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A REPÚBLICA

Rocha Pereira: Mito de Er

Introdução

quinta-feira 13 de janeiro de 2022, por Cardoso de Castro

      

PLATÃO. A República. Tr. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2017, p. XXXIX-XLII.

      

A réplica às grosseiras doutrinas de felicidade   vai ser dada sob a forma de um mito   - processo literário que estava fortemente enraizado na tradição grega, quer na épica, quer na lírica, e que surge nos diálogos  , a substituir   a discussão dialética, quando se passa da esfera   do certo para a do provável [1]. Expor desta forma doutrinas escatológicas foi, além disso, praticado mais vezes por Platão: no Górgias, no Fédon e no Fedro  . E se, no primeiro destes diálogos, se mantém ainda bastante próximo da tradição sobre o além - exceto num ponto essencial, que é a definitiva vinculação do destino último das almas ao seu procedimento moral em vida - nos outros a descrição enquadra-se numa visão cósmica a que não deve ser estranho (sobretudo na República e no Fedro) o crescente interesse   do Filósofo pela astronomia  .

Pressupõem a doutrina   da metempsicose [2] e, nos dois   últimos, a teoria   da reminiscência (que é um dos aspectos da teoria das ideias, presente   também no Fédon), a qual, no Fedro, ocupa um lugar preponderante.

O mito de Er   apresenta a estrutura   tripartida que é comum aos três [3]: uma breve introdução (X. 614a), a extensa narrativa (X. 614b-621b) e a conclusão, que neste caso é uma exortação à virtude (X. 621c-d).

Ao principiar essa narrativa, Platão alude a um modelo homérico - os «Contos de Alcínoo», designação genérica dada os Cantos IX a XII da Odisseia  , em que o herói dos mil expedientes desenrola perante os reis dos Feaces as suas fantásticas aventuras. A referência ao padrão homérico, ao tratar de escatologia, era nossa conhecida do Górgias, cujo mito era posto sob essa autoridade   [4]. Mas agora o nome de Alcínoo é utilizado para formar um jogo   de palavras com o adjetivo alkimos («valoroso»), que qualifica o imaginário informador - Er, filho   de Armênio, natural   de Panfília. Sob o gracioso   contraste, tão ao gosto do autor do Crátilo, esconde-se outro de significado muito mais profundo: a história que vai contar-se não é uma daquelas que, umas páginas atrás (X. 606e-607a.), tinham sido excluídas, por impróprias, da cidade ideal; pelo contrário, diz respeito ao grande combate   (megas agon — X. 608b), que já referimos, «o que consiste em nos tornarmos bons ou maus». E um primeiro exemplo da literatura que merece ser admitida na cidade ideal.

Er fora protagonista de uma estranha experiência: tendo morrido numa batalha, quando, ao fim de doze dias, o seu corpo estava na pira   para ser cremado, tornou à vida e pôde contar as cenas maravilhosas a que tinha assistido no além, durante esse tempo. A primeira era o julgamento   das almas, num lugar entre as duas aberturas que conduziam ao céu e outras duas que comunicavam com a terra  . Pelo caminho   ascendente da direita seguiam os justos, pelo oposto os injustos. Pela outra abertura   celeste vinham as almas que desciam purificadas; pela terrestre, surgiam as que regressavam de uma viagem   subterrânea de mil anos, cheia de sofrimento  . Entre estes, cita-se o exemplo de um tirano da Panfília, Ardieu o Grande, a quem nunca seria permitido acabar a expiação, tantos eram os seus crimes. Esta cena culmina no momento dramático em que a Ardieu e outros grandes culpados é recusada a passagem pela abertura, ao som   de um terrível mugido, e «homens selvagens que pareciam de fogo» (615c) agarram neles e os levam.

A segunda cena contém o quadro da estrutura do universo  , com a grande luz «direita como uma coluna, muito semelhante ao arco-íris, mas mais brilhante e mais pura» (616b), que segura a esfera em movimento  . Das suas extremidades, pendia o fuso da Necessidade  , cuja complexa estrutura é descrita quanto a forma e a cor, em termos tais que nos permitem adivinhar neles a correspondência com o Sol  , a Lua  , os cinco   planetas então conhecidos e as «estrelas fixas». O fuso repousa nos joelhos da Necessidade, e, no cimo do rebordo circular de cada um dos seus contrapesos, uma Sereia  , girando com ele, emite uma nota musical. Do acorde   dessas oito notas resulta a «harmonia das esferas». Além dessas figuras femininas, estão lá também as três Parcas ou Moirai, que cantam o passado (Láquesis), o presente (Cloto) e o futuro (Átropos  ), fazendo girar o fuso.

No mesmo augusto   lugar se realiza a proclamação do hierofante  , para que cada uma das almas ali chegadas, ao fim de oito dias de viagem, faça a sua escolha  . Er assiste a esse ato, em que tomam parte figuras célebres da mitologia, como Orfeu  , Ajax, Agamémnom, Ulisses, cada um dos quais dá preferência a um modelo oposto ao gênero   de vida que anteriormente tinha seguido. O contraste maior é entre um homem   não-nomeado, que se precipita para apanhar a sorte de um tirano, sem reparar a tempo nos horrores que ela comportava, e Ulisses, que levanta do chão uma sorte por todos desdenhada - a de uma vida simples e sem ambições. Ratificada a escolha do destino pelas Parcas, atingimos o último quadro, através de uma planura escaldante e desprovida de vegetação. Tanto o nome da planura (Letes, «esquecimento  »), como o do no de que as almas bebem antes de reencarnarem (Ameles, «despreocupação») são significativos da função desta cena final, que termina com um trovão e a fuga   das almas, «cintilando como estrelas» (621b), para nascerem nos lugares que lhes estavam determinados.


Ver online : A REPÚBLICA (Fundação Calouste)


[1Esta é a interpretação tradicional, representada por A. Rivaud, Histoire de la Philosophie, Paris, 1, 1960, p. 179. Uma análise do mito em Platão pode ver-se em P. Friedländer, Plato, 1, cap. 9, que o descreve como um processo de levar o logos para além dos seus limites, e na obra mais recente (que em parte desenvolve a anterior) de W. Hirsch, Platons Weg zum Mythos, Berlin, 1971.
Pelas razões expostas supra, p. xxvii e n. 71, não estamos a considerar nesta rubrica a alegoria da Caverna, nem outras histórias menores, como a do anel de Giges (II. 359b-360b) ou a das raças humanas (III. 4i5a-c).

[2Se ela está implícita ou não no Górgias é discutível.

[3Deste e dos restantes mitos escatológicos de Platão tratamos já na dissertação citada na nota anterior, pp. 77-91,169-184,198-201.

[4523a. Cf. H. W. Thomas, Epekeina. Untersuchungen über das Überlieferungsgut in den Jenseitsmythen Platons, diss. München, 1938, pp. 6, 8 seqq.