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Grassi: Auto-realização humana e "logos" (I)

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

Comportamento esquemático dos animais e "abertura para o mundo" do homem

De nossas discussões anteriores nasceram dois grupos de problemas. Com a interpretação do "efeito" artístico de Poe, do "tédio" e "rejeição do natural" de Baudelaire, e da vitória sobre a linguagem racional e prática de Mallarmé, indicamos a tese de que a arte tenta romper o mundo dos fenômenos naturais, empíricos e cotidianos e — segundo as formulações de Rimbaud   e Proust  , às quais nos referimos — revelar o que de originário existe "além" deste mundo. Eliot frisou o significado das manifestações sensoriais usadas pela arte. Essas perspectivas criadas pelos poetas demonstram que a atividade artística é uma forma especial da qual o homem se serve para encontrar e construir a ordem humana das coisas.

Qual é, então, a estrutura da posição "aberta" do homem, comparada à do animal, para que possa surgir um fenômeno como a arte? Este é o primeiro problema que surge neste contexto.

O segundo grupo de questões é o seguinte: As manifestações sensoriais usadas pela arte afetam as paixões, através do que lhes é dada uma função patética, como já vimos. Visto que o homem não é dominado apenas pelas paixões, mas também pela razão, é necessário esclarecer em que bases prevalece uma ou outra característica. Sabemos que discussões puramente racionais não despertam nem atenuam paixões. Estas, no entanto, são imediatamente suscitadas se, numa discussão, surgirem imagens ou manifestações sensoriais.

Qual a relação existente entre o impacto emocional das imagens, isto é, as manifestações sensoriais, e a razão, isto é o "logos"? Devem esses dois domínios permanecer separados? Neste caso, como foi demonstrado no realismo socialista, a arte somente pode ter uma função pedagógica e retórica, conforme as normas de toda "art engagé", para que não fique presa a uma estrutura "formal", numa esteira puramente estética e subjetiva. Neste caso, a ciência nada tem a ver com a fantasia. Mais tarde trataremos deste grupo de problemas.

Voltando ao primeiro problema: a condição específica do homem deve ser confrontada com a dos animais, usando o exemplo do fenômeno da formação humana.

O animal vive no seu ambiente; desde o nascimento ele dispõe de "portadores de significados" que determinam seu comportamento; para o animal não existe "processo de formação". O ser humano, ao contrário, é "aberto ao mundo" ou, em outras palavras, não tem mundo: ele tem que "formar" seu mundo. A tese de que o animal, ao contrário do homem, já está "formado" ao nascer, será aqui esclarecida mais a fundo.

Referimo-nos a Jakob von Uexkull, fundador da moderna ciência do comportamento e do ambiente. Baseado em investigações experimentais ele afirma que, para o animal, não existem objetos físicos ou mecânicos como tais, mas apenas como portadores de significados de vida. "Nenhum animal tem, jamais, qualquer relação com um ’objeto’. Somente através da relação, o objeto se transforma em portador de um significado que é nele gravado por um sujeito." (J. v. Uexkull, Bedeutungslehre, Leipzig, 1940. Também em: J. v. U., Streifzuge durch die Umwelt von Tieren und Menschen/Bedeutungslehre. Prefácio de A. Portmann, r.d.e., VoL 13, Hamburgo, 1956, p. 106.)

Os sentidos de um ser vivo reagem somente a estímulos definidos de maneira específica, tais estímulos transformando-se em sinais. J. von Uexkull conclui que todo ser vivo, mesmo da escala mais baixa, tem um "ambiente" próprio. Entretanto, esse ambiente não corresponde ao mundo exterior existente. "Tudo quanto um indivíduo percebe torna-se seu mundo de sinais, e todas suas ações passam a ser o seu mundo de ação. Mundo de sinais e mundo de efeitos, juntos, formam o ambiente." (Idem, p. 22) "Cada indivíduo pode converter somente os sinais disponíveis em sinais de seu ambiente." (Idem, p. 127) 0 organismo vivo, portanto, sempre tem um ambiente próprio. A vida poderia ser definida como "a posse de seu próprio mundo".

