Página inicial > Antiguidade > Caeiro: saúde é a excelência (arete) da vida corporal e psíquica?

Antiguidade Ocidental

Caeiro: saúde é a excelência (arete) da vida corporal e psíquica?

Filósofos e Pensadores

quinta-feira 24 de março de 2022, por Cardoso de Castro

      

Excerto   de CAEIRO, António de Castro  . A arete   como possibilidade extrema do humano. Fenomenologia da práxis em Platão e Aristóteles. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa   da Moeda, 2002, p. 27-31

A «excelência de cada coisa é arranjada e posta numa ordem   [κόσμος - kósmos] através de uma estrutura   organizativa [τάξις   - táxis]». Quando uma excelência está presente  , em virtude de   uma ordenação, cada coisa obtém a possibilidade de se tornar autenticamente nela própria, isto é, de se realizar plenamente. Há uma excelência do artefacto (σκεύος), do corpo vivo (σῶμα  ), da existência humana (ψυχή  ), de todo o ente   vivo (ζώο  ν) que é estruturalmente a mesma, a despeito da heterogeneidade das entidades que possa constituir. Em cada ente reluz um mesmo είδος que se constitui não por acaso, mas pela presença de três elementos   intrínsecos, a ordenação, a correcção e a capacidade de produção que é doada a cada um deles.

A partir de que base fenoménica podemos compreender o sentido daqueles enunciados? Quais são as estruturas elementares que temos de ter em mira para acompanhar em todas as suas dimensões o sentido da «excelência» de qualquer coisa? Como é que todos os entes podem tornar efectivas as potencialidades de que dispõem? Como é que cumprem, autêntica e genuinamente, as suas funções específicas? Qual é o sentido para a estrutura ontológica, cuja significação está encerrada nos termos «organização estruturalmente constituinte» (τάξις) e «ordenação constituinte» (κόσμος)? De que forma uma e a mesma estrutura pode «qualificar» do «mesmo modo» entes tão diferentes uns dos outros como, por exemplo, uma «casa» e a «alma humana»? O problema consiste em perceber a validade de uma enunciação que pretende abranger o conjunto   das regiões dos entes no seu todo, a partir de uma concretização do seu sentido em cada ente, e sobretudo do sentido da «excelência humana». A tarefa fundamental a levar a cabo é o apuramento do modo como podemos experimentar a excelência humana como organização estruturante (τάξις). Isto é, de que forma se pode encontrar ou não uma concretização do sentido da «excelência» no humano, a partir da determinação «eidética» da «ordenação», da «ordem», da organização estrutural.

A fórmula «organizado estruturalmente e ordenado constitutivamente por uma organização estrutural constituinte» (τάξει τεταγμένον τε και κεκοσμημένον) traz à expressão a possibilidade de em cada ente, qualquer que ele seja, cada elemento particular que o constitui se adequar e adaptar a todos os outros. O modo, porém, como o sentido dessa ordenação se concretiza tem de ser necessariamente diferente de região de entes para região de entes. Consideremos, por exemplo, uma casa enquanto um ente da região dos apetrechos e do equipamento (σκευή). Uma casa é boa (χρηστή) se as suas partes forem bem organizadas estruturalmente (τάξις) e bem ordenadas constitutivamente (κόσμος) [ordem, boa disposição  ]. Uma casa, por outro lado, é má (μοχθηρά) se ficar aquém daqueles requisitos. É o que acontece se cada quarto e todos eles no seu conjunto estiverem por exemplo mal articulados (άταξία) ou forem demasiado pequenos. A casa é má se for pouco funcional. E a má funcionalidade da casa quer dizer, in extremis, ser inabitável. A estrutura organizativa que faz da casa uma boa casa manifesta-se no grau de habitabilidade que consegue alcançar, tendo como limite desvirtuador a possibilidade da inabitabilidade. A ordenação e o princípio organizativo que a fazem excelente está, assim, para além da própria casa na sua essência. Casa é tudo aquilo que, no mínimo, pode ser habitado. Uma casa excelente, no entanto, ultrapassa estas meras características. A sua excelência é determinada pelo bom desempenho das suas funções específicas.

