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A arete como possibilidade extrema do humano
Caeiro (Arete:97-99) – compreensão do acontecido
Fenomenologia da práxis em Platão e Aristóteles
domingo 12 de dezembro de 2021, por
CAEIRO, António de Castro . A arete como possibilidade extrema do humano. Fenomenologia da práxis em Platão e Aristóteles. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 97-99
§17 A reprodução imitadora (μίμησις ) como o paroxismo da situação habitual de compreensão do que nos acontece
Esta contraditoriedade de interpretações é já apurável quando comparamos a compreensão natural que temos deles com a compreensão que nos é «oferecida» pela tematização mimética. Naturalmente, propendemos para uma compreensão da depressão (λύπη [lype]) que a interpreta e «sente» como «uma qualquer má situação» que acontece, que é difícil ou impossível de suportar. Mas quando se produz uma des-situação relativamente a essa experiência dolorosa, quando passamos em revista o que nos aconteceu, a partir de uma dada distância «teórica» criada pelo tempo que entretanto passou, o que sucede é um acontecimento extraordinário, porquanto todos os fenômenos que na sua forma de afetação nos trouxeram um dia sofrimento passam agora por uma tal alteração que chegam até a ser acolhidos como fenômenos cuja forma patológica constitui uma certa doçura (ἡδύ [hedu]) enquanto uma forma de prazer (ἡδονή [hedone ]), uma certa graça (χάρις [charis]), isto é, numa forma fenomênica que é completamente contrária àquela em que aconteceram.
Tanto a tragédia como a comédia detêm este poder de transfigurar a depressão (λύπη) em prazer (ἡδονή). A comédia, na medida em que, destacando o ridículo de uma situação embaraçosa, a qual a acontecer-nos nos deixaria cheios de vergonha , a transforma numa situação ridícula. A tragédia, na medida em que transforma em doçura toda e qualquer forma de aflição.
Só a anulação da «distância» nossa relativamente àquilo que nos acontece e a transformação do sofrimento em «meu» sofrimento ou do ridículo em «meu» ridículo faz que se constitua a verdade do que aqui se fala. Ou seja, a própria diferença que se apura entre uma afetação patológica que não nos deixa ver o que pode ser uma saída para o futuro e nos deixa para sempre presos ao que nos aconteceu e a possibilidade de lhe fazer resistência, procurando um sentido [97] que nos oriente o movimento de reação àquilo para que se propende naturalmente, esta diferença, repita-se, é completamente anulada pela reprodução (μίμησις [mimesis]). A reprodução (μίμησις) leva ao extremo o prevalecimento da estrutura patológica sobre a possibilidade de uma interpretação «lógica» desses fenômenos, não nos permitindo, assim, ver as diferenças estruturais constituídas nas situações (πράξεις [praxeis]) humanas. Essas diferenças estruturais só passam a estar presentes a partir de uma tematização das perspectivas de que temos em vista um e o mesmo fenômeno .
A estranheza da nossa vida está nisto mesmo, ou seja, ser possível que o que só «se aguenta» de uma forma violenta, como a exposição a situações adversas que nos acontecem (οἰκεῖαι συμφοραί [oikeiai symphorai]), situações que nos fazem ter «fome de chorar» [Rep. , 606a4], nos fazem lamentar amargamente, deprimem e trazem sofrimento, possam ser interpretadas, vistas à distância, como afetações alheias (ἀλλότρια πάθη [allotria pathe]), como fenômenos de prazer [1]. O pathos (πάθος) da distância faz-nos regozijar e exultar com fenômenos de depressão (λύπη). Uma e a mesma situação pode dar azo a uma diferença completa e radical, uma diferença que se estabelece quando se considera o modo como ela eclode e nos afeta e o modo como ela é vista com a distância «teórica». O modo como nos reportamos à situação tematizada é completa e radicalmente diferente quando a estamos a ter em vista à luz do pathos (πάθος) da distância e quando ela nos sucede, fazendo surtir o seu efeito sobre nós. Uma coisa é o que nos surge (γίγνεσθαι ἡμῖν [gignesthai hemin]) e outra coisa ter em vista (θεωρεῖν [theorein]) essa mesma situação. Este modo de comportamento relativamente à situação humana (πρᾶξις) constitui a diferença entre uma afetação em nós domiciliada (οἰκεῖον πάθος [oikeion pathos]) e uma afetação que nos é alheia (ἀλλότριον πάθος). As afetações alheias (ἀλλότριον πάθος) não significa apenas o que acontece a uma outra pessoa . A «alteridade », a «alienação», o «alheamento», dão expressão à distância patológica relativamente a uma qualquer situação humana em que os outros ou nós mesmos nos encontremos. O alheamento patológico pode, por conseguinte, constituir-se também relativamente a nós mesmos. Nada há de tão aflito que com o tempo não nos possa surgir à luz de uma profunda mas suave melancolia, de uma doce tristeza, quando na verdade o que aconteceu trouxera até nós a mais profunda das depressões, o mais agudo sofrimento. Tudo o que no momento do seu acontecer [98] só dificilmente é suportado [2] surge-nos à distância com um outro vigor patológico que destrói a verdade do que sucedeu.
A fabricação imitadora (ποιητικὴ μίμησις [noietike mimesis]) «cultiva e irriga estas formas patológicas quando as deve secar; investe os afetos como nossos dominadores, quando somos nós que os devemos dominar, para que nos tornemos melhores e mais felizes em vez de piores e mais miseráveis» [Rep., 606d]. A educação nas situações humanas [Rep., 606e3] não pode sem mais corresponder a uma redução do prazer ao melhor de tudo nem do sofrimento ao pior de tudo. Esta redução só é possível a partir de uma alienação absoluta relativamente a esses acontecimentos [Rep., 607a5]. Uma alienação e um distanciamento que temos de destruir.
[1] Esta «fome» de chorar representa o nosso desejo natural, quando nos encontramos nestas situações (Rep., 606a5). Os poetas identificam-no e «preenchem-no, produzindo agrado».
[2] É precisamente um esforço de desconstrução desta natureza o que se joga na determinação da adikia no Górgias: estar num ponto de vista em que se consiga decidir se de fato o que temos em vista é bom, surge à luz de um mero prazer, ou se de fato, uma vez realizado, não corresponde senão a uma tristeza, a um lamento.