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LÉXICO DE PLATÃO

Schäfer (LP) – a filosofia de Platão como uma teoria da ação

domingo 9 de janeiro de 2022, por Cardoso de Castro

      

SCHÄFER, Christian. Léxico de Platão: Conceitos fundamentais de Platão e da tradição platônica. São Paulo: Loyola, 2012

      

I. A filosofia de Platão   como uma teoria   da ação: historicamente, o conceito de ação se orienta por uma descrição da práxis como uma ação com fim em si mesma no sentido aristotélico. Por outro lado, o Sócrates   de Platão não dá continuidade   à fundamental diferenciação de Crítias do conceito de ação num fazer (poiein  ) sem qualificação moral e num agir (prattein  ) moralmente talvez bom (Cárm. 163b-d; cf. Banq. 205b-c). Todavia, Platão utiliza a palavra prattein para descrever a ação que conduz à felicidade   humana (eudaimonia) (Cárm. 172a; Eutid. 279e; Górg. 507b-c; Bien 1989, p. 1277). No retrato da figura ideal de Sócrates, ela é desde o início um imperturbável ater-se ao que é reconhecido como bom (Apol. 28b-d). A assim caracterizada atividade   do agir, especificamente humana, representa um ponto de partida importante na filosofia de Platão, como fica nítido nos primeiros diálogos  . Em certo aspecto, sua abordagem total se deixa descrever como uma reflexão sobre as condições formais da ação humana, uma reflexão que só secundariamente é diferenciada segundo campos de ação individuais e seus objetos (Kauffmann 1993, p. 21). A reflexão sobre o agir contribui para a construção da teoria na medida em que ela não se contenta em combater com argumentos da própria práxis a teoria da ação sofistica orientada por irrefletidas ponderações acerca da utilidade  . Ao contrário, Platão tenta chegar a uma avaliação fundamentada do valor   moral da ação humana, que ele vê expressa na condução filosófica da vida, que justamente não se orienta pelo sucesso exterior (Górg. 500c; Féd. 69c-d; Eutid. 282c-d; Kauffmann 1993, p. 79 s.). Essa perspectiva moral deve proibir que caracterizemos a filosofia de Platão como “poiética” no sentido aristotélico (Buchheim 1986, p. 131-135), embora ela, diante da sofística, se empenhe por uma avaliabilidade, por assim dizer, objetiva da ação humana (Crát. 386e-387b, em relação à ação técnica) e, para essa meta de avaliação da ação, inclua pontos de vista ontológicos (Fil. 18e-19a; Kauffmann 1993, p. 52-58).

II. A filosofia de Platão como determinação da dimensão objetiva do agir: a dimensão objetiva do agir já se revela nas primeiras determinações de Platão do que constitui a práxis autêntica. Aqui ele começa com uma distinção entre diferentes formas do agir segundo seus objetos, conforme ele, por exemplo, se pauta por objetos físicos ou por palavras (Górg. 449c-454a). Mas essa tipologia rapidamente se aguça como questão a respeito do agir moral. Seu significado é esclarecido por atividades referentes à POLIS, nas quais fica nítido que elas não podem ganhar sentido por meio de habilidades, mas apenas com um objetivo moral. Uma doutrina   retórica ou política deve, portanto, ter uma fundação moral, como é constatado em relação aos sofistas (Górg. 454b-461b). O significado da dimensão moral do agir resulta da pergunta sobre como se deve definir   corretamente o que é aprazível (hêdy) para o homem  : a longo prazo e no todo, ele coincide com o moralmente bom e deve ser [29] definido por este (Prot. 354a-356c). Contudo, não fica claro nessa passagem se a moralidade também é motivada por coisas que não sejam o empenho pela felicidade. Contra essa interpretação da obra total de Platão fala, porém, o peso aqui atribuído ao bem como uma grandeza   objetiva. Ele encontra sua mais nítida expressão na posição de destaque que cabe à IDEIA do bem também dentro, ou além, do ser do mundo das ideias (epekeina   tês ousias: Rep.   509b); mas nesse ponto permanecem obscuras as implicações dessa suposição para a teoria da ação (PFANNKUCH 1988, p.169-183). Essa dignidade ontológica do bem adentra a descrição do agir correto, pois este deve corresponder ao bem, na medida em que exibe autarquia (hikanon) e perfeição (teleon) (Fil. 20d, 22b; Kauffmann 1993, p. 61). A objetivabilidade da bondade da ação se exprime também na surpreendente tese de que a boa ação se deixa medir do mesmo modo que todas as outras habilidades (technai) (Pol. 283e-284d).

