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Antiguidade Ocidental

Platão (Górgias) – A única concepção válida da política

Filósofos e Pensadores

quinta-feira 24 de março de 2022, por Cardoso de Castro

      

Sócrates — Mas não é por amor à disputa   que te interrogo, senão pelo desejo sincero de saber como pensas que entre nós deve ser administrada a cidade.

      

Cálicles — Não sei explicar porque me parece bem o que disseste, Sócrates; porém comigo se dá como com quase toda a gente: não chegas a convencer-me.

Sócrates — O amor do povo ateniense, Cálicles, que trazes na alma  , é que trabalha contra mim  ; mas é provável que se voltássemos a considerar o mesmo assunto mais a miúde e com profundidade, deixar-te-ias convencer. Como quer que seja, lembra-te que dissemos haver duas maneiras   de cultivar o corpo e a alma: uma só tem em vista o prazer; a outra, o bem, sem procurar agradar, mas lutando para alcançar o seu objetivo. Não fizemos acima essa distinção?

Cálicles — Fizemos.

Sócrates — Uma delas, a que só visa ao prazer, é vil e baixa, não passando de simples adulação, não é verdade?

Cálicles — Que seja, se assim o queres.

Sócrates — A outra, porém, só se esforça para deixar o melhor possível o objeto de seus cuidados, ou seja o corpo, ou seja a alma.

Cálicles — Perfeitamente.

Sócrates — E não ser  á dessa maneira que devemos esforçar-nos em tratar a cidade e os cidadãos, para que estes se tornem tão perfeitos quanto possível? Pois, sem isso, como descobrimos antes, é absolutamente inútil qualquer outro benefício que lhes prestemos, se não forem belos e nobres os sentimentos dos que devem adquirir riquezas, ou domínio sobre outras pessoas, ou poder de qualquer natureza. Admitiremos que as coisas se passam dessa maneira?

Cálicles — Perfeitamente, se isso te agrada.

Sócrates — E se nós, Cálicles, ingressássemos nos negócios públicos e nos exortássemos mutuamente a nos ocuparmos com construções, ou fossem de muros e estaleiros, ou dos importantes edifícios dos templos, não deveríamos examinar-nos antes e verificar primeiro se conhecemos ou não essa arte, a arquitetura, e com quem a aprendemos? Teríamos que fazer isso, ou não?

Cálicles — Perfeitamente.

Sócrates — Em segundo lugar, se em alguma ocasião já construímos edifício particular, ou para amigos ou para nós mesmos, e se essa construção ficou bem feita ou defeituosa. E se as investigações revelassem que tínhamos tido, de fato, professores competentes e famosos e que construímos muitos e belos edifícios sob a direção desses professores, e também muitos outros com nossos próprios recursos, depois de nos havermos separado deles: nessas condições caberia, como pessoas sensatas, ocupar-nos com a construção de obras públicas. Mas, se não pudéssemos apontar nem professor nem construções, ou muitas destas, realmente, porém carecentes de valor  , seria insensatez empreender a direção de obras da cidade e exortar  -nos reciprocamente nesse sentido. Concluiremos que isso está bem dito, ou não?

Cálicles — Perfeitamente.

Sócrates — O mesmo se dá com tudo o mais. Por exemplo, se nos concitássemos mutuamente a exercer funções públicas, no pressuposto de sermos médicos competentes, antes, quero crer, nos examinaríamos, eu a ti e tu a mim. Vejamos, pelos deuses, como vai de saúde o próprio Sócrates! Já terá curado alguém de alguma doença, ou fosse escravo   ou cidadão livre? Eu, do meu lado, também acho que instituiria idêntica investigação a teu respeito. E se verificássemos que não tínhamos deixado ninguém com o corpo em melhores condições, tanto entre os forasteiros como entre os moradores   da cidade, nem homem   nem mulher, por Zeus  , Cálicles, não seria verdadeiramente irrisório revelar um homem tão grande insensatez, antes de haver tratado particularmente de muitos casos, fossem eles quais fossem, e de ter curado muita gente, para adquirir prática nessa arte, por querer, como diz o provérbio, começar pela jarra o aprendizado da arte do oleiro, visto pretender exercer aquela função pública e concitar outras pessoas a fazerem o mesmo? Não te parece rematada loucura proceder dessa maneira?

Cálicles — Parece.

Sócrates — E agora, varão meritíssimo, recente mente   iniciado na carreira pública, que me animas nesse sentido e me repreendes por eu não seguir o teu exemplo: não terá chegado a hora de nos examinarmos? Vejamos! Qual cidadão Cálicles já deixou melhor? Haverá algum que antes fosse ruim, injusto, intemperante e in sensato, e que, por influência de Cálicles, se tivesse tornado pessoa de bem, forasteiro ou cidadão, escravo ou homem livre?

Dize-me, Cálicles, que responderias a quem te formulasse semelhante pergunta? Quem mostrarias, que se tivesse tornado melhor com a tua convivência? Hesitas em responder, se podes, de fato, apre sentar algum caso de tua vida particular, ocorrido antes de te haveres iniciado nos negócios públicos?

Cálicles — És opiniático, Sócrates.

Sócrates — Mas não é por amor à disputa   que te interrogo, senão pelo desejo sincero de saber como pensas que entre nós deve ser administrada a cidade. Uma vez que te achas à frente dos negócios públicos, vais cuidar de outra coisa que não seja esforçar-te para que nós outros, cidadãos, nos tornemos melhores? Já não admitimos muitas vezes que esse é o dever   do homem político? Admitimos isso, ou não? Responde. Sim, admitimos, respondo em teu lugar. Se é isso que o homem de bem deve realizar em sua própria cidade, reflete um pouco e declara se és mesmo de parecer que foram bons cidadãos os homens a que há momentos te referiste: Péricles, Cimão, Milcíades e Alcibíades.

Cálicles — Acho que foram.


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