Página inicial > Antiguidade > Neoplatonismo (245-529 dC) > Plotino (séc. III) > Enéada I > Plotino - Tratado 53,1 (I, 1, 1) — Qual é o sujeito da sensação?

Plotino - Tratado 53,1 (I, 1, 1) — Qual é o sujeito da sensação?

domingo 9 de janeiro de 2022, por Cardoso de Castro

  

nossa tradução

desde MacKenna  

1. Prazer [hedone] e angústia [lype], medo [phobos] e coragem [tharre, andreia], desejo [epithymia] e aversão [apostrophe], onde estas afetividades e experiências se assentam? Claramente, somente na alma [psyche], ou na alma no emprego do corpo [soma], ou em alguma terceira entidade derivando de ambos. Para esta terceira entidade, consequentemente, existem dois modos possíveis: poderia ser uma combinação ou uma forma distinta devida à combinação. E o que se aplica às afetividades [pathos] se aplica também aos atos, físicos ou mentais, que delas brotam. Temos, portanto, que examinar a razão-discursiva [dianoia] e a ação mental ordinária [doxa] sobre objetos dos sentidos [pathe], e investigarmos se estas têm seu assento com as afetividades e experiências, ou talvez algumas vezes este assento, outras vezes outro. E devemos considerar também nossos atos de intelecção [noesis], o modo deles e o assento deles. E este princípio investigativo, que investiga e decide nestas matérias, deve ser levado à luz. Primeiramente, qual o assento da percepção-dos-sentidos [aisthanesthai tinos]? Este é obviamente o início posto que as afetividades e as experiências [aisthesis] são ou sensações de alguma espécie ou, pelo menos, nunca ocorrem aparte da sensação.


desde Aubry  

Qual é o sujeito das paixões?

Três hipóteses.

Os prazeres [hedone] e as aflições [lype], os temores [phobos] e as audácias [tharre], os desejos [epithyme] e as aversões [apostrophe], e o sofrimento [algein tinos], a quem se deve atribuí-los? Pode ser à alma [psyche], ou à alma usando do corpo [soma], ou a uma terceira coisa composta da alma e do corpo. [1] Ora esta por sua vez pode se entender de duas maneiras: ou bem como a mistura da alma e do corpo, ou bem como uma outra coisa, distinta, disto resultando. [2]

Mesma questão para a opinião (doxa) e a reflexão (dianoia)...

A mesma questão se coloca para o que resulta destas paixões [3], quer se trate de atos ou de opiniões. Nossa investigação deve portanto conduzir-se também sobre a reflexão [4] e sobre a opinião: pertencem elas ao mesmo sujeito que as paixões ou assim acontece para algumas, diferentemente para outras?

... os atos intelectuais (noéseis [noesis])... Devemos também considera os atos intelectuais, ver como eles advêm e a quem eles pertencem [5]

... a investigação filosófica [philosophia]... e enfim, certamente, este mesmo que investiga, que examina e lança estas questões: que pode ele ser de fato? [6]

... a sensação [aisthesis] E a princípio, o ato de sentir, a quem pertence ele? É por aí que convém começar posto que as paixões, ou bem são uma espécie de sensação, ou bem não podem ser sem as sensações. [7]


desde Bréhier  

1. A que sujeito pertencem prazer e dor, medo e confiança, desejo e aversão? A alma? A alma usando o corpo? A um terceiro ser composto da alma e do corpo? E esta última questão se desdobra – é a mistura ele mesma? É a uma coisa diferente resultante da mistura? As mesmas questões se colocam para as ações e as opiniões que resultam destas paixões. Para as reflexões e as opiniões, deve-se investigar se todas ou somente algumas dentre elas pertencem ao mesmo sujeito que as paixões. Ainda é necessário considerar a natureza dos atos da inteligência e o sujeito ao qual pertencem; enfim, é preciso ver o que é esta parte de nós mesmos que faz este exame, coloca todas estas questões e as resolve.

