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Antiguidade Ocidental

Gnosticismo (Hino da Pérola) – Texto e análises

Filósofos e Pensadores

quarta-feira 30 de agosto de 2023, por Cardoso de Castro

      

Texto e análises de Manuel João de Ramos, Bentley Layton  , Émile Gillabert   e outros

      

Texto

Hino de Judas   Tomé o Apóstolo no País dos Indianos

Mais conhecido como Hino da Pérola

Quando era um infante muito jovem para falar, no palácio de meu pai  ,
Repousando na riqueza   e no luxo daqueles que me nutriam,
Meu pais   equipou-me com suprimentos e enviou-me do Oriente, nosso país, em uma missão.
Da riqueza de seus tesouros me deram uma grande carga,
Que era leve  , de modo que poderia carregá-la por mim   mesmo —
A carga consistia de ouro das terras altas, prata dos grandes tesouros,
Joias de esmeraldas da Índia e ágatas de Kosan;
E armaram-me com metal (gr. adamas).
Retiraram-me a minha veste   cravejada de joias e adornada de ouro
Que, por seu amor, haviam feito para mim, e meu manto púrpura (de cor amarela, em Bentley Layton  ), confeccionado na minha exata medida.
 
Fizeram um acordo comigo,
Imprimindo-o em minha mente  , de modo que eu não pudesse esquecer, e disseram,
“Se desceres ao Egito   e trouxeres de lá a única pérola,
Que reside lá próximo ao dragão devorador,
Porás de novo a veste cravejada de joias e o manto, que gostas;
E serás um arauto para o reino, juntamente como teu bem-lembrado Irmão”.
 
Assim parti do Oriente, em um difícil e assustador caminho  , acompanhado de dois   guias;
Pois estava desacostumado de nele viajar.
Atravessei os limites do Mosani, onde há a pousada dos mercadores viajantes orientais;
E alcancei a terra   do babilônios.
 
Do momento que entrei no Egito os guias partiram que viajavam comigo,
E corri diretamente ao dragão e acampei próximo a sua toca,
Dispondo-me em espera de que ele ficasse sonolento e caisse no sono, de modo que pudesse apoderar-me da pérola.
Estando por conta própria, pus um disfarce e teria parecido um estranho até mesmo para meu próprio povo.
Mas lá avistei um Primo meu do Oriente — uma pessoa livre,
Graciosa, simpática, e jovem, um filho de membros da corte:
Que veio e me fez companhia,
E com quem fiz amizade   e parceria em minhas viagens; tive como um companheiro constante;
E exortei a guardar-se do egípcios e da interação com suas impurezas.
Então vesti seu estilo de vestimenta, de modo a não poder parecer com alguém que fosse estrangeiro
E viesse de fora para pegar a pérola, evitando que o egípcios incitassem o dragão contra mim.
Mas de alguma maneira eles souberam que eu não era de suas terras.
Deram-me uma mistura de esperteza e malícia  , e saboreei seu alimento.
Não mais reconheci que era um filho do Grande Rei, mas ao invés agi como servo   a rei deles.
E até mesmo vim à pérola pela qual meus pais me enviaram nesta missão mas afundei em profundo sono sob o peso de seu alimento.
 
Agora, meus pais também me notaram sofrendo estas coisas, e sofreram por mim.
Então uma proclamação foi anunciada em nosso reino, que todos deveriam estar presentes a nossa corte.
E em seguida os reis de Parthia (gr. parthenia   = virgindade), aqueles em ofício, e os líderes do Oriente
Decidiram que em meu caso eu não deveria ser deixado no Egito.
Assim, também, os membros da corte escreveram-me declarando o seguinte:
“De teu pai o Rei dos Reis, tua mãe que rege o Oriente,
E teus Irmãos, que estão em segundo após eles,
A nosso filho no Egito. Paz  !
Levante-se, e torne-se sóbrio, fora de teu sono.
Ouça às palavras escritas nesta carta.
Lembre-se que sois filho de reis.
Caíste sob um servil jugo  .
Traga à mente   tua veste adornada de ouro,
Traga à mente a pérola para a qual foste enviado em missão ao Egito.
Teu nome foi chamado ao livro da vida,
Juntamente com aquele do teu Irmão, que tomaste para ti mesmo, em nosso reino.
 