Um dos exemplos mais conhecidos, dados por J. von Uexkull é o do carrapato (idoxes rhicinus), cujos hospedeiros normais são mamíferos. O carrapato não ouve, não vê e não tem sentido de gosto; ele reage somente a um certo cheiro (do ácido láctico) e a uma certa temperatura (37 °C). Assim que esses dois indícios emergem como sinais, da escuridão que cerca o carrapato, ele cai e dá uma picada em qualquer objeto que apresente esses dois sinais, quer o objeto em que ele estiver sugando seja nutritivo ou não (Idem, p. 23 e ss).

Essas observações experimentais mostraram o caminho para os métodos usados na moderna psicologia do comportamento, que levou à organização dos órgãos dos sentidos através do exame das estruturas aferentes do sistema nervoso central, por ela denominado "mecanismo de liberação" inato. O conceito de "ambiente" (Idem, p. 22), introduzido por J. von Uexkull e que agora faz parte integrante do atual vocabulário biológico, representa uma porção mais ou menos ampliada do mundo externo: para um organismo vivo existem somente os objetos aos quais (devido ao seu padrão básico inato de comportamento) ele reage infalivelmente assim que esses objetos emitem seu estímulo. As necessárias antenas já estão estabelecidas nas células dos germes dos animais e desenvolvem-se durante o processo do crescimento obedecendo a um planejamento exato. Quanto mais longe uma espécie de animais estiver do homem, sob o ponto de vista histórico da evolução, tanto menor será o número dos portadores de sinais e tanto mais pobre, e menos diferenciado, o ambiente.

A pesquisa sobre o comportamento, como uma investigação dos padrões básicos liberados através de formas de comportamento, demonstrou ser uma ciência rigorosa, até o ponto em que ela estabelece os padrões básicos através de métodos puramente experimentais - isto é, tenta encontrar os limites máximos aos quais os estímulos liberados podem ser reduzidos sem perder seu significado. Os padrões básicos não se relacionam apenas a fenômenos "visíveis", mas também a outros "sinais" como som, cheiro e tato.

Se as explicações puramente mecânico-causais sobre o comportamento dos animais forem insustentáveis, então este também será o caso das teorias comuns sobre o misterioso "instinto" dos animais. Com base no trabalho de J. von Uexkull, K. Lorenz mostrou como animais de uma mesma espécie reagem a um sinal que nunca viram com sequências de movimentos inatos, desenvolvidos e absolutamente metódicos. Exemplos perfeitos são as reações de jovens gansos cinzas ou pardais à silhueta de uma ave de rapina: a ação instintiva do vôo é o efeito de um "padrão inato". Os órgãos de sentidos dos gansos cinza ou dos pardais (que foram objeto da experiência) são ajustados a formas muito específicas de estímulos. ["Em inúmeros casos um organismo responde a estímulos externos significativos, que lhe eram desconhecidos, sem cautela e sem engano, de uma maneira específica, imediata e claramente representativa... Um pardal que tinha sido isolado desde o seu terceiro dia de vida ficou sumamente agitado ao ver uma coruja e perseguia-a mantendo prudente distância, com ruídos, de prevenção e ataques próprios de sua espécie, do mesmo modo que os pardais livres perseguem as corujas de dia." K. Lorenz, "Die Angeborenen Formen möglicher Erfahrung" em Zeitschriff fur Tierpsychologie, V, 1942, p. 249.]

Lorenz, v. Holst e Tinnbergen libertaram o conceito do "instinto" animal da vaga pretensão a uma "psicologia animal", e revelaram, por meio de experiências, os padrões inatos do comportamento animal. Daí a separação rigorosa entre pesquisa sobre comportamento e psicologia animal. "Se alguém quiser ser psicólogo e investigador do comportamento neste sentido, não deverá jamais cometer o erro de confundir ou misturar essas duas facetas do processo vital... O que pode ser alcançado pelo método de indução, são as formas objetivamente observáveis de comportamento e as leis que as regem." (K. Lorenz, "Verhaltensforschung ais induktive Naturwissenschaft", Hand-buck der Zoologie, Berlim, 1957, p. 2.)

