Não apenas os beócios é que não pensam. Os próprios atenienses renunciaram ao pensamento quando em Sócrates , Platão e Aristóteles a filosofia inaugurou sua avalanche histórica. Para Hegel , a filosofia é uma época concentrada em pensamentos. Para os primeiros pensadores, pensar é acordar o não pensado, acionar a inércia de pensamento de uma tradição histórica. É o que fizeram recuperando a tragédia da poesia e mitologia vigente na consciência de sua época, da religião, da política, da educação. Na crítica aos poetas, aos mitos e cultos buscavam desinstalar a consciência de uma luz sem sombras, de uma verdade sem mistério, de um dia sem noite, de uma vida sem morte. O pensamento surgiu, quando o trágico obscureceu a claridade do racional e do irracional, do físico e do político, do mito e do culto, do desespero e da salvação.
Só não devemos entender o trágico no sentido filosófico da tradição. Neste sentido, tragédia é desgraça , a queda das alturas, a transformação súbita ou paulatina da glória em sofrimento . Trágico é o abandono desesperado do homem às forças da natureza, à vontade dos deuses, à fatalidade do destino. Onde impera a desolação, onde não há salvação humana possível, há tragédia. Apesar de fundamentais diferenças, os mistérios de Eleusis, a razão filosófica, a pregação do cristianismo, o poder da ciência, o progresso da técnica, a força do trabalho , a sociedade sem classes aceitaram este sentido de trágico e procuraram dar cobro à tragédia da condição humana com um evangelho de salvação. A situação de Jó, sentado num monturo de estéreo a raspar as chagas do corpo, não é trágica. Jó não é um aniquilado. Vive da fé no Senhor: "O Senhor deu, o Senhor tirou, louvado seja o nome do Senhor". Em sua atitude de confiança não há tragédia. Tudo que lhe parece sem saída, possui um desígnio de salvação na sabedoria , na bondade e na justiça de Deus . Sempre que se crê numa salvação seja da parte da religião ou da filosofia, seja da parte da ciência ou do trabalho, seja da parte do progresso ou da sociedade, a existência perde os acentos trágicos, apesar de todo sofrimento, de toda desventura, de todas as lutas. Nenhuma dor é tão desesperada, nenhuma desgraça é tão desolada que já não haja salvação. O sentido filosófico de tragédia se orienta pelo homem. Restringe-se a determinada linguagem da condição humana.
A consciência de poesia, de mito, de política, de educação e culto que reinava no século VI AC, prende-se a este sentido humano da tragédia. O pensamento dos primeiros pensadores gregos questiona-lhe o humanismo, buscando restituir o mistério da tragédia originária. Trágico é o jogo de Dionísio na identidade universal das diferenças. A tragédia não é uma condição simplesmente humana. É o ser da própria realidade. A totalidade do real, o espaço-tempo de todas as coisas, não é apenas o reino aberto das diferenças, onde tudo se distingue de tudo, onde cada coisa é somente ela mesma, por não ser nenhuma das outras, onde os seres são indivíduos, por se definirem em estruturas diferenciais. A totalidade do real é também o reino misterioso da identidade, onde cada coisa não é somente ela mesma, por ser todas as outras, onde os indivíduos não são definíveis, por serem uni-versais, onde tudo é uno — Frag. 50: hen panta. No movimento de sua realização , a realidade é tanto o horizonte em expansão da luz de todas as singularidades como a uni-versalidade protetora da noite, onde todos os gatos são pardos. A noite dá à luz os indivíduos para no fim do dia os recolher em seu seio materno. O mundo é a articulação das diferenças de Dionísio Zagreu, dividido e fragmentado, com a identidade de Hades , simples e indiferenciado. Na tensão desta tragédia o homem assume as dimensões ontológicas de uma uni-versalidade individual. É a coisa mais estranha do mundo, to deinotaton. Nele advém a si mesma a estranheza do próprio mundo. Sua existência é um contínuo romper e prorromper de estruturas nas quais lhe é dada uma fisionomia, um sentido, uma lei. Tanto nos indivíduos como nas comunidades, a constituição humana transcende o querer das vontades porque quer sempre a ordem e con-juntura do cosmos. O homem não é micro-cosmos no sentido de miniatura do mundo. O homem é micro-cosmos no sentido de con-juntura da identidade, isto é, de con-juntura em que se juntam as diferenças no ser de tudo que é. E-ducar é e-duzir, ex-trair da individualidade de cada um a con-juntura uni-versal do mundo: paideia . O paradigma da paideia, os gregos o buscam na luta de seus mitos entre as forças noturnas da terra e as forças diurnas do céu, entre os titãs e os olímpios. Em estórias profundas de deuses e heróis, a mitologia grega narra as vicissitudes desta luta do princípio luminoso do espírito contra o princípio tenebroso da natureza. Os feitos de Hércules são os feitos da existência grega no caminho paideia.