Então o rei confirmou-a, como um embaixador,
Por cauda da ameaça dos filhos babilônicos e dos demônios tirânicos do Labirinto.
Mas de minha parte tive um toque quando percebi sua voz.
E tomei-a e beijei-a, e li.
Mas o que lá estava escrito concernia aquilo que estava gravado em meu coração  .
E ali mesmo lembrei que era um filho de reis e que meu povo demandava minha liberdade.
Também lembrei-me da pérola pela qual fui enviado em missão ao Egito,
E o fato que vim contra o temível dragão para pilhagem.
E submeti-o pelo apelo ao nome de meu pai.
E arranquei a pérola, e voltei para levá-la a meus pais.
E retirei as roupas sujas e deixei-as para trás na terra deles.
Imediatamente, fui direto para o caminho conduzindo à luz de nossa morada   Oriental.
E enquanto no caminho descobri descobri um ser feminino  , que me alçou.
Assim me retirou do sono, dando como tal um oráculo por sua voz, com o qual ela guiou-me para a luz  ;
De fato, as vezes eu tinha a veste real de seda diante de meus olhos;
E como o amor familiar dirigindo-me e atraindo-me, passei pelo Labirinto.
E deixando para trás Babilônia, à esquerda, alcancei Meson  , que é uma grande costa,
 
Mas não podia recordar meu esplendor;
Pois, ainda pouco era uma criança e muito jovem que tinha deixado para trás no palácio de meu pai.
Mas quando subitamente vi minha veste refletida como em um espelho  ,
Percebi nele a mim mesmo por inteiro,
E através dele reconheci e vi a mim mesmo.
Pois, embora derivamos do uno e mesmo fomos parcialmente divididos; e então de novo somos unos, com uma única forma.
Também os tesoureiros que trouxeram a veste
Eu os vi como dois seres, mas lá existia uma única forma em ambos,
Um único signo   real consistindo de duas metades.
E eles tinham meu dinheiro   e riqueza em suas mãos, e deram-me minha recompensa  .:
A fina veste de brilhantes cores,
Que era cravejada com ouro, pedras preciosas e pérolas para dar uma impressão   adequada.
Era fechada na gola,
E a imagem do Rei dos Reis estava tecida através de toda ela;
Pedras de lapis lazuli foram agradavelmente fixadas à gola,
 
E vi, por sua vez, que os impulsos de apreensão (gnosis  ) estavam fluindo em ondas através dela,
E que estava pronta para pronunciar um discurso.
Então ouvi-a dizer:
“Sou eu que pertenço ao uno que é mais forte   que todos os seres humanos e em benefício dos quais fui designado pelo pai ele mesmo”.
E da minha parte, me dei   conta de idade madura.
E todos os impulsos reais repousam em mim, a medida que sua energia crescia:
Lançada pela mão deste ser, agarrou-se àquele que a recebia;
E uma ânsia elevou-se para apressar-se e encontrar aquele ser que a recebia;
Espalhou-se ... de cores ... fui levado de volta.
E vesti-me completamente a mim mesmo em meu manto superior real.
 
Uma vez o posto, elevei-me ao reino de paz pertencendo à admiração reverencial.
E inclinei minha cabeça e prosternei-me diante do esplendor do pai que me enviou.
Pois, fui eu que cumpri suas ordens,
E da mesma maneira foi ele que manteve sua promessa.
E eu juntei-me às portas de seu prédio real arcaico.
Ele deliciou-se em mim, e recebeu-me com ele no palácio.
E todos os seus súditos estavam cantando hinos com vozes reverentes.
Ele se empenhou para que fosse levado à Corte do Rei em sua companhia:
De modo que com meus dons e a pérola pudesse aparecer   diante do rei ele mesmo.

Caído do Céu

Graças a uma leitura comparativa da narrativa dos Atos de Tomé e de um Hino integrado no corpo daquele texto é possível adivinhar uma elaboração mais sistematizada das relações lógicas de consubstancialidade e de transformação — num contexto literário onde são manipulados elementos   narrativos que apresentam fortes analogias com a Carta do Preste João. Essas relações afetam o quadro simbólico no qual é pensada a problemática ontológica da relação do Eu com a sua «roupagem», e enquadram, através da oposição «Vestido imundo» / «Vestido de glória  », o motivo anteriormente isolado do vestuário do rei-sacerdote.

Tomé, na prisão, acusado de enfeitiçar a mulher   de Karish que se recusa a aceitá-lo na sua cama, canta um hino, o Hino da Pérola. Este hino contém uma chave fundamental para compreender em que termos se elaborou o quadro mental que permitiu imaginar a deslocação geográfica (e as transformações ética e sociológica correlativas) do Preste João, da índia para a Etiópia. Aí, é relatada uma viagem   entre o Oriente e o Egito, cujo resumo é o seguinte (.108-113):