É verdade que já em 1909 J. von Uexkull pronunciava esta advertência: "O mundo interior (dos animais) é o fruto autêntico da pesquisa objetiva e não deve ser empanado por especulações psicológicas. A fim de dar vida à impressão de um tal mundo interior, talvez se pudesse perguntar: o que faria nossa alma num mundo interior tão limitado? Mas a pintura e o adorno   desse mundo interior com qualidades psíquicas, que não podemos provar nem rejeitar, não é ocupação de pesquisadores sérios" (J. v. Uexkull, Umwelt und Innenwelt der Tiere, Berlim, 1909, p. 6). Ao nascer, o animal vem a um ambiente já formado e, do ponto de vista dos significados, fixo; desde o princípio ele possui faculdades totalmente desenvolvidas e de reações infalíveis para reconhecer seu mundo pelos seus "sinais". A interpretação do ambiente já é inerente à espécie, antes mesmo do nascimento do animal individual; ela está encaixada numa sequência de funções parciais firmemente estabelecidas e nelas se realiza. Com o reconhecimento de que o animal está sempre relacionado a um ambiente, de que ele "possui um mundo", de que suas ações representam estímulos provenientes do ambiente (e devem, portanto, ser considerados como uma interpretação do mundo exterior), J. von Uexkull não apenas fundou a ciência do comportamento, mas produziu, na biologia, uma revolução semelhante à surgida mais tarde na filosofia, com o existencialismo.

E o ser humano? A interpretação de fenômenos é, para ele, baseada numa estrutura diferente? Os padrões com as suas características inatas têm um papel menos direto? Partindo de pontos diferentes, a zoologia moderna, a ciência do comportamento, a antropologia e a etnologia chegaram à conclusão fundamental de que o homem precisa, ele mesmo, construir o seu próprio ambiente; de que ele deve, primeiramente, desenvolver a faculdade de interpretar o mundo; de que os "conceitos", as "ideias" que determinam suas ações devem primeiro tornar-se objetos do seu conhecimento. Este processo significa o "tornar-se" do seu ser, seu "construir-se".

Nietzsche   referiu-se ao homem como o animal "não-estabelecido", no sentido de que ele tende ao caos, à degeneração. Nos mitos antigos fala-se repetidamente dos deuses que arrancaram a ordem do mundo ao caos — uma alusão figurada à possibilidade especificamente humana de degeneração.

Resultados da moderna antropologia (Bohlk na Holanda, Storch na Áustria, Portmann e Gehlen   na Suíça e na Alemanha) e da etnologia (principalmente Malinowsky, Benedict e Mead nos EUA) sustentaram a tese fundamental de que os homens, em contraste com os animais, não possuem padrões estabelecidos para o reconhecimento do seu ambiente. O homem precisa buscar e construir a forma do seu próprio ambiente; somente o mundo exterior interpretado eleva-se ao significado do seu ambiente.

Enquanto o animal se "ajusta" ao desenrolar dos círculos definidos de funcionamento (dos quais cada um tem seu lugar e tempo próprios), o comportamento do homem mostra-se "aberto". Essas conclusões sobre a humanidade não devem, por ora, ser expostas filosófica ou abstratamente; portanto, vamos resumir os resultados de investigações morfológicas, embora possam ser considerados de conhecimento geral.

Portmann (A. Portmann, Zoologie und das neuc Bild des Menschen, r.d.e., Vol. 20, Hamburgo, 1956, p. 29 e SS), começa pela conhecida diferenciação entre animais que "ficam no ninho" e os que "abandonam o ninho". O recém-nascido, "que abandona o ninho", vem ao mundo como uma pequena imagem dos seus pais, e se distingue por um cérebro pesado, órgãos dos sentidos e de movimento completamente desenvolvidos e um período de gestação relativamente longo no útero materno. O que "fica no ninho", por outro lado, vem ao mundo com um cérebro de pouco peso e órgãos dos sentidos não desenvolvidos (por exemplo, seus olhos não estão abertos ainda); seu período de gestação pode ser correspondentemente menor, pois ele poderá alcançar o seu desenvolvimento, até tornar-se uma pequena imagem dos seus pais, enquanto ainda estiver no ninho. Segundo esses critérios, o homem recém-nascido deveria pertencer aos que "abandonam o ninho". Porém, o seu desamparo, a sua incapacidade de locomover-se, sozinho, e de orientar-se, fazem dele um dos que "ficam no ninho". Assim o ser humano — zoologicamente falando — é uma contradição.

