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Antiguidade Ocidental

Platão (Górgias) – Educação e gestão das questões públicas

Filósofos e Pensadores

quinta-feira 13 de julho de 2023, por Cardoso de Castro

      

Sócrates — Porém no que diz respeito à maneira de tornar-se alguém tão bom quanto possível, ou de dirigir a própria casa   ou a cidade, é considerado vergonhoso condicionar seu conselho a determinado pagamento, não é verdade?

      

Sócrates — Essa é a razão, parece, de não ser   considerado vergonhoso receber   dinheiro   nas outras espécies de conselho, digamos, com relação à arquitetura ou a qualquer outra arte.

Cálicles — É o que parece, de fato.

Sócrates — Porém no que diz respeito à maneira de tornar-se alguém tão bom quanto possível, ou de dirigir a própria casa   ou a cidade, é considerado vergonhoso condicionar seu conselho a determinado pagamento, não é verdade?

Cálicles — É.

Sócrates — E a razão disso, evidentemente, é que essa modalidade de beneficio é à única que desperta em quem o recebe o desejo de recompensar o benfeitor. Daí ser tido como bom sinal receber recompensa   o promotor do beneficio, e mau indicio o caso contrário. Não é isso mesmo?

Cálicles — É.

Sócrates — Qual das duas maneiras   de tratar a cidade aconselhas-me a adotar? Explica-me isso. Deverei esforçar-me, como o médico, para que os atenienses se tornem tão bons quanto possível, ou como quem só procura servi-lo e fazer suas vontades? Dize-me a verdade, Cálicles. Uma vez que começaste usando de franqueza comigo, é justo que continues a dizer o que pensas. Fala, portanto, com desembaraço e lealdade.]

Cálicles — Então direi que deverás servi-los.

Sócrates — Aconselhas-me, varão generosíssimo, a ser adulador?

Cálicles — Ou mísio, caso prefiras esse nome, Sócrates; porque, se não fizeres o que digo...

Sócrates — Não repitas o que já me disseste muitas vezes, que quem quiser poderá matar  -me, para que eu também não tenha de responder que na qualidade   de homem   mau é que ele matará um bom; nem que me espoliarão dos bens, para que, do meu lado, não volte a dizer-te que o espoliador não saberá o que fazer com eles, e que por mas haver tomado injustamente, só poderá usá-los injustamente, e que se for por modo injusto, é indigno, e, sendo indigno, é mau.

LXXVII — Cálicles — Dá-me a impressão  , Sócrates, de que não acreditas que possas vir a sofrer   isso, por morares afastado e nunca poderes ser levado aos tribunais por qualquer indivíduo   desclassificado e mau.

Sócrates — Fora preciso ser verdadeiramente insensato, Cálicles, para não estar certo de que não há o que não possa acontecer nesta cidade a qualquer pessoa. Mas uma coisa eu também sei, e é que se eu for chamado ao tribunal e correr um dos riscos a que te referiste, meu acusador terá de ser um indivíduo muito ruim, pois jamais um homem bom acusará um inocente. Não seria, portanto, de admirar se eu fosse condenado à morte. Queres que te diga porque admito essa possibilidade?

Cálicles — Quero.

Sócrates — Creio ser um dos poucos atenienses, para não dizer o único, que se dedica à verdadeira arte política, e que ninguém mais, senão eu, presentemente a pratica. Visto nunca entabular conversação com qualquer pessoa com o intuito de adquirir-lhe as boas graças e só ter em mira o que é mais útil, não o mais agradável, e como não me resolvo a fazer todas essas maravilhas a que me aconselhas, nada saberei dizer diante dos juízes. Meu caso é precisamente como o que figurei para Polo: serei julgado como um médico acusado diante de crianças por um cozinheiro. Considera o que poderia alegar em defesa própria quem se visse em semelhante situação e fosse acusado nos seguintes termos: Meninos, este homem vos tem causado males sem conta; ele deforma a todos vós, e até os de menos idade ele corta e cauteriza e os reduz ao desespero  , fazendo-os emagrecer e sufocando-os, além de dar-lhes a beber remédios amargos e de obrigá-los a passar fome e sede, ao invés de fazer como eu, que vos regalo com quantidade de coisas boas e variadas. Como imaginas que se defenderia o médico que se visse em conjuntura tão critica? Se dissesse a verdade: Fiz tudo isso, meninos, em benefício de vossa saúde, qual não seria, a teu ver, o clamor levantado por semelhantes juízes? Enorme, não?

Cálicles — Decerto; teremos de aceitá-lo.

Sócrates — E não ficaria em grande perplexidade, por não ter o que dizer?

Cálicles — Perfeitamente.

Sócrates — Da mesma forma eu seria tratado, tenho certeza  , se fosse levado ao tribunal, pois não poderia mencionar nenhum prazer que lhes tivesse proporcionado e que eles consideram benefícios e vantagens, apesar de eu mesmo não ter inveja   nem dos que lhos ensejaram nem dos que os receberam. Se me acusarem de corromper os moços, com deixá-los desorientados, ou de desrespeitar as pessoas mais velhas por dirigir­-lhes palavras amargas, tanto em público como em particular, não poderia nem dizer-lhes a verdade, a saber: Falo tudo aquilo por amor à justiça, e se assim procedo, juízes, é no vosso próprio benefício, nada mais podendo acrescentar. Nessas condições, terei de conformar-me com o que vier a acontecer-me.

Cálicles — E consideras mesmo, Sócrates, bom para alguém ficar numa situação dessas, sem possibilidade de defesa?

Sócrates — Desde que não lhe falte, Cálicles, a defesa que já tantas vezes admitiste e de que ele se premunira com nunca ter dito ou feito nada injusto, nem contra os homens nem contra os deuses. Pois essa é a melhor defesa que alguém pode preparar para si mesmo  , como já reconhecemos várias vezes. Se alguém me demonstrasse que eu era incapaz de obter essa espécie de defesa para mim próprio ou para terceiros, sentir-me-ia envergonhado, quer me visse refutado diante de muitas pessoas, quer de poucas, ou mesmo em conversa só comigo, como ficaria bastante aborrecido se tivesse de morrer   por essa incapacidade. Quanto a morrer por falta da retórica bajuladora, estou certo de que me verias suportar facilmente a morte. Em si mesma, a morte não é de temer, salvo por quem for insensato e pusilânime. O que é de temer é cometer injustiça  . A maior infelicidade é chegar ao Hades   com a alma   pejada de malfeitorias. Caso queiras, contar-te-ei uma história em que se prova que é assim mesmo.

Cálicles — Uma vez que já terminaste o resto, finaliza também isso.


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