Para os primeiros pensadores este para-digma é ainda humanista. Não atinge a tragédia originária. Trata-se de um apo-digma. Reflete no país dos homens o embate misterioso entre os poderes da Physis mas sem poder pensá-la como physis - aqui. Aquém da configuração de determinados deuses, mais originário do que os próprios deuses, é o combate da identidade nas diferenças de dia e noite, de vida e morte, de caos e eros , levado para a linguagem em palavras como chreon, moira , anagke lethe , de um lado, e Zeus , Helios , Logos , Nous, de outro. É o combate originário do mundo que instala todas as diferenças nas estalas de suas identidades. Heráclito o pensou como polemos, como guerra: "De todas as coisas a guerra é pai ; de todas as coisas « senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres" (Frag. 53). Não suportando o combate originário do pensamento, a consciência vigente ouve nos feitos de Hércules apenas a fama e vê somente a vitória do Herói. No entanto, Hércules nunca é vencedor definitivo. Não pôde suplantar o princípio noturno-feminino da terra. Por muito tempo é escravo de Ônfale. Necessita da ajuda das Hespérides e morre na túnica de Nessos, que lhe dera Dejanira. Também Zeus, o deus diurno do raio , não é um vitorioso definitivo. Seu domínio se funda na força dos Titãs que sustentam o Olimpo. É que a luz recebe a luminosidade de seus raios do combate com as trevas. Uma claridade sem sombras é uma onipotência impotente. Não ilumina, cega. Luz e trevas, espírito e matéria, história e natureza, céu e terra, o racional e o irracional, ordem e caos, eros e penia recebem a potência de seus poderes de ser de um combate sem tréguas. Neste combate originário toda vitória é aparte. Trata-se apenas de fenômeno de superfície.
E não obstante, a pretensão de uma vitória definitiva do princípio racional da luz, de um império eterno do Olimpo de Zeus, que alimenta a religião e a mitologia dos primeiros tempos, vai servir de base para a fundação da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, quando o pensamento trágico dos pensadores dos séculos VI e V chegar gloriosamente ao fim nas grandes Tragédias. A filosofia surge então como ocaso do Oriente e aurora do Ocidente na história grega. Vespertinos do Dia Ocidental, já não sentimos com tanta facilidade a profundeza de revolução que significou a filosofia para toda a existência dos gregos. Estamos plantados num solo, cuja solidez devemos precisamente à ruptura metafísica no curso do pensamento e da poesia. O que dessa ruptura prorrompeu, como estrutura e modelo de mundo, como princípio e técnica de conhecimento, como gramática e lógica de linguagem, como norma e conceito de valor , nos determina mais radicalmente do que costumamos suspeitar. Seguimos na esteira da metafísica ainda quando não queremos nada com filosofia e nos entregamos de corpo e alma a fazer guerra para podermos respirar o ar poluído pelos derivados de petróleo, ouvir os altos decibéis de uma civilização motorizada ou absorver as massagens dos meios eletrônicos de comunicação de massa .