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Antiguidade Ocidental

Vernant (Mito) – O Sábio

Filósofos e Pensadores

quinta-feira 24 de março de 2022, por Cardoso de Castro

      

Nos alvores da história intelectual da Grécia, entrevê-se toda uma linhagem de personalidades estranhas para as quais Rohde chamou a atenção [1]. Estas figuras, semilendárias, que pertencem à classe dos videntes estáticos e dos magos purificadores, encarnam o modelo mais antigo do "Sábio". Alguns acham-se estreitamente associados à lenda de Pitágoras, fundador da primeira seita   filosófica. O seu gênero   de vida, a sua investigação, a sua superioridade   espiritual, colocam-nos à margem da humanidade vulgar  . Em sentido estrito, são "homens divinos"; por vezes, eles próprios se proclamam deuses.

Halliday notava já a existência, em uma forma arcaica de mântica entusiástica, de uma categoria de adivinhos públicos, os demiourgoi, que apresentam a um tempo os traços do profeta   inspirado, do poeta, do músico, cantor e bailarino, do médico, purificador e curandeiro   [2]. Este tipo de adivinhos, muito diferente do sacerdote e muitas vezes oposto ao rei, projeta um vislumbre sobre a linhagem dos Arísteas, Ábaris, Hermotimo, Epimênides e Ferecides. Na verdade, todas estas personagens acumulam também as funções de adivinho, de poeta e de sábio, funções associadas que têm por base um mesmo poder mântico [3]. Adivinho, poeta e sábio têm em comum uma faculdade excepcional de vivência para além das aparências sensíveis; possuem uma espécie de extra-sentido que lhes descobre o acesso a um mundo normalmente interdito aos mortais  .

O adivinho é um homem   que vê o invisível. Conhece pelo contato direto as coisas e os acontecimentos dos quais está separado no espaço e no tempo. Uma fórmula define-o de modo quase ritual: um homem que sabe todas as coisas passadas, presentes e futuras [4]. Fórmula que se aplica igualmente ao poeta inspirado, com a simples diferença   de que o poeta tende sobretudo a especializar-se na exploração das coisas do passado   [5]. No caso de uma poesia séria, visando menos o divertimento do que a instrução, as coisas do passado que a inspiração divina faz ver ao cantor, não consistem, como em Homero  , em um catálogo exato de personagens e de acontecimentos humanos, mas, como em Hesíodo  , na narração verídica das "origens": genealogias divinas, gênese do cosmo, nascimento da humanidade [6]. Divulgando o que se oculta nas profundidades do tempo, o poeta revela na própria forma do hino, da encantação e do oráculo, uma verdade essencial que tem o duplo caráter de um mistério religioso e de uma doutrina   de sabedoria  . Pergunta-se: como não se encontraria esta ambiguidade   na mensagem do primeiro filósofo? Também a sua mensagem concerne a uma realidade dissimulada por detrás das aparências e que escapa ao conhecimento vulgar. A forma do poema em que se exprime ainda uma doutrina tão abstrata, como a de Parmênides, traduz este valor   de revelação religiosa que conserva a filosofia nascente [7]. Tal como o adivinho e o poeta, e ainda confundido com eles, o Sábio define-se originalmente como o ser   excepcional que tem o poder de ver e de fazer ver o invisível. Quando o filósofo pretende definir   o seu próprio procedimento, a natureza da sua atividade   espiritual, o objeto da sua indagação, utiliza o vocabulário religioso das seitas e das confrarias: apresenta-se como um eleito  , como um theios   aner, que se beneficia de uma graça divina; realiza uma viagem   mística no além, por um caminho   de procura que invoca a Via dos mistérios no termo do qual obtém, por uma espécie de epopteia, esta visão que consagra o primeiro grau de iniciação [8]. Abandonando a multidão dos "insensatos", entra no pequeno círculo dos iniciados: aqueles que viram, oi eidotes, que sabem, sophoi. Aos diversos graus de iniciação, nos mistérios, corresponde, na confraria pitagórica, a hierarquia dos membros segundo o seu grau de adiantamento [9]; como, em Heráclito, a hierarquia dos três tipos diferentes de humanidade: aqueles que ouvem o logos   (que tiveram a epopteia), aqueles que a ouvem pela primeira vez, sem o compreender ainda (a myesis   dos novos iniciados), aqueles que não a ouviram (os amyetoi) [10].


Ver online : Jean-Pierre Vernant


[1E. Rohde, Psyché, Friburgo, 1894; trad. francesa por A. Reymond, Paris, 1952, pp. 336 sq.

[2W.R. Halliday, Greek divination. A study of its methods and principles, Londres, 1913.

[3Cornford, op. cit., pp. 89 sq.

[4Ilíada, I, 70; cf. Cornford, pp. 73 e sq.

[5É a mesma fórmula que Hesíodo emprega na Teogonia, 32: as Musas inspiravam-no para cantar as coisas que foram e que serão, — e, Teogonia, 38: as Musas dizem as coisas que são, que serão, que foram. Por outro lado, a adivinhação, em princípio, não concerne menos ao passado do que ao futuro. Um profeta purificador, como Epimênides, poderá mesmo restringir a sua competência divinatória exclusivamente à descoberta dos fatos passados, que permanecem desconhecidos (Aristóteles, Retórica, III, 17, 1418 A 24).

[6Hesíodo, Teogonia, 43 sq. Cf. Cornford, op. cit., p. 77.

[7Cf. L. Gernet, "Les origines de la philosophie", loc. cit., p. 2.

[8Sobre a relação entre o vocabulário, as imagens, os temas de pensamento, em um Parmênides e em uma tradição das seitas místicas, cf. L. Gernet, loc. cit., pp. 2-6; G. Thomson, op. cit., pp. 289 sq.

[9Louis Gernet, loc. cit., p. 4. Gernet sublinha o valor religioso do termo beatus (eudaimon) que designa o mais alto grau da hierarquia e que se decompõe em doctus, perfectus e sapiens; cf também Cornford, op. cit., p. 110.

[10Heráclito, fr. 1; cf. Cornford, op. cit., p. 113; G. Thomson, op. cit., p. 274.