Que tipo de saber pode ser esse que nem sequer se sabe como tal?
Repare-se que a questão expressa uma perplexidade e que essa perplexidade é em si mesma informativa: ela informa que o saber é sempre para nós entendido primariamente como um «saber que se sabe», de uma forma aperceptiva ou auto-reflexiva. Como, na verdade, sei eu o que há a temer, se nem sequer sei que o sei? De outro modo: como posso saber que devo temer algo, se, no mesmo momento em que o sei, não estou sabendo que o sei e portanto tal saber não se eleva, como tal, a uma consciência plena?
Esta perplexidade é vital: ela manifesta que, intuitivamente, o saber é sempre acompanhado, na nossa concepção, por um «saber do saber» e que esse saber do saber é que constitui o saber enquanto tal. Por outras palavras, o saber do saber é imediatamente, para nós, a essência de todo o saber.
Mas, se assim é justamente, a perplexidade justifica-se: como posso eu saber, sem saber que sei?
A única forma de responder consistentemente à pergunta, salvando este saber, seria pensá-lo — ao saber que se não sabe — como uma forma por assim dizer decaída, i. e, naturalizada e «cousificada», do saber que se sabe, quer dizer, como uma forma residual e atemática de saber. Em linguagem platônica, dever -se-lhe-ia chamar «amnésica»; ou, melhor, «amnésia reminiscente»: porque é da presunção deste saber natural e reduzido que se pode partir para um trajeto reminiscente que o faça saber-se como tal.
Ora não só esta é a única resposta consistente, como é também justamente a resposta socrática.
E, na verdade, só à luz desta duplicidade de formas de saber, o saber naturalizado e imediatamente investido na prática, por um lado, e o saber que se sabe, por outro, se compreende e legitima o diálogo socrático como testar dos saberes, buscando na experiência prévia dos interlocutores (i. e., no seu natural saber) a base para a interrogação e simultaneamente exigindo deles uma verbalização penosa e radicalmente maiêutica, por mediação da questão «o que é».
Mas, para mais, só deste modo se adequa a investigação às estreitas condições da aporia em que o saber, segundo o Ménon (80de), consiste: mostrando que tal saber não parte do nada, mas de um prévio saber que como tal se desconhece, não do alheio, mas do que assim interroga, porque não é verdadeiramente um nascimento, mas um renascimento, não verdadeiramente uma apreensão do diverso, mas uma reapropriação do próprio.
É a este movimento , que de um inicial saber que apenas «é» conduz ao saber que como tal se sabe e que para esse ir sabendo conta unicamente com o que se é e visa tão-só um ser mais completo e coerente, que chamamos, no quadro dos primeiros diálogos , a circularidade do ser e do saber. [MesquitaPlatão:62]