É por aí que convém começar, já que as paixões são sensações ou, pelo menos, não existem sem estas.

Igal

¿Cuál será el sujeto de los placeres y de las penas, de los temores y de los atrevimientos, de los apetitos, de las aversiones y del dolor? Porque el sujeto será o el alma, o el alma que se vale del cuerpo o algún tercero resultante de ambos. Y éste puede ser de dos clases: o la mezcla [migma] u otra cosa distinta resultante de la mezcla [migma]. Dígase lo mismo de los resultados, tanto acciones como opiniones, de esas emociones. Así pues, también hay que investigar si el sujeto del razonamiento y de la opinión es el mismo que el de las emociones o si lo es en unos casos pero no en otros [8]. Pero también hay que considerar las intelecciones, cómo son y cuál es el sujeto de ellas, así como también cuál será este mismo sujeto que examina y lleva a cabo la investigación y la crítica sobre estas cosas. Y, primero, cuál es el sujeto de la sensibilidad. Conviene, efectivamente, comenzar por ella, puesto que las emociones o son una clase de sensaciones o no se dan sin la sensación.

Bréhier

1. À quel sujet appartiennent le plaisir et la peine, la crainte et la confiance, le désir et l’aversion ? Est-ce à l’âme ? Est-ce à l’âme usant du corps ? Est-ce à un troisième être composé de l’âme et du corps ? Et cette dernière question se dédouble — est-ce au mélange lui-même ? Est-ce à une chose différente résultant du mélange ? Les mêmes questions se posent pour les actions et les opinions qui résultent de ces passions. Pour les réflexions et les opinions, on doit chercher si toutes ou seulement certaines d’entre elles appartiennent au même sujet que les passions. Il nous faut encore considérer la nature des actes de l’intelligence et le sujet auquel elles appartiennent ; enfin, il faut voir ce qu’est cette partie de nous-mêmes qui fait cet examen, pose toutes ces questions et les résout.

D’abord, à quel sujet appartient l’acte de sentir ? C’est par là qu’il convient de commencer, puisque les passions sont des sensations ou, du moins, n’existent pas sans celles-ci.

Guthrie

PSYCHOLOGIC DISTINCTIONS IN SOUL.

1. To what part of our nature do pleasure [hedone] and grief [lype], fear [phobos] and boldness [tharre] desire [epithymia] and aversion [apostrophe], and, last, pain [tinos], belong? Is it to the soul [psyche] (herself) [sect. 2], or to the soul when she uses the body [soma] as an instrument [sect. 3], or to some third (combination [migma]) of both? Even the latter might be conceived of in a double sense: it might be either the simple mixture [migma] of the soul and the body [sect. 4], or some different product resulting therefrom [sect. 7. 11]. The same uncertainty obtains about the products of the above mentioned experiences: namely, passions [pathos] [9], actions, and opinions. For example, we may ask whether ratiocination [dianoia] [10] and opinion [doxa] both, belong to the same principle as the passions; or whether only one of them does; in which case the other would belong to some other principle. We should also inquire concerning the nature and classification of thought [11]. Last we should study the principle that undertakes this inquiry and which comes to some conclusion about it. But, first of all, who is the agent, who feels? This is the real starting point: for even passions are modes of feeling [aisthesis], or at least they do not exist without it [sect. 7].

MacKenna

1. Pleasure and distress, fear and courage, desire and aversion, where have these affections and experiences their seat?

Clearly, either in the Soul alone, or in the Soul as employing the body, or in some third entity deriving from both. And for this third entity, again, there are two possible modes: it might be either a blend or a distinct form due to the blending.

And what applies to the affections applies also to whatsoever acts, physical or mental, spring from them.

We have, therefore, to examine discursive-reason and the ordinary mental action upon objects of sense, and enquire whether these have the one seat with the affections and experiences, or perhaps sometimes the one seat, sometimes another.

And we must consider also our acts of Intellection, their mode and their seat.

And this very examining principle, which investigates and decides in these matters, must be brought to light.

