Estranha particularidade da iconografia cristã é a representação dos quatro evangelistas sob a forma de quatro “viventes”, quer dizer, de fato um homem e três animais ou homens com cabeças de animais.
Essas imagens derivam da figuração egípcia dos deuses, preservada na representação gnóstica das “faces” dos decanos, quer dizer que, em sua própria origem, comporta uma significação astral e mesmo zodiacal. O conjunto particular que constituem as figuras representando os quatro evangelistas ficou denominado de Tetramorfo.
Os quatro animais no tempo da Suméria descreviam os quatro pontos cardeais (e talvez as quatro estações) como mostra o selo do sacerdote Dudu. Já Marquès-Rivière afirmava a este respeito que existia em Babilônia quatro tripos de gênios protetores:
- Alap ou Kirub, touro de face humana
- Lamas ou Nirgal, leão com cabeça de homem
- Ustur de forma humana
- Nattig com cabeça de águia
Portanto, junto à influência egípcia temos a sumero-babilônica, transmitida pelos judeus .
Com a aparição dos quatro querubins portando o trono de Deus na primeira visão de Ezequiel, encontra-se o ponto de partida e a explicação dos símbolos dos evangelistas.
Esta simbólica é retomada por São João no Apocalipse (anos 70 de nossa era, anterior à redação dos Evangelhos ). Os primeiros textos que propõem repartição dos símbolos entre os evangelistas são do segundo século e os símbolos surgem na arte cristã a partir do século V.
Richer considera importante agrupar os textos importantes da tradição cristã, que a seguir apresentamos:
Apocalipse 4,4-7
Havia também ao redor do trono vinte e quatro tronos; e sobre os tronos vi assentados vinte e quatro anciãos, vestidos de branco, que tinham nas suas cabeças coroas de ouro. E do trono saíam relâmpagos, e vozes, e trovões; e diante do trono ardiam sete lâmpadas de fogo , as quais são os sete espíritos de Deus; também havia diante do trono como que um mar de vidro, semelhante ao cristal; e ao redor do trono, um ao meio de cada lado, quatro seres viventes cheios de olhos por diante e por detrás; e o primeiro ser era semelhante a um leão; o segundo ser, semelhante a um touro; tinha o terceiro ser o rosto como de homem; e o quarto ser era semelhante a uma águia voando.
Irineu de Lyon
Com Irineu de Lião (morto em 202) discípulo de Policarpo (convertido por São João), aparece a primeira repartição dos símbolos entre os evangelistas; ela repousa no texto do Apocalipse e a consideração do início de cada evangelho. A seguir excertos de seu tratado Contra as Heresias (III, XI, 8):
11,8. Por outro lado, os evangelhos não são, nem mais nem menos, do que estes quatro. Com efeito, são quatro as regiões do mundo em que vivemos, quatro são os ventos principais e visto que a Igreja é espalhada por toda a terra e como tem por fundamento e coluna o Evangelho e o Espírito da vida, assim são quatro as colunas que espalham por toda parte a incorruptibilidade e dão vida aos homens. Por isso é evidente que o Verbo, Artífice de todas as coisas, que está sentado acima dos querubins e mantém unidas todas as coisas, quando se manifestou aos homens, nos deu um Evangelho quadriforme, sustentado por um único Espírito. Por isso Davi, ao invocar a sua vinda, diz: “Tu que te assentas acima dos querubins, aparece”.101 Ora, os querubins têm quatro aspectos, e suas figuras são a imagem da atividade do Filho de Deus. Ele diz: “O primeiro animal é semelhante a leão”,102 caracterizando o poder, a supremacia e a realeza; “o segundo é semelhante a novilho”,103 manifestando a sua destinação ao sacrifício, ao sacerdócio; “o terceiro tem rosto semelhante a homem”,104 o que lembra claramente a sua vinda em forma humana; e “o quarto assemelha-se à águia que voa”,105 sinal do dom do Espírito que sopra sobre a Igreja. Os evangelhos, portanto, correspondem a estes animais, acima dos quais está sentado Jesus Cristo . Um conta a geração preeminente, poderosa e gloriosa que tem do Pai, com estas palavras: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus; e: Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito”.106 É por isso que este Evangelho está cheio de pensamentos sublimes; pois es-te é o seu aspecto. O Evangelho segundo Lucas , portador de caráter sacerdotal, começa com o sacerdote Zacarias que oferece a Deus o sacrifício do incenso, porque já estava pronto o vitelo gordo que devia ser imolado por causa da volta do filho menor. Mateus , por sua vez, narra a sua geração humana, dizendo: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão”.107 E em seguida: “A origem de Jesus Cristo foi assim”.108 É portanto, o Evangelho da humanidade de Cristo, por isso Jesus é constantemente apresentado como homem humilde e manso. Marcos, por sua vez, inicia pelo Espírito profético que do alto investe o homem: “Princípio do Evangelho; conforme está escrito no profeta Isaías…,”109 dando uma imagem alada do Evangelho. Por isso exprime-se de maneira concisa e rápida: é o estilo profético. É assim que o próprio Verbo de Deus falava conforme a sua divindade e glória aos patriarcas que viveram antes de Moisés; aos que viveram no tempo da Lei conferia função ministerial e sacerdotal; em seguida, quando se fez homem, para nós enviou o Espírito celeste a toda a terra para nos proteger com suas asas. Em suma, da forma como se apresenta a atividade do Filho de Deus assim é o aspecto dos animais, e igual ao aspecto dos animais é a característica do Evan-gelho: quadriformes os animais, quadriforme o Evangelho, quadriforme a atividade do Senhor. Por isso também foram concluídas quatro alianças com a humanidade: uma, nos tempos de Adão , antes do dilúvio; a segunda, depois do dilúvio, nos tempos de Noé; a terceira, que é o dom da Lei, nos tempos de Moisés; e a quarta, finalmente, que, por meio do Evangelho, renova o homem e as recapitula todas em si, e eleva os homens, fazendo-os levantar voo para o reino celeste.
