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Antiguidade Ocidental
Vernant (Mito) – Filosofia e Ser
Filósofos e Pensadores
quinta-feira 13 de julho de 2023, por
Deveremos, em última análise, dizer que a filosofia aplica à noção de Ser imperecível e invisível, herdada da religião uma forma de reflexão racional e positiva, adquirida na prática da moeda? Seria ainda demasiado simples.
Deveremos, em última análise, dizer que a filosofia aplica à noção de Ser imperecível e invisível, herdada da religião uma forma de reflexão racional e positiva, adquirida na prática da moeda? Seria ainda demasiado simples. O Ser de Parmênides não é o reflexo, no pensamento do filósofo, do valor mercantil, não transpõe, pura e simplesmente, no domínio do real, a abstração do signo monetário. O Ser de Parmênides é Uno; e esta unicidade que constitui um dos seus traços essenciais, opõe-no tanto à moeda como à realidade sensível.
Na linguagem dos jônios, o real exprime-se ainda por um plural, ta onta, as coisas que existem, tais como elas nos são dadas na sua multiplicidade concreta. Como observa Werner Jaeger , o que interessa aos físicos, e aquilo de que eles buscam o fundamento, são as realidades naturais, atualmente presentes [1]. O Ser reveste-se para eles, quaisquer que sejam a sua origem e o seu princípio, da forma visível de uma pluralidade de coisas. Em Parmênides, pelo contrário, o Ser exprime-se, pela primeira vez, por um singular, to on: não se trata mais de determinados seres, mas do Ser em geral, total e único. Esta mudança de vocabulário traduz o aparecimento de uma nova noção do Ser: não designa mais as coisas diversas que a experiência humana apreende, mas o objeto inteligível do logos , quer dizer, da razão, exprimindo-se através da linguagem, conforme às suas exigências próprias de não-contradição. Esta abstração de um Ser puramente inteligível, excluindo a pluralidade, a divisão, a mudança, constitui-se em oposição do real sensível e ao seu perpétuo devir; mas não contrasta menos com uma realidade do tipo da moeda, que não só comporta a multiplicidade, do mesmo modo que as coisas da natureza, mas que implica mesmo, em princípio, uma possibilidade indefinida de multiplicação. O Ser de Parmênides não pode mais "monetizar-se" nem tampouco é suscetível de devir.
O mesmo é dizer que o conceito filosófico de Ser não foi forjado através da prática monetária ou da atividade mercantil. Traduz esta mesma aspiração para a unidade , esta mesma procura de um princípio de estabilidade e de permanência de que vimos o testemunho, nos alvores da Cidade, no pensamento social e político, e que também se encontra em certas correntes do pensamento religioso, como por exemplo o orfismo. Mas esta aspiração ao Uno e ao Idêntico exprime-se no quadro de problemas novos, propriamente filosóficos, que surgem quando a antiga pergunta: "Como emerge a ordem do caos ?" se transformou em um tipo diferente de aporias: "Que existe de imutável na natureza? Qual é o princípio, arche da realidade? Como podemos nós atingi-lo e exprimi-lo?" Ora, o aparelho das noções míticas que os físicos da Jônia tinham herdado da religião: a gênese, o amor, o ódio, a união e a luta dos opostos , não correspondiam mais às necessidades de uma indagação que visava definir , em uma linguagem puramente profana, o que constitui o fundo permanente do Ser. A doutrina de Parmênides marca o momento em que é afirmada a contradição entre o devir do mundo sensível — este mundo jônio da physis e da genesis — e as exigências lógicas do pensamento. A reflexão matemática desempenhou, sob este aspecto, um papel decisivo. Pelo seu método de demonstração, e pelo caráter ideal dos seus objetos, tomou o valor de modelo. Esforçando-se por aplicar o número à extensão, encontrou, no seu domínio, o problema das relações do uno e do múltiplo, do idêntico e do diverso; ela o colocou com rigor em termos lógicos. Levou a denunciar a irracionalidade do movimento e da pluralidade, e a formular claramente as dificuldades teóricas do juízo e da atribuição . O pensamento filosófico pôde assim desprender-se das formas espontâneas da linguagem em que se exprimia, submetê-las a uma primeira análise crítica: para além das palavras, epea, tais como o vulgo as emprega, há, segundo Parmênides, uma razão imanente ao discurso, um logos, que consiste em uma exigência absoluta de não-contradição: o ser é, o não-ser não é [2]. Sob esta forma categórica, o novo princípio, que preside ao pensamento racional, consagra a ruptura com a antiga lógica do mito . Mas, ao mesmo tempo, o pensamento acha-se separado, como por um golpe de machado, da realidade física: a Razão não pode ter outro objeto que não seja o Ser, imutável e idêntico. Depois de Parmênides, a tarefa da filosofia grega consistirá em restabelecer, por uma definição mais rigorosa e mais sutil do princípio de contradição, o elo entre o universo racional do discurso e o mundo sensível da natureza [3].