Firstly, what is the seat of Sense-Perception? This is the obvious beginning since the affections and experiences either are sensations of some kind or at least never occur apart from sensation.


COMENTÁRIOS

Aubry

O primeiro parágrafo do Tratado 53 tem algo de confuso: se ele anuncia o plano do tratado, é sob a forma, enganosa, de uma investigação sobre as faculdades [dynamis]; Plotino   passa em revista, segundo uma ordem que se reconhece hierárquica, uma multiplicidade de estados e de operações para perguntar qual é o sujeito [hypokeimenon]. Ora esta investigação não chaga à determinação de um único sujeito de atribuição. A multiplicidade [plethos] primeira não é portanto reduzida senão a distribuída entre três sujeitos possíveis: a alma [psyche], a alma usando do corpo [soma], ou "uma terceira coisa composta da alma e do corpo". É sobre estes, em verdade, e sobre a validade das fórmulas que os designam, que a investigação vai tomar lugar: será preciso determinar quais, entre eles, podem contar como substâncias, e de que natureza.

É por uma litania das paixões [pathos] que se abre o tratado. Há uma enumeração escolar, mas também retórica: as paixões são elencadas por pares de opostos, prazeres [hedone] e aflições [lype], temores [phobos] e audácias [tharre], desejos [epithymia] e aversões [apostrophe], onde todas vêm a se resumir em um termo único: o sofrimento [algein tinos], como se este fosse a chave. Faz lembrar o Timeu  , e a descrição, pelo demiurgo [demiourgos], das modificações suscitadas na alma por sua "implantação" no corpo; mais adiante, no entanto, no mesmo texto, as paixões serão apresentadas como componentes da "alma mortal" (69d). Tal lista se encontra também no Filebo  , onde "cólera, temor, remorso, luto, amor, ciúme, inveja e outras afecções deste gênero" são designadas como "dores da alma só" (47e). Aristóteles  , enfim, quando evoca estas paixões, delas fala como atributos comuns à alma e ao corpo (De Anima, I,1, 403a7). A questão do sujeito das paixões parece então ditada pelas incertezas e as divergências da tradição. E é, de novo, através de termos de empréstimo que Plotino vai formulá-la; ele distingue com efeito três sujeitos possíveis: "a alma", "a alma usando do corpo", ou "uma terceira coisa composta da alma e do corpo", esta última podendo ser "a mistura" [krasis] ela mesma ou uma entidade nova dela resultando. Esta tripartição lembra o Primeiro Alcibíades   que, para a questão "o que é o homem [anthropos]?" propunha três respostas: "a alma, o corpo, o o todo formado da alma e do corpo" (130a-b). Mas mesmo fazendo lhe fazendo eco, Plotino põe estas três hipóteses a serviço de uma questão que não é aquela de Platão  . Se coloca assim, de pronto, o problema da relação do Tratado-53 ao Primeiro Alcibíades: viu-se que para Porfírio  , o editor das Enéadas, assim como para a tradição neoplatônica, os dois textos exerciam a mesma função, propedêutica, iniciática, e isto enquanto eram todos os dois regidos pelo preceito délfico do "Conhece-te a ti mesmo" [gnothi seauton]. E, de fato, o Alcibíades transparece imediatamente sob as primeiras linhas de nosso tratado: porque então Plotino transpõe a questão diretora? Como compreender que para a questão da essência do homem ele a substitua por aquela do sujeito das paixões? [AUBRY]