O personagem principal (a narração é feita na primeira pessoa do singular) é filho de um rei oriental, que o envia ao Egito: trata-se de uma prova, para a qual ele deverá partir sem a «túnica brilhante» e sem a «toga, que foi medida e tecida para a (sua) estatura», prova essa que consta em procurar uma pérola que se encontra no fundo do mar, guardada por uma «serpente   de respiração ruidosa»; se vencer a prova, ser-lhe-á devolvida a sua indumentária e, promete o pai, «com o teu irmão, que é o segundo a seguir a nós em autoridade, serás o herdeiro do nosso reino» (Klijn, 1962:121); Enquanto espera que a serpente adormeça, associa-se a um jovem conterrâneo «belo e amável» [1], a quem aconselha a evitar os impuros e a disfarçar-se, como ele, com roupas egípcias; o narrador é ele próprio descoberto como estrangeiro e, ao comer comida egípcia, esquece-se que é «filho de reis», esquece a sua missão e mergulha num sono profundo; é-lhe então enviada uma carta, «do teu Pai, o rei dos reis, e da tua mãe, a senhora do Oriente, e do teu irmão, nosso segundo (em autoridade)» (Klijn, 1962:122), pedindo-lhe que acorde   e que se lembre da pérola, da prova e da toga; a carta voa até ao herói, sob a forma de uma águia   e, ao encontrá-lo, incendeia-se e torna-se fala, acordando-o; invocando o nome do seu pai, da sua mãe e do seu irmão, adormece a serpente e rouba a pérola; no percurso de regresso ao Oriente, despe o «vestido impuro e sujo» e é guiado pela carta que fala e emana luz; recebe da mão de dois mensageiros do rei (que são apenas um) a sua indumentária magnificamente decorada com ouro e pedras preciosas, bordada com a imagem do «rei dos reis», e que se torna um espelho onde o herói se revê, onde vê a sua exata imagem; o texto insiste na total identificação do personagem com o seu vestuário celeste: os dois são um   ser único, saídos de um único princípio; o próprio vestuário é animado, falando e proclamando-se a propriedade do «filho do Rei»; um e outro aproximam-se, tocam-se e unem-se; totalmente envolvido por ele, o herói sobe até à porta   do palácio do pai e oferece-lhe a pérola.

Em termos exegéticos, este hino de carácter místico e alegórico, assim como o conjunto   dos Atos, tem sido interpretado à luz das teologias cristãs e (ditas) heréticas sírias. Diversos autores têm discutido tanto as ligações entre este texto e autores fundamentais da doutrina   siríaca como Bardesan, Efraim, ou Taciano  , como as influências cristãs helênicas e orientais, os paralelos com textos apostólicos e evangélicos, apócrifos ou não, e a atração que exerceu sobre ascéticos, gnósticos e maniqueus (Henri-Charles Puech  , 1978, 11:118-121, 233-235). É discernível a presença de inúmeros elementos soteriológicos e gnósticos ao longo do texto, e uma insistência em aspectos de uma doutrina dualista em que o projeto de conversão e salvação é estruturado pelo confronto   sistemático entre corruptibilidade e incorruptibilidade, entre escravização à matéria e ao corpo, e libertação e purificação espiritual através da abstinência e da temperança. Neste âmbito, e em termos equivalentes à concepção de Taciano, a definição ascética e dualista do conceito de «alma  » como elemento intermediário entre a matéria (como indissoluvelmente ligada ao Mal, a uma criação falhada) e o Espírito divino, e portanto susceptível tanto de ser corrompida por aquela como de ser salva por este, assume um lugar central na lógica doutrinária dos Atos.

Assim, o Hino da Pérola tende a ser lido como uma alegoria   sobre a descida da alma pré-existente e imortal ao mundo material, onde corre perigo de destruição (submissão ao «rei egípcio» e entorpecimento), sobre a libertação possibilitada pela ação divina (o «acordar») e pela busca da «faísca espiritual» presente   e não dissolvida no Eu (como uma pérola no corpo da ostra), e a recompensa que constitui o regresso para junto da divindade (a devolução da indumentária e a unificação com o «rei dos reis»). Esta interpretação genérica não deve, no entanto, fazer esquecer um conjunto interessante de elementos de valor   cosmológico e simbólico que confluem no papel essencial atribuído à relação por um lado, entre o herói e a sua «indumentária» celeste (a «imagem» a que Henri-Charles Puech se refere), que, fundidos, constituem o «verdadeiro eu», o Espiritual; e, por outro a sua «aparência carnal», representada pelo «vestuário imundo» do mundo inferior, do mundo físico e terreno (Henri-Charles Puech, 1978,11:117, 121).

Em primeiro lugar, não deve deixar de ser evocado o enquadramento espacial do Hino. Está aí bem sublinhada a oposição entre o mundo oriental, onde se localiza o reino e palácio do «rei dos reis», e o Egito. Esta variável geográfica, para ser plenamente compreendida, deve ser equacionada com uma codificação simultaneamente teológica e cosmográfica: é reconhecível aqui uma assimilação  , comum tanto na tradição helênica como judaico  -cristã, entre o plano horizontal e vertical, onde o mundo oriental, extremo-asiático, é conotado com o Paraíso terrestre, o qual é em si um ponto de passagem entre a esfera   terrestre e a esfera celeste (Delumeau, 1992:37-57; Zumthor, 1993:232-233). Em contrapartida, o Egito, a ocidente, habitualmente caraterizado, na literatura enciclopédica e bíblica, pela aridez desértica e pela proliferação de répteis, surge aqui associado ao mundo inferior, das trevas, através da metáfora da serpente que se encontra no fundo do mar [2].

