A réplica às grosseiras doutrinas de felicidade vai ser dada sob a forma de um mito - processo literário que estava fortemente enraizado na tradição grega, quer na épica, quer na lírica, e que surge nos diálogos , a substituir a discussão dialética, quando se passa da esfera do certo para a do provável [1]. Expor desta forma doutrinas escatológicas foi, além disso, praticado mais vezes por Platão: no Górgias, no Fédon e no Fedro . E se, no primeiro destes diálogos, se mantém ainda bastante próximo da tradição sobre o além - exceto num ponto essencial, que é a definitiva vinculação do destino último das almas ao seu procedimento moral em vida - nos outros a descrição enquadra-se numa visão cósmica a que não deve ser estranho (sobretudo na República e no Fedro) o crescente interesse do Filósofo pela astronomia .
Pressupõem a doutrina da metempsicose [2] e, nos dois últimos, a teoria da reminiscência (que é um dos aspectos da teoria das ideias, presente também no Fédon), a qual, no Fedro, ocupa um lugar preponderante.
O mito de Er apresenta a estrutura tripartida que é comum aos três [3]: uma breve introdução (X. 614a), a extensa narrativa (X. 614b-621b) e a conclusão, que neste caso é uma exortação à virtude (X. 621c-d).
Ao principiar essa narrativa, Platão alude a um modelo homérico - os «Contos de Alcínoo», designação genérica dada os Cantos IX a XII da Odisseia , em que o herói dos mil expedientes desenrola perante os reis dos Feaces as suas fantásticas aventuras. A referência ao padrão homérico, ao tratar de escatologia, era nossa conhecida do Górgias, cujo mito era posto sob essa autoridade [4]. Mas agora o nome de Alcínoo é utilizado para formar um jogo de palavras com o adjetivo alkimos («valoroso»), que qualifica o imaginário informador - Er, filho de Armênio, natural de Panfília. Sob o gracioso contraste, tão ao gosto do autor do Crátilo, esconde-se outro de significado muito mais profundo: a história que vai contar-se não é uma daquelas que, umas páginas atrás (X. 606e-607a.), tinham sido excluídas, por impróprias, da cidade ideal; pelo contrário, diz respeito ao grande combate (megas agon — X. 608b), que já referimos, «o que consiste em nos tornarmos bons ou maus». E um primeiro exemplo da literatura que merece ser admitida na cidade ideal.
Er fora protagonista de uma estranha experiência: tendo morrido numa batalha, quando, ao fim de doze dias, o seu corpo estava na pira para ser cremado, tornou à vida e pôde contar as cenas maravilhosas a que tinha assistido no além, durante esse tempo. A primeira era o julgamento das almas, num lugar entre as duas aberturas que conduziam ao céu e outras duas que comunicavam com a terra . Pelo caminho ascendente da direita seguiam os justos, pelo oposto os injustos. Pela outra abertura celeste vinham as almas que desciam purificadas; pela terrestre, surgiam as que regressavam de uma viagem subterrânea de mil anos, cheia de sofrimento . Entre estes, cita-se o exemplo de um tirano da Panfília, Ardieu o Grande, a quem nunca seria permitido acabar a expiação, tantos eram os seus crimes. Esta cena culmina no momento dramático em que a Ardieu e outros grandes culpados é recusada a passagem pela abertura, ao som de um terrível mugido, e «homens selvagens que pareciam de fogo» (615c) agarram neles e os levam.
A segunda cena contém o quadro da estrutura do universo , com a grande luz «direita como uma coluna, muito semelhante ao arco-íris, mas mais brilhante e mais pura» (616b), que segura a esfera em movimento . Das suas extremidades, pendia o fuso da Necessidade , cuja complexa estrutura é descrita quanto a forma e a cor, em termos tais que nos permitem adivinhar neles a correspondência com o Sol , a Lua , os cinco planetas então conhecidos e as «estrelas fixas». O fuso repousa nos joelhos da Necessidade, e, no cimo do rebordo circular de cada um dos seus contrapesos, uma Sereia , girando com ele, emite uma nota musical. Do acorde dessas oito notas resulta a «harmonia das esferas». Além dessas figuras femininas, estão lá também as três Parcas ou Moirai, que cantam o passado (Láquesis), o presente (Cloto) e o futuro (Átropos ), fazendo girar o fuso.
No mesmo augusto lugar se realiza a proclamação do hierofante , para que cada uma das almas ali chegadas, ao fim de oito dias de viagem, faça a sua escolha . Er assiste a esse ato, em que tomam parte figuras célebres da mitologia, como Orfeu , Ajax, Agamémnom, Ulisses, cada um dos quais dá preferência a um modelo oposto ao gênero de vida que anteriormente tinha seguido. O contraste maior é entre um homem não-nomeado, que se precipita para apanhar a sorte de um tirano, sem reparar a tempo nos horrores que ela comportava, e Ulisses, que levanta do chão uma sorte por todos desdenhada - a de uma vida simples e sem ambições. Ratificada a escolha do destino pelas Parcas, atingimos o último quadro, através de uma planura escaldante e desprovida de vegetação. Tanto o nome da planura (Letes, «esquecimento »), como o do no de que as almas bebem antes de reencarnarem (Ameles, «despreocupação») são significativos da função desta cena final, que termina com um trovão e a fuga das almas, «cintilando como estrelas» (621b), para nascerem nos lugares que lhes estavam determinados.