Depois do sujeito das paixões [pathos], é o sujeito da opinião (doxa) e da reflexão (dianoia), depois o dos atos intelectuais (noêseis) que se questiona. O primeiro será discutido nos § 7 e 9, o segundo no § 2 e, indiretamente, nos § 8 a 11. No entanto, e novamente, essa linearidade é enganosa: por um lado, porque, como vimos, o tratado , em seu primeiro momento, é regido, muito mais do que pela recensão graduada das faculdades [dynamis], pela triplicidade dos assuntos entre os quais estes se distribuem, e por uma interrogação sobre o caráter substancial destes; por outro lado, porque, em seu segundo momento, a questão do sujeito [hypokeimenon] substitui a da substância [ousia]. É assim que a dianoia não aparecerá simplesmente como atributo do sujeito (o hemeis, ou "o nós"), mas como sua operação definicional, e isso na medida em que, precisamente, este sujeito não é uma substância, não existe como um substrato independente das atividades que realiza. Da mesma forma, procuraremos muito menos determinar o sujeito do pensamento (a alma separada que, por sua vez, é de fato uma substância, simples e totalmente atual), do que determinar em que condições o hemeis pode se identificar para este.

Assim, e de novo, a questão da atribuição é apenas uma questão de fachada: não será tanto uma questão de saber a que sujeito essas diferentes faculdades devem ser atribuídas, mas de saber em que condições o sujeito pode exercê-las, sabendo que esta atividade determina sua identidade. Se, na primeira parte do tratado, a questão da atribuição mascara uma questão de ordem sobretudo ontológica sobre a substancialidade, na segunda parte ela esconde uma questão prática de identidade.

Armstrong

The starting-point of the discussion seems to be a passage of Aristotle, De Anima A. 4. 408b 1 ff., where Aristotle raises the question whether the soul is really "moved" when is has these affections. It is possible also tha Plotinus has in mind (as Aristotle most probably has) Plato’s description at Laws X 897A of the motions of soul which are prior to and the cause of the motions of body: this seems more relevant to the present discussion than the passages (Republic   429C-D and 430A B; Phaedo   83B) cited by Henry-Schwyzer in their apparatus fontium. (They also cite the Aristotle passage.)


Ver online : Plotino


[1As três possibilidades enumeradas aqui ecoam o Primeiro Alcibíades de Platão: o homem pode ser a alma, o corpo, ou o todo formado de uma e do outro (130a). Ver também a questão inicial do De Anima de Aristóteles (I, 1, 402a9-10), que visa distinguir os atributos próprios à alma daqueles que pertencem ao animal inteiro.

[2Cf. Platão, Timeu, 35a. A mistura (aqui migma) pode não ser senão a adição das partes constitutivas ou dar nascimento a uma nova substância.

[3pragmata é aqui sinônimo de pathe. Aristóteles, no De anima, emprega estes dois termos indiferentemente, por oposição a ergon e a energeia para designar todo estado passivo (cf. I,1,403a10).

[4É o termo dianoia que traduzo por "reflexão", de maneira a marcar a ligação que estabelece Plotino entre o raciocínio discursivo e a consciência (cf. Tratado-49). O plano do tratado continua a se enunciar: ver §7 e §9.

[5Traduzo noeseis por atos intelectuais, de maneira a fazer entender a raiz "noûs" (intelecto) e a sublinhar o caráter eminentemente ativo, e atual, da alma à qual é atribuída o puro pensamento. Ver o parágrafo seguinte, assim como os §8 e 9.

[6Notar a singularidade desta questão reflexiva. Encontra-se a mesma virada no Tratado 27,1,11 ; ver também Tratado 10,1,30. Resposta no §13.

[7Cf. Aristóteles, De anima, I,1,403a7; ver §2, 25-27 e §5.

[8Esta distinción obedece a que hay pseudo razonamientos (9, 8-9; cf. 9, 18-22) y pseudo opiniones (III 6, 4, 18-21), que son más propios del compuesto que del alma.

[9This most direct translation of "pathos," is defective in that it means rather an experience, a passive state, or modification of the soul. It is a Stoic term.

[10"Dianoia" is derived from "dia nou," and indicates that the discursive thought is exercised "by means of the intelligence," [noûs] receiving its notions, and developing them by ratiocination, see V, 3, 3. It is the actualization of discursive reason "to dianoetikon," or of the reasonable soul ("psyche logike"), which conceives, judges, and reasons (dianoei, krinei, logizetai).

[11"Noesis" means intuitive thought, the actualization of intelligence.