A possibilidade de interpretação do Hino nestes termos é reforçada pela referência a um «rei dos egípcios» ao qual o herói, esquecido da sua missão, se submete. O paralelo com a oposição cristológica canônica entre «reino terreno» e «reino celeste» é evidente, assim como é notável a dependência   de um quadro cosmográfico (e cartográfico) clássico que identifica o Oriente com o «alto». Mas uma inversão óbvia ocorre no Hino, tanto em relação à literatura evangélica em geral, como especificamente aos próprios Atos: se, nos evangelhos  , a riqueza, a ostentação e o luxo são obstáculos ao acesso ao reino celeste, se nos Atos, quando Tomé confronta Vizan pela primeira vez, a diferença   entre os dois é expressa pela aparência humilde e miserável do primeiro e pela riqueza e sumptuosidade da indumentária do segundo (.139), aqui, contrastando com o vestuário egípcio, sujo e impuro, com o qual o herói se disfarça, a sua verdadeira indumentária, que ele deve abandonar ao sair do «reino do Oriente» e sem a qual não pode entrar no palácio do «Rei dos reis», é magnificamente bordada com ouro, prata e pedrarias. Esta inversão deverá ser explicada no âmbito de um confronto mais detalhado com o texto dos Atos.

Herói do Hino

O presente exame   deve também articular outros dois motivos presentes no Hino: o do (re)estabelecimento da comunicação entre o herói «adormecido» e o seu pai, e o da dissimulação da identidade   do herói no mundo inferior. A sua análise poderá permitir uma re-leitura da mensagem soteriológica do texto e a aproximação a outros textos com uma «armadura» aparentada. O primeiro motivo contém elementos já identificados na Carta do Preste João: a carta que o «rei» envia é sequencialmente transformada em águia (ave de voo alto e de caraterísticas ígneas), fogo  , e som   de palavras (cfr. figura 41). Os elementos simbólicos (águia, fogo e palavra) diretamente conotados com o «Rei dos reis», definem, por contrariedade, um antagonismo entre o mundo oriental «superior» e o mundo «inferior» (no texto caraterizado pela serpente, o meio aquático e o ruído).

PERCURSO DO «FILHO DO REI»:

O texto sublinha bem o carácter metamórfico, transmutável, destas «manifestações» da carta enviada. Esse carácter, aqui claramente articulado com uma função de mediação entre planos geográficos e cosmológicos distintos, exige um confronto, ainda que breve, com certas informações recorrentes na literatura enciclopédica clássica onde são explorados os traços fisiológicos e etológicos particulares da fênix, ave única e eterna. Tal confronto justifica-se na medida em que as simbologias greco-romanas relativas à fênix foram retomadas pelo cristianismo, associando-a ao Paraíso (como no De ave phenice do Pseudo-Lactâncio) e ao tema da ressurreição (integrada nos bestiários como representante de Cristo).

O princípio da transmutação, que afeta as descrições do ciclo de vida da fênix, define claramente a sua função de mediador   lógico entre polos contrastantes e serve, como ilustração eloquente, para evocar a complexidade de que se reveste a comunicação entre elementos colocados em planos distintos. Nessa medida, o paralelismo entre a catábase da fênix e a carta enviada pelo rei oriental ao seu filho em perigo no mundo egípcio é óbvio e esclarecedor. O processo de transmutação que a carta sofre para percorrer o espaço que separa o mundo superior do inferior (de ave solar de voo alto ao fogo terrestre e finalmente à palavra falada) é função da dificuldade   de estabelecer (ou re-estabelecer) a comunicação entre personagens colocados em planos horizontal e verticalmente distintos e, pelo menos temporariamente, com naturezas diversas: espiritual e material.

A evocação do carácter ambíguo da fênix permite ainda enquadrar o outro motivo do Hino, atrás mencionado (o do herói disfarçado que vence a serpente e se apropria da pérola), num complexo   semântico em que categorias   como a invisibilidade e a reflexividade se articulam com funções de disjunção ou conjunção entre termos contrários. Para tal, convirá não deixar de ter presente a enunciação da problemática do combate entre adversários de naturezas contrárias e o uso de artifícios simultaneamente protetores e refletores face a um ataque   fulminante (ver atrás, p. 201). Esta problemática encontra no Hino uma elaboração de interpretação difícil já que aqui o herói, apesar de disfarçado, começa por ser reconhecido pelos egípcios e, para todos os efeitos vencido (temporariamente, pelo menos), submetido ao rei dos egípcios e adormecido pela comida egípcia; só depois de «acordado» por uma carta «caída do céu» consegue defrontar a serpente, vencê-la através da invocação encantatória dos nomes da sua família oriental, reentrando finalmente, envolvido na sua indumentária de luz, no reino oriental.