III. A racionalidade como fator determinante do agir: Platão vê a determinação da práxis humana pela razão como condição necessária para o conhecimento do agir correto (ver INTELIGÊNCIA). No Fédon, essa razão é nitidamente separada das causas secundárias da ação humana: a causa   de Sócrates estar sentado na prisão é a OPINIÃO (doxa  ) dos atenienses, fundamentada pela razão (nôus), de que ele deve morrer  , ou sua própria opinião de que é melhor ele aceitar   o julgamento   do que se salvar por meio de uma fuga  ; as causas físicas, que possibilitam a exposição dessas visões, são secundárias (Féd. 98b-99b; Pol. 281e). Tanto no Protágoras, um diálogo   inicial, quanto nas Leis, uma obra tardia, é pela razão (noûs ou epistêmê) que alguém age bem, enquanto a falta de uma compreensão racional resulta numa má ação (Prot. 355b-357e; Leis 897b). No pano de fundo está a visão de que todo o cosmos é, em última análise, determinado pelas causas racionais, diante das quais a realidade dos astros também é secundária (Féd. 97b-98b; Leis 892b). No entanto, a reflexão sobre o conceito de felicidade no Filebo   leva à compreensão — conciliável com o Protágoras — de que só a racionalidade não basta para um bem tal como deve ser representado pela ação; também a alegria   ou prazer (hêdonê) deve entrar na determinação do que é bom para o homem (Fil. 20e-22a).

IV. Estrutura  ção do homem que age corretamente: dessas questões, Platão desenvolve distinções essenciais para uma adequada teoria da ação, por exemplo distinções entre ação interior e ação exterior (Rep. 443c-d) e entre formas diferentes do ser anímico que contribuem para a ação, por exemplo a célebre tríade razão, apetite e ânimo (Rep. 437a-441c), que, por sua vez, se explica da união   da alma   racional com seu corpo (Féd. 66b-67b). Então, sob esses pressupostos a disposição   do indivíduo   que age corretamente ou sua justiça (dikaiosynê) são determinadas pela correta relação dos diferentes elementos   (Rep. 441d-e). A comparação com a ordem   da polis na República, assim como a comparação com o cosmos no Górgias (506d-507a) mostram claramente que essa relação não é uma relação aleatória. Nas Leis, a correta consideração   ao todo, diante de detalhes sem importância, constitui a ação boa em contraposição à má (901b-c).

V. A gênese da má ação nas Leis: uma elaborada teoria da ação numa perspectiva cosmológica é oferecida nas Leis, em que [30] o MOVIMENTO   ordenado ou desordenado da alma, identificado com seus pensamentos [logismoi), é visto como causa da boa ou má ação (Leis 896e-898d). Aqui se pressupõe que o MAL não deve necessariamente derivar da MATÉRIA, mas pode nascer da própria alma, quando esta não encontra a racionalidade que lhe é apropriada (STEINER 1992a, p. 158 s.). O QUERER (bulêsis) da alma, aí pressuposto e que carrega a responsabilidade da estrutura moral de todo ser dotado de razão (Leis 904b-c), baseia-se em seu empenho pelo aprazível (Leis 734c); esse querer se torna um esforço pelo bem quando se reconhece que esse aprazível também está ligado a virtudes da alma e, portanto, ao comportamento   racional (Leis 734c-e; cf. Prot. 358c-d). Quando se decide pelo mal, isso é devido ou à ignorância (anoia, amathia  ) ou à falta de comando próprio (akrateia) (Leis 734b). Em relação à última forma de uma decisão pelo mal, o Livro X faz uma distinção entre uma derrota (hêtta) diante dos desejos (cf. já Prot. 352d-353) e indolência e negligência, que são resultado da covardia (deilia  ) (Leis 901e-902b). Portanto, as decisões para a má ação não se seguem de uma decisão positiva: “Necessariamente todo mundo é licencioso involuntariamente” (Leis 734b). O motivo disso é que a ação moral, que contém decisões boas e más, é sempre o ato de seres fisicamente constituídos (Leis 904a); isto deve ser distinguido da primazia ontológica geral do ser anímico em relação ao físico (Leis 896b-d). Portanto, a descrição psicológico-moral da gênese da má ação (ver INTELIGÊNCIA) dada no Protágoras é desenvolvida nas Leis, pois a falta de autocontrole   é levada a sério como causa da ação acrática. Mas aqui não se supõe uma vontade como faculdade anímica autônoma, que, de poder próprio e espontaneamente, pode decidir por algo contrário à razão (Baumgarten [1998, p. 252 s.] apresenta uma argumentação errônea).

VI. Tradição platônica: no platonismo antigo, a perspectiva da teoria da ação da doutrina de Platão passou para segundo plano, pois as declarações de Platão foram sistematizadas a partir de um interesse   primariamente ontológico na questão. No neoplatonismo, ocorre, desde Plotino  , uma forte   interiorização do desenvolvimento do homem, que faz recuar a relevância do conceito de ação, na medida em que a vida prática é nitidamente separada da verdadeiramente filosófica, isto é, a vida orientada pela teoria (Proclo  , In Platonis Rem publicam 1, 100, 10-12 Kroll 1899). No neoplatonismo, a práxis é vista como objeto da racionalidade discursiva da alma que se encontra no corpo, uma racionalidade que se refere totalmente ao mundo material e, diferentemente da racionalidade teórica, não é capaz de um conhecimento intuitivo-noético da verdade (por exemplo, Prisciano da Lídia [Pseudo-Simplício, c. 530 d.C.], In De anima 218,20-25). Permanecem exceção as tentativas de uma teoria da práxis como a diferenciação por Prisciano de ação e campos de ação do homem, que experimentam uma unidade   pelo planejamento de vida da pessoa agente (In De anima 296 s., 275 s.). [SchäferLP]