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BEGUINAS

Hadewijch d’Anvers – Amplidão das Virtudes Perfeitas

Primeira visão

segunda-feira 28 de março de 2022, por Cardoso de Castro

      

Hadewijch   da Antuérpia, Visions (séc. XIII), trad. do médio-neerlandês: Fr. J.-B.M. P., Éd. OEIL, 1987, p. 19-22 (Ia ed. 1908-1914), traduzido por Yara Azeredo Marino e Elisabete Abreu

      

Era um domingo da oitava de Pentecostes e trouxeram-me Nosso Senhor em particular à minha cabeceira, pois eu me sentia em espírito concentrada de tal forma em mim   mesma que não poderia manter-me no exterior como convém fazer entre os homens. Essa exigência íntima era a de estar unida a Deus   fecundamente. Mas eu ainda era muito jovem e muito criança para isso: não sofrera o suficiente para essa união, nem vivera a plenitude   do mérito que ela requer, como aprendi nesta própria visão e o soube depois. Desde que recebi Nosso Senhor, Ele me recebeu n’Ele, arrebatando meus sentidos para que esquecesse toda coisa estranha, gozando d’Ele na solidão  . Fui conduzida a um prado, a uma campina chamada Amplidão das Virtudes Perfeitas. Havia muitas árvores, em direção às quais fui conduzida, e seus nomes me foram ditos e o sentido dos mesmos me foi revelado. [1] A primeira árvore possuía uma raiz podre e frágil; seu tronco, porém, era muito firme  : sobre este havia uma flor   muito bela e graciosa, mas tão delicada que, quando da tempestade, queda imediatamente e murcha. Era conduzida por um anjo   do coro dos tronos, que possui em particular a discrição. Nesse mesmo dia, de fato eu me elevara até alcançá-lo, e o recebera para que fosse meu guardião dali em diante e companheiro de todos os caminhos. E esse anjo me disse: "Natureza humana, recebe a inteligência desta árvore e sabe o que é". Compreendi, pois ele me revelou que a árvore representava o conhecimento de nós mesmos. A raiz podre representava a nossa natureza frágil; o tronco firme, nossa alma   eterna; e a graciosa flor, por sua vez, a bela forma humana que se desseca num breve instante  . [2]

Então ele me conduziu a uma outra árvore, mais baixa, cujas folhas magníficas e variadas deleitavam o olhar. Porém, acima daquela bela folhagem pendiam outras folhas ressecadas que cobriam inteiramente as primeiras. E o anjo me disse: "Alma escolhida, alma de desejos, atraída de tão baixo a tal sublimidade, e de tão sombrias trilhas a tão claros caminhos, da extrema pobreza   à extrema riqueza  , compreende o que vês". Então ele me revelou e eu compreendi realmente que aquela árvore representava a humildade   cuja sábia crença, nascida da consciência de nossa baixeza diante da divina sublimidade, oculta o belo adereço de todas as virtudes, pois ela sabe e confessa que o gozo do Bem-Amado   ainda lhe faz falta, e não sabe como remediá-lo. Essa é a definição da pura humildade.

O anjo me conduziu em seguida a uma grande árvore, vigorosa, de folhas largas, e então falou: "Ó poderosa e forte, tu que triunfaste em Deus poderoso e forte desde o princípio de seu ser sem começo, [3] tu que com Ele encherás de força a eternidade   sem fim, lê e compreende". Então eu li e compreendi. Sobre cada uma das folhas estava escrito as seguintes palavras: "Eu sou   a força de vontade perfeita, nada pode me escapar  ".

E próxima a ela havia uma grande árvore de múltiplos ramos, e todos esses ramos esticados atravessavam os ramos da outra. E o anjo me disse ainda: "Ó prudente, instrui-te pela razão, sim, pela razão do Deus majestoso  , lê e compreende a sábia e prudente lição que ensinam esses ramos sobrepostos à folhagem vizinha". E sobre cada folha estavam escritas as seguintes palavras: "Represento a discrição, sem mim nada se pode realizar".

E o anjo me fez passar a uma bela árvore que possuía três tipos de ramos, e outro tanto de ramos em cada um desses: três ramos superiores, três ramos intermediários e três inferiores. E o anjo me disse: "Ó melancólica pelo insucesso no incerto futuro, ó tu que perscrutas, inquieta, os erros dos homens que foram feitos para amar a Deus e que se afastam para longe d’Ele, terminando em outros lugares sua vã corrida; ó tu que morres da morte que morreu o Bem-Amado, compreende esses três ramos inferiores, pois foi por meio deles que tu chegaste aos superiores". E eu percebi que todas as folhas daquela árvore eram intensamente verdes, pontudas, alongadas e que sobre cada uma delas havia um coração   gravado. Sobre os três ramos inferiores, esses corações eram vermelhos; brancos sobre as folhas dos ramos do meio; e dourados sobre os ramos superiores.

E o anjo me disse ainda: "Pura coluna na Igreja   dos santos, tu que tens preservado teu corpo de tudo o que não convém ao santo templo   de Deus; ó inocente e consoladora, por quem a pura vontade de nosso Deus majestoso é aliviada de todo pecado   e o ser  á no futuro; ó tu que conheces pela certeza do saber a nobre natureza de nosso Deus de doçura, daí a escolha   que tu fizeste tão cedo da pureza   imaculada acima de tudo o que foi e de tudo o que é, sem nela falhar em nenhuma circunstância um só instante, compreende agora os três ramos intermediários". E eu compreendi.


Ver online : Hadewijch


[1A alegoria do pomar espiritual é encontrada muitas vezes, com variantes, nas obras ascéticas dos séculos XII e XIV. Wilh. Preger assinala algumas, Geschichte der deutscben, II, p. 48-53, para o domínio alemão; mas parece que elas foram abundantes primeiramente no domínio latino e francês: v. Ch. V. Langlois, La vie en France au Moyen ge, la vie spirituelle (A vida na França na Idade Média, a vida espiritual). Paris, 1928, p. 134, onde ele cita, a propósito da Sornme le roi, a obra de Guillaume Péraud: Summa virtutum et vitriorum. É à segunda que a primeira empresta uma série de árvores simbólicas, com ramos e folhas numeradas.

[2A flor simboliza "a figura humana na sua pungente fragilidade", Cf. Hadewijch, Lettres spirituelles (Cartas espirituaii), Éd. Fr. J.-B.M.P., Genebra, Martingay, 1972, p. 37.

[3Os predestinados triunfam em Deus, e o têm feito por toda a eternidade. No parágrafo 19, encontramos a expressão sem começo aplicada à própria vida da alma: "Releva-te, pois tu permaneceste viva em mim mesmo sem começo". Vê-se aflorar aqui a doutrina exemplarista, que representa em Hadewijch como em Jan Van Ruysbroeck um papel importante. Temos em Deus uma existência ideal, fora do tempo, e nossa verdadeira sina é encontrar essa vida eterna. A expressão triunfar em Deus é familiar em Jan Van Ruysbroeck. Ver por exemplo Ornement des noces spirituelles (Ornamento das núpcias espirituais), edição da Sociedade Ruysbroeck, Ruysbroeck-Genootschap d’Anvers R.-G, p. 224 (trad. de Wisques, p. 188): "Pela inclinação frutífera de seu espírito, o homem triunfa em Deus e forma apenas um com ele". Mais adiante, Ruysbroeck afirma que "todas as criaturas nascem eternamente, antes que sejam criadas num espaço de tempo" (trad de Wisques, p. 213-214).