O insucesso inicial do herói, que constitui uma novidade temática em relação a outros textos analisados, é função da insistência no contraste entre «vestido impuro» (a «aparência carnal») e a «toga bordada» (a «imagem verdadeira») e da mensagem salvífica do Hino [3]. As referências anteriormente feitas a vários personagens animais  , humanos ou divinos, que combatem serpentes ou outros répteis, deixavam entender que o sucesso de um contra-ataque contra adversários rastejantes provinha precisamente do recurso a um tratamento ambíguo das categorias Alto/Baixo. No Hino, o herói, despojado da sua identidade oriental e «superior» (representada na indumentária bordada com a imagem do «pai»), coberto apenas com um «vestido impuro», parece indefeso para resistir ao mundo inferior egípcio; é a mensagem paterna (vinda do Oriente e do «alto»), evocação alegórica do Espírito Santo, na sua expressão mais «baixa», isto é, não como águia, não como fogo, mas como palavra falada (não divina mas humana), que re-estabelece a ligação do herói ao «alto», acordando-o e relembrando-lhe a sua missão. É ainda a palavra (a invocação encantatória) o instrumento escolhido pelo herói para «adormecer» a serpente guardiã da pérola.

O Hino permite diversos níveis complementares e intercruzados de interpretação, enquanto proposta autônoma de reflexão gnosticizante e platônica sobre o destino individual do invólucro corporal, do invólucro espiritual e da alma, prisioneira da matéria (Henri-Charles Puech, 1978, 11:118-121; 233-234). É também legível como uma alegoria da história da humanidade desde Adão, que foi desapossado da sua indumentária luminosa e obrigado a vestir um «vestido imundo» [4], passando pelo envio da «carta» salvadora (interpretável como metáfora da transmutação humana de Cristo e/ou do Espírito Santo), até à ascensão final dos justos para junto da divindade (o «rei dos reis»).

Contexto (Atos de Tomé)

Se for aceite como plausível a concepção de que o próprio Hino se constitui como uma mensagem de origem celeste enviada ao apóstolo, então torna-se clara a sua função no (con)texto dos Atos: a de descrever, em espelho, a missão de Tomé. É, por isso, coerente propor uma identificação posicionai entre a figura de Tomé e a do «filho do rei», sobretudo fazendo apelo à problemática mencionada atrás envolvendo a correlação seguinte:

Aparência : Imagem (verdadeira) Corpo : Espírito

O Hino entreabre assim as portas a uma interpretação semanticamente mais rica dos Atos relembrando outro nível de leitura do texto. A inversão isolada constitui, ali, uma exemplificação de carácter alegórico do problema enunciado atrás sobre a necessidade   de distinção entre «aparência carnal» e «imagem espiritual», que afeta negativamente não apenas o corpo mas toda a matéria. É portanto como metáfora do esplendor e riqueza da natureza espiritual que a caracterização de indumentária oriental (celeste) do herói deve ser entendida. Esta formulação de carácter retórico (o que é materialmente rico é espiritualmente pobre   e vice-versa) é explicitada pelo eixo   das relações espaciais: do ponto de vista do autor (terrestre e humano) dos Atos, Tomé encontra-se a oriente, na Índia; mas do ponto de vista do autor suposto (celeste e espiritual) do Hino, a Índia encontra-se, pelo contrário, a ocidente do «reino oriental». A entoação do Hino na prisão indiana, ao fazer equivaler posicionalmente o Egito e a Índia, torna manifesto o destino comum dos dois personagens, mas denunciando duas perspectivas exatamente simétricas na definição dos limites (oriental e ocidental) dos seus percursos: na prisão indiana, a aparência corporal de Tomé encontra-se no ponto extremo da sua viagem material para oriente, e é como que intersectada (trespassada) por uma mensagem divina que denuncia a presença do seu verdadeiro Eu, «estrangeiro», em viagem espiritual para ocidente.