As discussões em torno deste duplo aspecto do homem (como um ser que "fica no ninho" e que "abandona o ninho") prova que ao nascer ele não vem a um ambiente; mas deve, primeiramente, através de seus sentidos abertos, entrar em relacionamento mútuo com o seu mundo externo (inicialmente representado principalmente por sua mãe) a fim de formar-se a si próprio e o seu ambiente. Este reconhecimento faz com que certos fatos, "que até aqui pareciam curiosidades paradoxais na estrutura física daquele que ’fica no ninho’" (Idem, p. 38), se encaixem no seu devido lugar dentro do nosso conhecimento, já que o recém-nascido deve ser considerado como um exemplo normalizado e standardizado de nascimento prematuro (só depois de completar um ano é que ele adquire um certo senso de orientação, a faculdade de mover-se e de comunicar-se, o que animais superiores já possuem logo depois do nascimento). Portmann chama o primeiro ano de ano embrionário passado fora do útero, isto é, os processos de amadurecimento no que tange a percepção e movimentos devem ser tidos como processos de aprendizagem por um ano.

Sob outro ângulo, A. Gehlen chama atenção sobre a essência do homem no sentido interpretado por Portmann: "Para onde quer que olhemos, vemos o homem espalhar-se pelo mundo e, apesar da sua falta de recursos físicos, subjugar a natureza cada vez mais. No entanto, não se pode falar de ’ambiente’ como o protótipo das condições naturais e nativas que devem ser preenchidas para que o ’homem’ possa viver, mas vemos o homem em toda parte... ’manter-se’. Aliás ele vive como uma ’entidade cultural’, isto é, segundo os resultados de uma atividade ’previdente’, planejada e conjunta que lhe permite organizar técnicas e meios para a sua existência, sob quaisquer condições naturais, através de transformações preventivas e ativas. O termo ’esfera cultural’, portanto, pode ser atribuído a qualquer protótipo de condições naturais ativamente transformadas dentro das quais o homem vive e é capaz de viver" (A. Gehlen, "Ein Bild vom Menschen", em: Geist der Zeit, 19, 1942. Também em: Gehlen, Anthropologische Forschung, Vol. 138, Hamburgo, 1961, p. 47).

Gehlen evidencia a relação essencial que existe entre "abertura para o mundo" e cultura; ao contrário de todas as teorias românticas, ele explica o estado original do homem não como um estado natural hipotético, dominado pela certeza dos instintos ou por padrões firmemente estabelecidos mas, antes, como a atividade institucionalizante de reprimir o caos, sendo essa uma possibilidade que ameaça fundamentalmente o homem. ["A instabilidade interna da vida instintiva humana é quase ilimitada. São formas experimentadas durante centênios e milênios, limitantes e inibidoras como o direito, a propriedade, a família monogâmica e a divisão do trabalho que desenvolveram nossos instintos e nossos sentimentos, dando-lhes as pretensões exclusivas e seletivas que se chamam de cultura. Essas instituições como o direito, a família monogâmica e a propriedade não são naturais em si, e são rapidamente destruídas..." Polemizando contra Lorenz ele acrescenta: "E se forem tirados os apoios nós nos tornaremos primitivos rapidamente. Então não haverá, como acreditava Lorenz, uma mina de instintos originariamente seguros mas uma reinstintivação, uma volta à insegurança fundamental e constitucional e uma alteração da nossa vida impulsiva ... O caos é, no sentido dos mitos antigos, natural e previsível, o cosmos é divino e inseguro. Sou partidário de um ponto de vista fundamentalmente contrário ao do século XVIII: chegou a hora de um anti-Rousseau  , de uma filosofia do pessimismo e do primado da vida. ’Volta à natureza’ era o lema de Rousseau: a cultura deforma o ser humano, o estado primitivo o mostra em toda sua ingenuidade, justiça e animação. Ao contrário, parece-nos hoje que o estado primitivo do homem é o caos, a cabeça da Medusa cuja visão petrifica". A. Gehlen, "Das Bild des Menschen im Lichte der modernen Anthropologie", em Merkur, 52, 1952. Também em: Gehlen, Anthropologische Forschung, r.d.e., Vol. 138, p. 59 e ss.]