Indicamos já os dois traços que, no domínio da filosofia, caracterizam o novo pensamento grego. São, por um lado, a rejeição, na explicação dos fenômenos, do sobrenatural e do maravilhoso; por outro, a ruptura com a lógica da ambivalência, a procura, no discurso, de uma coerência interna, por uma definição rigorosa dos conceitos, uma nítida delimitação dos planos do real, uma estrita observância do princípio de identidade . Estas inovações, que introduzem uma primeira forma de racionalidade, não constituem de qualquer modo um milagre. Não existe uma imaculada concepção da Razão. Como Cornford mostrou, o advento da filosofia é um fato de história, enraizado no passado , formando-se tanto a partir dele como contra ele. Esta mutação mental aparece solidária das transformações que se produzem, entre os séculos VII e VI, em todos os níveis das sociedades gregas: nas instituições políticas da Cidade, no direito, na vida econômica, na moeda. Mas solidariedade não significa simples reflexo. A filosofia, se ela traduz aspirações gerais, coloca problemas que só a ela pertencem: natureza do Ser, relações do Ser e do pensamento. Para os resolver, é preciso que ela mesma elabore os seus conceitos, construa a sua própria racionalidade. Nesta tarefa, ela pouco se apoiou no real sensível; não recolheu grande coisa da observação dos fenômenos naturais; não fez experiências. A própria noção de experimentação lhe permaneceu estranha. A sua razão não é ainda a nossa razão, esta razão experimental de ciência contemporânea, orientada para os fatos e para a sua sistematização teórica. Elaborou, é certo, uma matemática, primeira formalização da experiência sensível, mas, precisamente, não procurou utilizá-la na exploração do real físico. Entre a matemática e a física, o cálculo e a experiência, faltou a conexão; a matemática ficou solidária da lógica [4]. Para o pensamento grego, a natureza representa o domínio do pouco mais ou menos, ao qual não se aplicam nem medida exata nem raciocínio rigoroso [5]. Não se descobre a razão na natureza: ela está imanente na linguagem. Não se forma através das técnicas que operam sobre as coisas; constitui-se pela elaboração e pela análise dos diversos modos de ação sobre os homens, de todas estas técnicas que têm a linguagem por instrumento comum: a arte do advogado, do professor, do orador, do político [6]. A razão grega é a razão que permite agir de modo positivo, refletido, metódico, sobre os homens, mas não transformar a natureza. Nestes limites, como nas suas inovações, ela é bem filha da Cidade.
Ver online : Jean-Pierre Vernant
[1] W. Jaeger, op. cit., cap. II, p. 197, n. 2.
[2] Cf. Parmênides, apud Diels, F.S.V.7, I, p. 238, 7 sq. e p. 239, 6 sq.; sobre as relações das palavras e do logos, em Parmênides, cf. P.-M. Schuhl, op. cit., pp. 283 e 290, e a nota 3 da p. 290.
[3] Ibid., pp. 293 sq.
[4] Cf. o prefácio de Léon Brunschvicg à obra de Arnold Reymond, Histoire des sciences exactes et naturelles dans l’Antiquité gréco-romaine, Paris, 1955, pp. VI e VII. A teoria das Ideias-Números, em Platão, ilustra esta integração do matemático no lógico. Retomando uma expressão de Julius Stenzel, A. Lautman observa que as Ideias-Números constituem os princípios que ao mesmo tempo ordenam as unidades aritméticas em seu lugar no sistema e explicitam os diferentes graus da divisão progressiva das Ideias: "Os esquemas de divisão das Ideias no Sofista, escreve, organizam-se assim segundo os mesmos planos que os esquemas de geração dos números" (Essai sur les notions de structure et d’existence en mathématiques, Paris, 1937, p. 152).
[5] Cf. Alexandre Koyré, "Du monde de l’ "à-peu-près" à l’univers de la précision", Critique, 1948, pp. 806-883.
[6] Sobre a passagem da retórica e da sofística à lógica, cf. Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, Paris, 1956, pp. 181-239. A prática dos discursos antitéticos, das antilogias, conduzirá, pelo estabelecimento dos "lugares comuns" do discurso, pela análise das estrutura da demonstração, pela medida e aritmética dos argumentos opostos, a uma ciência do raciocínio puro.