O cumprimento da missão apostólica tem, portanto, um triplo valor disjuntivo: cosmológico, sociológico e ontológico. A vitória sobre a «serpente» é traduzida pela imposição do modelo teológico cristão no espaço indiano, e a recuperação da «pérola» exprime-se pela desanexação parcial de um soberano humano ao domínio do Diabo  , o «Príncipe deste mundo», segundo a fórmula evangélica canônica [5] — ponto de interesse   para a compreensão da mensagem político-religiosa da Carta do Preste João: a possibilidade de existência, no espaço indiano, de um tipo de soberania humana que não ponha em causa a elaboração do modelo cristão de soberania divina centrada na conjunção pai-filho, e equacione satisfatoriamente o problema levantado nos evangelhos: «Ninguém pode servir a dois reis» [6]. Em termos sociológicos, a disjunção entre um representante da «serpente», o rei pagão Mazdaï, e Vizan, o seu herdeiro, configura a possibilidade de estabelecimento de um novo projeto de soberania indiana: Vizan, tornado «irmão» espiritual de Tomé, e através dele, de Jesus, herdeiro do trono celeste, não deixa por isso de se constituir herdeiro de Mazdaï, cristianizado depois da morte de Tomé. Finalmente, a missão constitui-se como via ontológica para a separação   entre a «aparência» física e a «imagem» verdadeira, e para a libertação espiritual (acesso à imagem interior, espelho da substância divina) de Tomé: através do martírio — no ponto mais oriental e mais alto possível — o corpo sem vida retorna ao ocidente, e a alma ascende, no seu invólucro espiritual, para junto da divindade reaparecendo depois brevemente perante Vizan e Sifur (.169).

A inversão referida acima, que se encontra subjacente à mensagem teológica do Hino, ilustra eloquentemente a ambiguidade   fundamental de uma caracterização literária da ideia de «riqueza espiritual», de acordo com a tradição descritiva dos textos bíblicos: a enunciação da riqueza espiritual e a definição de um modelo de soberania celeste dependem de uma adjetivação e substantivização que se reportam à riqueza material e ctônica (ouro, prata, pedras preciosas), que caracterizam e decoram as indumentárias, os tronos, os palácios dos soberanos humanos orientais. Este ponto, aparentemente paradoxal, deve ser retido para uma adequada consideração   dos elementos descritivos do reino, palácio e indumentária do Preste João, na Carta.

É relevante verificar portanto que os mesmos elementos descritores do modelo de soberania indiana de Mazdaï e de Gundafor, posto em causa pela missão de Tomé, servem, no Hino, à caracterização do reino oriental de onde o herói é originário. Uma leitura dialéctica do conjunto permite assim sugerir que o Hino é interpretável como uma descrição da missão de Tomé, em espelho — isto é, vista do Paraíso: é o verdadeiro Eu (espiritual) que entoa o hino, ou que faz que ele seja entoado. É importante sublinhar a importância deste recurso estilístico, dado que ele poderá explicar, em parte, o tom da Carta do Preste João. Esta interpretação é reforçada pelo fato de, através de uma dupla simetria da figura de Tomé, ser possível estabelecer uma equivalência formal entre as constelações familiares dos dois textos: Tomé, que é, como o herói do Hino, declarado irmão espiritual de Jesus, o herdeiro de um reino oriental divino, torna-se também, no final do relato, «irmão» espiritual de Vizan, filho de um rei humano oriental, pela nomeação deste para o cargo de diácono da igreja   indiana.

A comparação entre o Hino e os Atos reforça a ideia de que não deve ser subestimado o princípio de inversão-reflexão que afeta as categorias simbólicas expressas, consoante se referem a um ou outro dos mundos propostos (o mundo divino-espiritual, e o mundo humano-material), tendencialmente concebidos como simétricos. Através dele, torna-se possível, por um lado, incorporar, num mundo material corrompido e dominado pelo Diabo, elementos espirituais, apesar de só «aparentemente» visíveis, e por outro, imaginar um mundo espiritual paralelo através de qualificações provenientes do mundo material, mas afetadas de uma valorização oposta àquela que recebem aí.

Layton

O Hino da Pérola (“Hino da Alma  ”) ou “Hino de Judas Tomé o Apóstolo no País dos Indianos” apresenta um mito   helenístico da entrada da alma humana na encarnação corporal e sua eventual desatrelamento do corpo. O conto mítico de salvação é recontado pelo protagonista (a alma) na forma de uma reminiscência autobiográfica. O mito não demanda diretamente uma resposta   religiosa do leitor, pois é uma descrição geral da salvação. No entanto, citado dentro da história (versos 41-48) está um apelo clássico homilético pela conversão, fraseado na linguagem tradicional do sono e do despertar  . Isto foi identificado como um tipo especial de material (denominado “apelo gnóstico”) que de fato transcende os estreitos limites sectários e filosóficos.

Em sua forma conhecida, o hino é parte de uma obra maior, Atos de Tomé , que relata as peregrinações e desventuras de um pregador asceta   DIDIMO JUDAS TOMÉ e os milagres realizados com a ajuda   de seu irmão gêmeo Jesus.

