   (noûs), e de outro o trabalho das mãos (kheir  ). Estes dois   aspectos da atividade   criadora correspondem aos “dois que existem em nós”, a saber, o nosso Eu espiritual ou intelectual e o nosso Ego psicofísico e sensível  , que funcionam em conjunto   (synergoi). A integração da obra de arte depende da extensão em que o Ego   consegue e quer servir o Eu; ou, se o patrão e o empregado são duas pessoas diferentes, depende da medida do entendimento mútuo entre os dois.

A natureza dessas duas faculdades   que são respectivamente a causa   formal e a causa eficiente na produção de obras de arte foi muito bem estabelecida por Fílon quando descreveu a construção do Tabernáculo: “A construção foi claramente exposta a Moisés no Monte por meio de pronunciamentos divinos. Com os olhos da alma   ele viu as formas imateriais (ideai) das coisas materiais que deveriam ser feitas; e aquelas formas deveriam ser reproduzidas como imitações sensíveis, por assim dizer, dos padrões gráficos e inteligíveis dos arquétipos... Por isso o protótipo de padrão foi gravado secretamente na mente   do profeta   como algo secretamente pintado e moldado em formas invisíveis, sem material; depois o trabalho acabado foi forjado de acordo com aquele protótipo, quando o artista impôs aquelas impressões nas diversas substâncias materiais apropriadas”. Nas palavras mais gerais de São Boaventura  , “a obra de arte sai do artista de acordo com um modelo que existe na mente; esse modelo é descoberto (excogitat = cintayati) pela arte antes de o artista começar a produzir; aí ele produz o que predeterminou. Além do mais, o artista produz a obra exterior à semelhança   máxima possível do modelo interior”.

Por isso a obra de arte é ao mesmo tempo um produto de sabedoria   e método ou de raciocínio e arte (sophia ou logos   e techne  ). Podemos observar   neste ponto que para o artista as referências básicas das palavras sophia e episteme (compare com hochma em hebraico   e maya   em sânscrito) significam astúcia ou sagacidade   e ciência, de onde se deriva o sentido de sabedoria; e podemos notar também que, enquanto techne geralmente pode ser traduzido por arte, em contraposição a “trabalho sem arte” (atechnos tribe), esta distinção é a mesma que existe entre a mera “indústria” (tribe) e “método” (methodos  ). Vem a dar na mesma dizer que em questões de artesanato ou manufatura (kheirotechnike) existe uma parte mais aliada à ciência (episteme) e outra menos, e “sem o uso de enumeração, medidas ou pesos, as artes (technai) seriam relativamente inúteis. . . e seriam uma simples questão de prática e esforço”; e também vem a dar na mesma distinguir arte (techne) e mera experiência (emperia) de ciência (episteme), embora o artista precise das três. Todas estas frases oferecem um pano de fundo para as seguintes frases medievais: Ars sine scientia nihil   e Scientia reddit opus pulchrum.

Reconhecemos que para qualquer coisa ser “bem feita e feita com dedicação” é indispensável a cooperação das mãos como causa eficiente e do intelecto como causa formal. A finalidade deste ensaio é chamar a atenção para as expressões disto em forma mitológica, em termos da relação entre Atena e Hefesto  , sendo Atena a Deusa   da Sabedoria que surgiu da cabeça do pai   (Zeus  ) e Hefesto o ferreiro titã cujas obras maravilhosas são produzidas com o auxílio de Atena como colaboradora (syntechnos). Atena e Hefesto “compartilham uma natureza comum, pois nasceram do mesmo pai” e vivem juntos num santuário comum (hireon) ou na mesma casa  , por assim dizer: ela é a “mente de Deus  ” (he theou noesis, ou noûs) e também tem o nome de Theonoe; e ele é “o nobre descendente da luz”. De ambos todos os homens tiram, direta ou indiretamente, o que conhecem das artes; “Hefesto é famoso pela sua arte (klytometis) e, ajudado por Atena, a dos olhos fulgurantes, deixou obras gloriosas para os homens da terra  ”; ou foi Prometeu que roubou deles a “sabedoria artística (entechnon sophian) e o fogo imanentes” e deu-os aos homens “como um quinhão divino  ” (moira  ).

Aqui as palavras entechnos e moira implicam que o “artista humano de posse da arte” (entechnos demiourgos  ) está assim porque participa (methexis  , metalepsis) da força criadora do Arquiteto Mestre. Na realidade, Atena e Hefesto, “coincidindo no amor pela sabedoria e pelo artesanato (philosophia   e philotechnia), escolheram juntos esta nossa terra por ser naturalmente apropriada para ser o lar da virtude e da sabedoria e nela plantaram homens bons como se fossem nativos do solo; e puseram-se a pensar na estrutura   da arte de governar”. Tudo isto significa que o artista humano (digamos, o ferreiro na sua forja) que está de posse da arte tem dentro de si uma sabedoria e um método, uma ciência e uma técnica; e significa que, como homem   completo e responsável por essas duas operações, livre e servil e ao mesmo tempo capaz de imaginar e executar, tem a mesma natureza que Atena e Hefesto: Atena inspira o que Hefesto executa. Com isso temos Féreclo, “cujas mãos sabiam (epistato) moldar todo tipo de obras maravilhosas (daidala), porque Atena o amava”, e temos o carpinteiro que é denominado “mestre de sabedoria quanto à forma, com a inspiração de Atena”. A função de Atena neste relacionamento, no sentido de ser ela a origem   ou causa formal ou padrão da obra a ser feita, é basicamente mais autoritária e paternal do que receptiva ou feminina e não temos de nos surpreender ao ver que geralmente a “inspiração” do artista (empnoya, empneusis) ou “a força divina (dynamis = sakti) que o impele” é denominada “o Deus”, o “Daimon  ” imanente ou Eros  , ou seja, o Espírito indicado pela própria palavra “inspiração”.

Por outro lado, quando só a operação servil é executada pelo “mecânico simplesmente produtivo” (banausikos) que não entende o que está fazendo, por mais esforçado que seja, o serviço passa a ser uma simples questão de “trabalho não-especializado” (atechnos tribe), e o trabalhador fica reduzido à condição de mero escravo   que ganha dinheiro   para o patrão ou passa a ser um simples “ajudante” (kheirotechnes) em vez de ser um arquiteto ou amante da sabedoria. Esta é exatamente a posição dos trabalhadores de linha de produção de hoje, nos quais o sistema industrial, seja capitalista, seja totalitário, separou Atena de Hefesto.


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