Jerônimo
A Homilia retoma e explicita as correspondências indicadas:
À direita o HOMEM (alegre) | Mateus | "aquele que raciocina" | Nascimento do Redentor |
À esquerda o BOI (triste) | Lucas | "Aquele que é sacrificado" | Crucificação |
À direita o LEÃO (alegre) | Marcos | "aquele que é forte e seguro" | Ressurreição |
Acima a ÁGUIA | João | "aquele que é celeste e eterno" | Ascensão (ou melhor: o Verbo assentando junto ao Pai) |
Vemos três sistemas diferentes:
sacrifício táurico | Lucas |
realeza leonina | João |
nascimento humano | Mateus |
espírito de profecia (águia) | Marcos |
Touro | Marcos |
Leão | Lucas |
Homem | Mateus |
Águia | João |
Touro | Lucas |
Leão | Marcos |
Homem | Mateus |
Águia | João |
Há acordo entre os três no tocante a Mateus; Irineu de Lião e Jerônimo estão de acordo sobre Lucas = Touro; Atanásio e Jerônimo estão de acordo quanto João = Águia.
Agostinho de Hipona fala do Tetramorfo no capítulo VI de sua obra Concordância dos Evangelhos; conhece o sistema de Irineu de Lião que cita para rejeitar mas parece ignorar o de Jerônimo, propondo as seguintes correspondências:
Leão | Mateus |
Homem | Marcos |
Boi | Lucas |
Águia | João |
"Ninguém duvida, diz ele, da correspondência do Boi com Lucas. Três dos símbolos são terrestres (o leão, o homem, o boi) acima como uma águia, voa João".
É visível que os símbolos dos evangelistas correspondem aos antigos símbolos zodiacais dos equinócios e dos solstícios, quaisquer que sejam as repartições entre os quatro evangelistas destes símbolos. Todavia, quando da fixação das datas das festas dos evangelistas o conjunto que foi instituído estabeleceu um sistema diferente de coordenadas retangulares que assim se resume:
Marcos | 25 de abril | Touro | Antigo equinócio da primavera |
Mateus | 21 de setembro | Libra | Equinócio de outono |
Lucas | 18 de outubro | Libra | Antigo equinócio de outono |
João | 27 de dezembro | Capricórnio | Solstício de inverno |
A aproximação que Jung faz com os quatro filhos de Horus é portanto bastante justificada.
É possível considerar que o Tetramorfos representa a quebra da imagem sintética da Esfinge. Significa que, pelo fato da Encarnação, aos mistérios do antigo Egito se substitui a Palavra una e quádrupla, expressa nos Evangelhos.
Paralelamente ao mistério do Deus único em três pessoas afirma a existência de uma verdade única, segundo quatro modulações diferentes. O Cristo é sacrificado até o fim dos tempos e, quando da Parusia, será acompanhado dos Quatro Viventes.
Mas esses não cessam de planar sobre o mundo, marcando a unicidade de Deus, apesar da diversidade das aparências. assim se explica a presença de representações dos Viventes sobre tantas cadeiras escultadas, em particular na Itália do Norte.
A especulação gnóstica pôs os doze apóstolos em relação com os signos do zodíaco. Esta questão foi estudada por P. Saintyves em seu livro Deux mythes évangéliques: les douze apôtres et les soixante-douze disciples (1938). Todavia, nesta obra de 300 páginas busca-se em vão um quadro de correspondência entre os apóstolos e os signos, assim é a complexidade do problema.