Gillabert

A riqueza do simbolismo deste escrito gnóstico compensa em muito seu estudo. A história é inteiramente centrada na significação da Pérola. Há identidade entre a Pérola e o princípio divino do Príncipe. E esta identidade é a chave que nos abre à compreensão verdadeira do poema. A aventura do Príncipe é aquela de todo homem, todavia com uma diferença que a maior parte dos homens permanecem prisioneiros de seu ego e não chegam a descobrir sua identidade verdadeira. O relato não toma todo seu sentido senão para aqueles que se desembaraçam pouco a pouco de seus velhos vestimentos para alcançar o Despertar. Como o Príncipe, conhecem as aleias do destino humano, como ele, estão sujeitos às condições da existência.

O Oriente é o símbolo da estadia celeste, o Reino do Pai, do qual Jesus diz que é dos "pequeninos". É o "lugar da vida", o qual é anterior   às divisões; seu nome é também Plenitude  . O Príncipe à princípio conheceu o paraíso dos pequeninos, aquele que está a montante da escravidão de nossas estruturas mentais. O homem prisioneiro de seu mental vive no transitório, o impermanente, o ilusório, enquanto sua natureza profunda é o Si, o Absoluto, o Pai.... O Príncipe, no curso de peregrinação terrestre , vai conhecer as servidões do mental, como o pequenino tem contato com os diversos condicionamentos de sua entourage. É a maravilha que é posta na pobreza   (article 9951). Mas o estado   de pobreza, que persiste até que o mental seja dissipado, e de certa maneira um estado maravilhoso, pois é a ocasião do "retorno", ou mais exatamente, vai permitir a constatação que no fundo jamais partimos. Constatação maravilhosa que faz Jesus dizer: "Feliz aquele que já era antes de existir" (Evangelho de Tomé - Logion 19).

Os pais enviam o Príncipe com víveres e riquezas para a viagem: são os dons que temos na partida da vida e que trata-se de desenvolver conscientemente; eles vão permitir a estrutura  ção do indivíduo graças ao jogo   de compensações, as quais não podem se elaborar senão se o pequenino viveu em um meio de relativa segurança. Com efeito, o enfrentamento do mundo exterior não é realmente possível e fecundo senão se o clima foi no início confiante e segurador. Caso contrário a "viagem" não pode se fazer ou, se empreendida, estará semeada de obstáculos dentre os quais alguns intransponíveis. Pois, não esqueçamos, a aventura não é uma projeção linear espço-temporal, uma propulsão em um lugar a uma data dada. Ela comporta um retorno que, em realidade, é tomada de consciência de nossa verdadeira identidade em relação à falsa identidade do ego que se apoia no mental. Os víveres e as riquezas dadas na partida permitirão descobrir a Pérola única. A maioria das pessoas vivem sob o prisão total do mental e não alcançam jamais o processo de retorno. Tudo se passa para eles como se a Pérola não existisse ou como se pudesse encontrá-la na afirmação maior do ego. Elas se identificam ao "dragão do sopro que queima". Eis porque não é mais questão de revestir a roupa de luz e se torna o herdeiro do Reino. Não é a sorte reservada ao Príncipe do Hino da Pérola nem àqueles que chegam a se liberar das servidões do mental. Depois de provações, múltiplas e frequentemente terríveis, eles se lembram de sua origem e dela experimental uma nostalgia incurável. A partir deste momento, o caminho consiste em eliminar a ignorância que atrasa a visão justa. Em linguagem simbólica, significa para o jovem Príncipe, encontrar a Pérola Única que o dragão detém. A aventura está ligada ao afastamento   que é ao mesmo tempo obscuridade, trevas, em seguida à lembrança da natureza luminosa original, a qual permite a tomada de consciência do lugar de onde viemos. A respeito dos gnósticos, é dito no Evangelho da Verdade: "era uma grande maravilha que fosse ao Pai sem o conhecer e que tivesse podido deles mesmos se evadir para fora, posto que não podiam compreender nem conhecer Aquele em quem eles estavam".

