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Antiguidade

António Mesquita (RP:64-66) – Laques — ser - saber - coragem

Platão e platonismo

sexta-feira 17 de dezembro de 2021, por Cardoso de Castro

      

[MESQUITA  , António Pedro  . Reler Platão. Ensaio sobre a teoria   das ideias. Lisboa: Imprensa Nacional, 1995, p. 64-66]

      

Os polos da circularidade [ser e saber] estão aqui bem presentes, assim como a própria circularidade: o que falta para a completar é, no entanto, o entendimento din  âmico dessa circularidade, pelo qual tais polos possam propriamente circular numa direção definida e, portanto, compreensível.

Ora esta falta surge colmatada in concreto no Laques  , pela tipificação da coragem   que dois   generais, Laques e Nícias, realizam.

Duas passagens são particularmente curiosas: 1 — a seguir ao momento em que Sócrates convida o seu interlocutor a harmonizar o comportamento   com as palavras, mostrando coragem aí mesmo onde se procura a natureza da coragem (194a), Laques mostra-se embaraçado, dizendo que até então lhe parecia compreender bem o sentido da coragem, enquanto agora se vê confundido e incapaz de dizer o que ela é (194b); 2 — em resposta   à doutrina   de Nícias sobre a ἀνδρεία [andreia], Laques insurge-se contra o fato de ela pôr em causa   todos aqueles que são unanimemente reconhecidos como corajosos, ao que Sócrates responde, tranquilizando-o: «Não, Laques, descansa. Eu acho que tu és sábio, e Lámaco certamente também, porque vós sois corajosos tal como muitos outros Atenienses.» (197c)

Se, como tudo leva a supor, devemos interpretar no seu rigoroso sentido literal a última declaração de Sócrates [1], somos outrossim forçados a emprestar sinceridade à afirmação de Laques de que compreende bem o que é a coragem, ainda que a não saiba agora determinar: pois que a sua própria experiência íntima não pode ser absolutamente opaca e absolutamente renitente a uma certa forma de conceptualização, como Sócrates justamente ensina nas passagens anteriormente aduzidas (§ 11). Contudo, se a sua experiência da coragem não pode ser absolutamente renitente a uma versão discursiva pela qual ascendesse ao saber do que ela é, isso é o que se deve “ao fato mesmo de a coragem ser um saber, que é o que na segunda passagem Sócrates precisamente diz: «Eu acho que tu és sábio, e Lámaco certamente também, porque vós sois corajosos».

E, deste modo, somos conduzidos a distinguir   aqui dois tipos diferentes de saber, um que Laques revela como corajoso e que é aquele que permite a Sócrates designá-lo como tal, outro que Laques não revela, porque, sendo muito embora corajoso, é incapaz de dizer o que é a coragem.

Todavia, a simples descrição destes dois tipos de saber toma claro que eles são mediados dialeticamente por duas concepções do que significa «o que é»: com efeito, Laques é corajoso e, por isso, a coragem é imediatamente para ele o que ele próprio é, na pura coincidência irrefletida consigo mesmo, tomando o seu saber da coragem um saber natural  , mas ao mesmo tempo absolutamente opaco [2]; mas, por outro lado, o ser   corajoso de Laques não é o que a coragem é e, deste modo, a fissura que não existia no interior do seu imediato e «natural» saber transfere-se tragicamente para o seu próprio ser, como a inapercebida insuficiência e incompletude de quem não é ativamente a coragem, mas de algum modo simplesmente se deixa ser corajoso.

Nesta medida, poder-se-ia resumir estas duas vertentes, dizendo que o que aqui está em causa é, por um lado, o ser corajoso e, por outro, o ser da coragem e que cada um deles constitui um saber determinado: o primeiro, o mero saber pelo qual o corajoso pode ser tal; o segundo, o saber que a coragem é. Mas, como para ser simplesmente corajoso não é necessário saber a coragem como tal, senão apenas efetivá-la no seu saber, ou, de outro modo, sabê-la na sua efetividade, o saber é aqui um saber reduzido, i. e., um saber vivido e aplicado imediatamente na ação como coragem, a que não corresponde nenhum apossamento do saber por si mesmo  , e onde, portanto, o próprio ser corajoso não pode garantir-se como tal e para sempre, quer dizer, «por essência». E, paralelamente, o saber em que a coragem propriamente e em si mesma consiste fica sendo o fito ou o [65] ideal que todo o saber «vivido» íntima mas irrefletidamente alemeja, porque simultaneamente a condição para que o próprio ser corajoso seja verdadeiramente tal, i. e., não só às vezes ou «por acidente», mas como tal, quer dizer, como coragem.

Na verdade, se a coragem é de fato um saber, ninguém é efetivamente corajoso a não ser quando é efetivamente sábio; e esse saber é simultaneamente um ser efetivamente corajoso, da mesma forma que tal ser efetivamente corajoso se dá apenas no interior de um saber total.

E esta uma nova versão, já dinâmica e completa, da circularidade: a coragem é um saber e esse saber é já a coragem; o saber é a coragem, mas esse ser a coragem só se consuma no interior de um saber (= ser) total.

Uma tal circularidade admite no entanto dois níveis: num primeiro nível (o do saber que é coragem) encontramos um saber que se ignora e, portanto, um ser minguado e reduzido, que nunca é plenamente; num segundo nível (o da coragem que é saber), descobrimos um saber que se sabe como tal e que por isso é verdadeiramente. O trajeto de um para o outro, poder-se-ia dizer reminiscente e dialético, é o que Sócrates faz e provoca, é a filosofia.

Podemos assim fazer concordar as duas situações atrás contrapostas, vendo-as agora como a tipificação de dois níveis diferentes: o corajoso é sábio, mas de um saber que é puramente a coragem, i. e., que se subsume inteiramente no ser corajoso; mas, pelo contrário, só o sábio é corajoso pois só no saber absolutamente auto-possuído   reside o verdadeiro saber (=ser) a coragem. E, se os dois são sábios, isso deve-se a uma duplicidade de perspectivas possíveis no interior da noção de saber: o corajoso é sábio porque participa desse saber que a coragem é; pelo contrário, o sábio é corajoso, porque o seu saber é a própria coragem.

E, deste modo, analogamente aos dois níveis do saber, encontramos dois níveis de ser, o nível «participativo» do ser corajoso e o nível «essencial» do ser a coragem. E só aqui ganha inteiro significado o convite de Sócrates para que harmonizemos a ação com a palavra, sendo realmente corajosos ao procurar a coragem, uma vez que ela nos assinala como horizonte   fundamental o momento em que o ser e o saber se não distinguem.


Ver online : Platão


[1Cf. Santas, «Socrates at Work on Virtue and Knowledge», pp. 178-179, e Kahn, «Plato’s Methodology in the Laches», p. 16.

[2O que, no interior dos diálogos socráticos, tem como perfeito símile a instintiva resposta de Êutifron, quando, ao ser abordado por Sócrates, significativamente define assim a piedade: «é o que eu faço agora ...» (Euthphr., 5d).