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Antiguidade Ocidental

Châtelet (Filosofia) – Origem do discurso filosófico

Filósofos e Pensadores

quinta-feira 24 de março de 2022, por Cardoso de Castro

      

Em resumo, a filosofia é grega, ela é filha da Cidade, da Cidade democrática.

      

Nessa óptica, a regulamentação da continuidade   já é significação de ruptura. Mas onde e como se opera essa solução? A partir daí introduz-se o debate   sobre a origem   do discurso filosófico. Onde está o corte entre o mito   e o pensamento   racional? Estará ele presente   nesses pensadores físicos que, como Tales, tomam por objeto da interrogação decisiva os fenômenos naturais? Ou será antes preciso esperar por Heráclito   ou Parmênides  , que são os primeiros a colocar à questão do ser e, em consequência, inauguram o problema metafísico? Será conveniente situar mais seriamente o começo da filosofia no escrito platônico, preservado em sua maior parte e que coloca pela primeira vez de maneira explícita o problema da razão: o do discurso integralmente legitimado? E os atomistas? de onde vêm?

Em suma, a ideia de uma gênese tranquila que conduziria do imaginário ao real, da magia à prática, da particularidade (social) ao universal   (humano), do desejo ao discurso, é comprometida desde que se coloca a questão de sua articulação. Como a análise de J. Bernhardt estabelecerá, a denominação corrente de "pré-socráticos  " atribuída aos autores sôfregos de teoria   e cronologicamente anteriores ou contemporâneos de Sócrates   é característica de uma concepção ingenuamente progressista e simplificadora do dever   do pensamento. A questão em todo caso é mais complicada: e é certo que não se pode resolvê-la tomando por referência uma progressão linear que conduziria da pré-razão à razão realizada, da filosofia em potência à filosofia em ato; situemo-nos precisamente no seio desta filosofia supostamente "realizada": a de Platão  . Um estilo novo de discurso nela se impõe; define-se uma ordem   que será logo designada como lógica; determina-se nele uma política original. A novidade é evidente  : não é mais a força aparente dos hábitos ou o poder pseudo-real dos mantenedores da ordem que se impõe, mas a ordem da palavra controlada. Entretanto, no domínio dessa novidade, já que ela é tomada no entrelaçamento histórico da constituição da cidade, o filósofo permanece um sábio, o equivalente do xamã — do feiticeiro — que está em conivência com dinamismos misteriosos...

Tudo se passa como se a filosofia, ao mesmo tempo que consegue delimitar   cada vez melhor a originalidade de seu campo   discursivo, reiterasse, integrando-as, atitudes muito antigas. Por isso convém não apenas recusar a imagem de uma evolução linear, mas também nuançar os esquemas de continuidade ou de descontinuidade. Certamente, a análise dos textos permite revelar "começos" ou "rupturas". Mas o que começa mantém em parte aquilo contra o que começa: e o que rompe integra também elementos   daquilo de que se empenha em se distinguir  . Com respeito a isso, o caso do platonismo é ainda exemplar  : a filosofia platônica recusa a educação tradicional, fundada essencialmente sobre o ensino dos poetas, e a religiosidade confusa que este veicula; porque requer um adestramento científico e faz apelo aos matemáticos e à lógica, porque tem em mira organizar-se, não em torno de representações ambíguas, mas de noções precisas, ela assinala um corte e define uma perspectiva "moderna". Mas ao mesmo tempo se opõe a um outro "modernismo", o dos sofistas, que também recusavam a tradição: em nome de outros princípios, talvez mais radicais. Platão não quer saber do utilitarismo, do convencionalismo, do relativismo   fundamentais dos sofistas. Não é o homem   em sociedade que o interessa, mas o divino no homem. No seu modo de ver, a democracia, em suas diversas formas, é decadência. Consequentemente, é como "reacionário" que fala. Diretamente, quando rejeita a lógica "liberal" dos sofistas utilizada, por exemplo, pelo discurso historiador de Tucídides; indiretamente, quando faz valer no seio de sua própria demonstração estes procedimentos lendários que são a alegoria   e o mito e quando investe o filósofo de poderes que vão além dos poderes do comum dos mortais  .

Em resumo, a filosofia é grega, ela é filha da Cidade, da Cidade democrática. Isso afirmado, permanece o fato que a língua grega não é uma essência imutável   e que, quando se reflete sobre seu estatuto, as mudanças contam tanto quanto as permanências. Permanece o fato que a Cidade, que sucede revolucionariamente a uma "Idade Média feudal", tem suas raízes num passado anterior   que os reis pré-homéricos assinalam e cujo vestígio está presente nos textos platônicos, entre outros. Permanece o fato que a democracia ateniense — ponto de referência de Platão e de seus adversários, os sofistas — é um problema, não uma essência.

Isto quer dizer que não é fácil se sair bem de um empreendimento como a história da filosofia. Há incontestavelmente, pelo menos de Platão a Hegel, um domínio específico que se pode legitimamente qualificar de filosófico; que tem seu domínio, seu poder integrador, sua ordem própria. Mas, constantemente e desde o início, esse estilo que tem a pretensão de ser a jurisdição suprema deve confessar sua impureza. O horizonte de que pretende se desprender e que almeja ultrapassar e julgar determina-o inteiramente. Assim, o pensamento, por volta do século V antes de nossa era, passa do reinado do mito ao império da lógica filosófica: mas essa passagem significa precisamente que já havia, de um lado, uma lógica do mito e que, de outro lado, na realidade filosófica ainda está incluído o poder do lendário.

Do mito ao pensamento racional? Certamente. Mas aquele não é pura imaginação   desordenada e este tende a se impor como um novo mito.