A "saída" é simbolizada no relato pela descida ao Egito onde se encontram ao mesmo tempo o dragão e a Pérola. Além do mais, o mar e as águas são um símbolo, corrente entre os gnósticos, do mundo das trevas que obscurecem o Divino. No entanto, a origem   divina do Príncipe, está escrita em seu coração para que, vindo o momento, no mais forte das trevas, ele ainda se recorde. No entanto, como para qualquer um, lhe será necessário o abandono, a solidão, as perdições, as torpezas. No início, como é inexperiente e a via perigosa, seus pais o fazem escoltar por guias seguros. É o tempo em que o jovem homem, para aprender   a se tornar autônomo, tem necessidade do ensinamento de um mestra. Todavia, o aprendizado não se faz realmente senão na solidão, no meio de provações de todos os tipos. O Príncipe está só, estranho no meio de homens. Encontramos aqui um tema familiar aos gnósticos (v. Hans Jonas  ), aquele do Estrangeiro. Estando NO mundo o gnóstico não é DO mundo. O sentimento   de ser estrangeiro ao mundo o mergulha na solidão e no sofrimento  . Bem-aventurada solidão, no entanto, pois se o gnóstico perdesse sua qualidade de estrangeiro, isto significaria que teria se familiarizado com o mundo. Ora, Jesus disse: "Felizes sois, solitários (monachos), eleitos, posto que encontrareis o Reino. Como dele saístes a ele retornareis" (Evangelho de Tomé - Logion 49). Numerosos textos gnósticos atestam que nossa existência terrestre é um espaço-tempo de exílio, de esquecimento  , de ignorância, de embriaguez   e de sono. É esta é bem a condição que é aquela do Príncipe. No entanto encontra um jovem homem, solitário como ele e com quem pode fazer trocas. Novos gnósticos em um mundo preso ao extravio e à degradação, temos a chance, como o Príncipe de poder compartilhar com raros amigos o que constitui nossa razão de viver  . No entanto, apesar deste encontro privilegiado, o Príncipe, em sua preocupação de não se fazer notar — Jesus adverte para sermos prudentes como as serpentes e puros como as pombas — se veste como todo mundo. Todavia, algo transparece da "unção divina" que é marcado e assim para ser mal visto por todos e excite o dragão contra ele. Constatamos que o fato de vir e de ser "estranho" suscite no homem mundano um sentimento misto de inveja  , surpresa, medo e agressividade, segundo dosagens variadas. Para tentar suprimir esta espécie de mal-estar, o Príncipe aprende por duras penas que não possui a prudência da serpente. Se deixa conduzir pelos habitantes do lugar chegando a esquecer sua origem real e a Pérola, razão de sua estadia no país do Egito. Afunda-se em profundo sono, total letargia. Os momentos privilegiado são seguidos, principalmente no início, de períodos   de obscuridade mais ou menos longos.

Toda a passagem do relato onde o Príncipe parece se deixar irremediavelmente levar para os bens deste mundo a ponto de de se tornar DO mundo estigmatiza as ações do mental. Este busca captar a confiança e nos tornar escravos de seu comportamento  : "eu servi seu rei", afirma o Príncipe. O símbolo da bebida e do alimento tem um duplo sentido.

Como escapar   da besta que quer nos fazer prisioneiros? A liberação só é concebível se deixamos em nós falar a voz das origens. Ela é liberadora na única condição de escutarmos sua mensagem. Mas ela não é somente logos  , é também contemplação "daquilo que o olho não viu" (Evangelho de Tomé - Logion 17), dito de outro modo: Visão de nossa Face Original. Assim o Príncipe não está mais sob o domínio do ego; ele se identifica com a Palavra e com a Visão.

Quando evoca os nomes de seu Pai e de sua Mãe, remonta à origem da vida — à união do Yin-Yang  . é o Logos que fala por sua boca, ele se fazendo uno com ele, numa evocação que é suficiente para encantar e fazer adormecer o dragão. E a partir do momento que se ampara da Pérola, ele se faz uno com ela. deixa seu vestimento sórdido, reencontra sua veste de luz que deixou pequenino, e da qual tinha esquecido o esplendor.


Ver online : GNOSTICISMO


[1O tema do «jovem belo e amável» (um anjo?) que surge no Hino é corrente, tanto na literatura apócrifa (e, nomeadamente, nos Atos de Tomé, . 152), como nos textos canônicos: cfr. Mateus, XXVIII, 2-3; Marcos, XVI, 5; Lucas, XXIV, 4; João, XX, 13.

[2Cfr. Isaías, XXVII, 1 e Salmos, LXXIV, 14, sobre o Leviatã.

[3Se o Hino tem uma mensagem soteriológica, ela tem um cariz gnóstico e em nada é ecumenicamente redentora: o «filho do rei», o «estrangeiro», — deixa, intocada, a impureza do mundo baixo e apenas se salva a si próprio, e à pérola (identificada com a «faísca de luz» alógena prisioneira do corpo, na teologia gnóstica: Klijn, 1962:277-n.l).

[4A terminologia usada no Hino encontra ecos em Efrem - Efraim, um dos autores sírios mais influentes e um dos primeiros que refere a ligação entre Tomé e a índia, bem como a origem do seu culto em Edessa: nos Hinos sobre o Paraíso, Efraim escreve sobre os «filhos da luz» (X,6), habitantes do Paraíso, que vestem «roupas de luz» (VII,5), as quais constituem o «hábito de glória» do qual Adão foi desapossado (XV,8).

[5João, XII, 31; XIV, 30; XVI, 11.

[6Mateus, VI, 24; Lucas, XIII, 13.