O mesmo acontece para os outros entes tomados em linha de conta, o corpo próprio (σῶμα) e a lucidez humana (ψυχή). Nós dizemos que o corpo está em forma, em boa condição, em bom estado   [1], quando atinge certa ordem e boa disposição, as quais, por sua vez, se concretizam na saúde e na força ou na exponenciação dessas possibilidades. Podemos perceber que um corpo de boa saúde é uma condição necessária mas não suficiente para falarmos de um corpo excelente. O corpo de um atleta requer uma boa saúde. Mas a sua excelência radica no partido que tira dessa condição, no facto de usufruir   de todas as possibilidades de que à partida dispõe. A excelência (άρετή) do corpo próprio (σῶμα) é apurável de uma forma espantosa, pela possibilidade de se tornar saudável, quando está em mau estado, ou então, na pior   das hipóteses, quando está doente. A concretização do sentido da estrutura organizativa, de ordenação e arranjo das partes constitutivas não implica a «funcionalidade-disfuncionalidade» de um apetrecho (σκεύος), mas a saúde ou a doença do corpo humano. Um corpo doente não executa as possibilidades que lhe estão atribuídas, ou então apenas as realiza deficientemente. Anda, dorme ou come mal.

Para a tematização da vida [2] — não apenas da humana mas de toda a sua forma de manifestação enquanto tal, de tudo quanto se gera —, é necessária a consideração   do seu limite extremo, a morte ou qualquer outra forma de perecimento e destruição. O viver   é o contrário do morrer   como o acordar é o contrário do adormecer. Este pensamento   de fundo procura apontar para o modo como, em geral, há uma articulação e uma tensão entre os limites que estão em causa  . O viver (τό ζην) pode ser expressão de uma forma de excelência (άρετή) na medida em que é pensado como a força que permite a qualquer ente vivo não perecer ou destruir-se e continuar em vida. Permite-lhe sobre-viver. O sentido da τάξις é experimentado na manifestação da vida como a ordenação organizativa que constitui a aptidão e a disposição intrínsecas que fornecem a todo o ente vivo em geral a possibilidade de se agarrar à vida e de não perecer, permitindo-lhe viver o máximo de tempo possível. Em causa não está a qualificação da vida, se ela se processa em boas [3] ou em más condições, mas tão-só a pura possibilidade de roubar sempre e continuamente um instante   à morte, ao que impede, portanto, a continuação e a manutenção da vida. Viver doente do corpo ou da alma pode ser um mal. Mas a análise da excelência (αρετή) da vida neste nível de consideração pergunta só pela possibilidade de levar a morte de vencida, quaisquer que sejam as condições para essa persistência e insistência.

A tematização da lucidez humana (ψυχή), tendo em vista a τάξις, pode não se manter na neutralidade da qualidade   da sua subsistência. A desordenação que a desvirtua e perverte é de uma natureza diferente da mera persistência em vida. Alguém em coma mantém-se em vida, não encontrou a morte, e, no entanto, não tem nenhuma relação com essa forma de subsistência. O seu préstimo (χρήσις) só se constitui quando ela atinge uma certa ordenação e uma certa disposição. Só que agora a concretização deste sentido geral da manifestação da excelência (αρετή) na lucidez humana (ψυχή) não pode ser determinada a partir da funcionalidade ou não de um determinado objecto de uso, nem do bom ou mau estado do corpo humano, apurado pela presença, respectivamente, da saúde e da doença, nem tão-pouco da sua manutenção em vida. A compreensão do sentido da excelência (αρετή) depende da presença da justificação e da justiça (δικαιοσύνη  ), da consciência tranquila (σωφροσύνη  ) [4], da perseverança viril (ανδρεία) ou da santidade   (δσιότης), ou, como veremos do fundamento requerido para a presença da excelência (αρετή) no homem  , a possibilidade de se lhe expor, de ter em vista uma qualquer das suas manifestações. Essa possibilidade de exposição da excelência (άρετή) a si própria é trazida à expressão pelos termos saber (επιστήμη) ou consciência (φρόνησις  ). Como é possível que para todas as formas de manifestação e diferentes matizes da excelência (αρετή) haja um e o mesmo fundamento: a organização estrutural (τάξις) na lucidez humana (ψυχή)?


[1A própria linguagem natural permite-nos estabelecer as diferentes concretizações do sentido da «ordenação». Nós não dizemos, por exemplo, que uma casa está em «boa forma», mas dizemo-lo do nosso corpo. De uma casa dizemos que está em «bom estado». Uma boa casa e um corpo em boa forma são diferentes modos de concretização do sentido da «ordenação» que assiste à presença da «excelência» de cada ente.

[2Os viventes não vêm à existência de nenhum outro modo a não ser a partir daqueles que estão mortos.

[3Não podemos dizer que um animal que mata para sobreviver age mal, nem que todo o esforço gigantesco que leva a cabo para assegurar a subsistência das crias é excelente.

[4Gór., 504d3. A tradução usual de σωφροσύνη é «temperança». Como teremos, porém, oportunidade de ver, este sentido é uma especificação daquela alma que tem ο φρήν posto a salvo e tranquilo.