As pesquisas etnológicas de Malinowsky (B. Malinowski, Geschlecht und Verdrãngung in primitiven Gessellschaften, r.d.e., VoL 139/40, Hamburgo, 1962) e da americana Ruth Benedict (Ruth Benedict, Urformen der Kultur, r.d.e., Vol. 7, Hamburgo, 1955), entre outras, levaram ao reconhecimento de que cultura e formação não se originam espontaneamente da natureza dos instintos. A cultura não está biologicamente condicionada. Numa base biológica, comum a todos os homens, são possíveis formas de cultura completamente diferentes, mesmo nas fases mais primitivas de desenvolvimento; o que ainda hoje pode ser amplamente provado. Assim como houve e ainda há culturas que não conhecem a guerra e, portanto, encaram com perplexidade e incompreensão esse fenômeno que nos parece tão natural, ou.tras existem que ignoram as conquistas individuais; outras são construídas sobre a hostilidade de todos contra todos; e outras, ainda, edificadas sobre o desejo pessoal de domínio do indivíduo. No seu livro Sociologia da Sexualidade (Helmut Schelsky, Soziologie der Sexualitàt, r.d.e., Vol. 2, Hamburgo, 1962), H. Schelsky desenvolveu mais a sequência de ideias de R. Benedict e A. Gehlen. Como o desejo no homem pode libertar-se de seu instinto sexual, o seu comportamento sexual nunca pode ser explicado de forma puramente biológica, pois este pode ser simultaneamente encarado como expressão de um comportamento cultural. É verdade que a separação entre prazer e instinto sexual põe em perigo o "homem" como entidade biológica mas ela contém, ao mesmo tempo, uma chance cultural: o homem que escapou à pressão do ambiente e à prisão e rigidez dos instintos, pode e deve dispor conscientemente de seus impulsos. Assim, se quisermos imaginar a cultura de uma comunidade, de uma tribo ou de um povo, não devemos tomar como base as manifestações que estão diretamente relacionadas com a cultura, isto é, a escrita, a arte, as instituições técnicas. O que se deve examinar, acima de tudo, é como o indivíduo se comporta na sua vida cotidiana, como ele molda seus impulsos primitivos. "A elaboração cultural de impulsos sexuais é, certamente, uma parte das conquistas culturais originais do homem e dos requisitos de sua existência, tanto quanto o são os utensílios e a linguagem." (Schelsky, op. cit., p. 12) O campo da sexualidade é a estrutura mais ampla e mais antiga dentro da qual se manifesta uma cultura, isto é, a formação de um mundo humano.

O significado cultural da sexualidade humana não pode ser corretamente avaliado a não ser que se evite a ilusão, demasiado evidente, de que todas as manifestações de motivação instintiva, no homem, são simplesmente "naturais". Investigações sobre tribos primitivas, levadas a efeito por antropólogos e etnólogos americanos provaram, por exemplo, que a distribuição das atribuições entre os dois sexos, que nós "ocidentais" consideramos como "natural", por ser "determinada pela natureza", não é, absolutamente, a única distribuição possível. Tendemos a falar de uma posição social "natural" da mulher, por ser essa posição condicionada à sua constituição fisiológica específica. Ela seria mais fraca do que o homem, o seu papel de geradora a raptaria ao círculo familiar e a isentaria de trabalhos pesados. Mas há culturas e estruturas sociais - especialmente de caráter religioso - nas quais se atribuem às mulheres tarefas totalmente opostas. Assim, muitos povos primitivos existem entre os quais a lavoura é trabalho da mulher pois, como geradora, só ela foi destinada pela "natureza" a fazer com que as coisas cresçam. "Na nossa era racionalista de adoração da ’natureza’, facilmente deixamos de nos dar conta de que em todas as formas da natureza realmente importante, ela é sempre apenas o resultado do que o homem dela fez ou foi compelido a fazer; veja-se o comportamento sexual ’natural’ e a diferença ’natural’ entre os sexos, assim como o raciocínio ’natural’ e os direitos ’naturais’. (Idem, p. 49)"


Ver online : Ernesto Grassi