O pensamento plat6onico tem sido, quase desde o seu início, condenado a ser visto pelos olhos de outrem.
É certo que essa é a condição de toda a exegese : não só enquanto tal tarefa supõe o olhar de um outro ou «de si mesmo enquanto outro», mas principalmente porque ela mesma é necessariamente alteradora, tendo de tomar o que interpreta num «outro» para que haja propriamente interpretação.
Não é essa alteridade , contudo, aquela a que aqui nos referimos: nem que seja porque a fecundidade daquele exercício hermenêutico resulta da progressiva proximidade que tal alteridade promove, de tal modo que, por ela — e só por ela — o pensamento interpretado surge sempre renovadamente restituído a si mesmo, com isso superando, ou redimindo, a alteridade como tal.
Todavia, se não se trata aqui desta intrínseca alteração hermenêutica, não se trata também da extrínseca alteridade que está suposta na deturpação ou na incompreensão, por essa espécie de constitutivo alheamento que impede de ver, por deformação, preconceito, pusilanimidade ou simples incapacidade, o que afinal se encontra diante dos nossos olhos.
A alteridade a que nos referimos é, se se quiser, a alteridade do próprio olhar — quer dizer, a diversidade do ponto de vista. E tal significa que, se o pensamento platônico tem sido condenado a ser visto pelos olhos de outrem, é porque tem sido condenado a ser visto por uma lógica que lhe é irremediavelmente alheia: sendo que tal lógica e a do pensamento platônico são justamente dois pontos de vista, que podem ver-se mutuamente, mas não mutuamente encarnar -se.
Ora, o ponto de vista platônico tem um nome e pode ser designado: uno e múltiplo. A perspectiva própria do pensamento platônico é, pois, a da relação, ou melhor, de uma certa relação, entre unidade e multiplicidade, que a lógica que tradicionalmente sobre ela incide, de matriz aristotélica, não pode apreender sem imediatamente alterar .
É certo que também a perspectiva de toda a tradição filosófica e de algum modo o eixo fundamental da lógica que a serve pode ser caracterizada como uma perspectiva de uno e múltiplo — pelo que se diria não ser deste modo que se afirma a diferença do filosofar platônico. E, como é igualmente certo que é outrossim uma perspectiva de uno e múltiplo a que, com justiça, semelhante tradição tem, desde Aristóteles, encontrado na base do pensamento platônico, dir-se-ia neste ponto que não é decerto também por aqui que se pode afirmar a diferença de qualquer interpretação que repita esse encontro, enquanto justamente o repete.
O problema é, todavia, o de que essa perspectiva de uno e múltiplo não é a mesma nos dois casos — ou, de outro modo, que a lógica do pensamento platônico nunca é uma lógica aristotélica antecipada. E nesta medida, para circunscrever o proprium do filosofar platônico, não basta apontar o uno e o múltiplo como sua perspectiva reitora: é preciso perspectivá-la platonicamente, de tal modo que o próprio ponto de vista platônico seja visto platonicamente e a própria questão do uno e do múltiplo preliminarmente circunscrita no específico sentido que lhe atribui Platão.
Ora, Aristóteles — e com ele toda a tradição que nele teve início — pensa a questão do uno e do múltiplo em Platão como uma relação de ἕν ἐπὶ πολλῶν, de «uno sobre o múltiplo», no sentido da recondução de cada conjunto de realidades diversas à unidade que está suposta na sua própria conjugação, ou, de outro modo, no sentido da subsunção de toda multiplicidade de particulares de um mesmo tipo sob a unidade desse tipo.
Nesta leitura, é certamente em Platão e na própria letra platônica que Aristóteles se inspira: se é certo que a mais canônica descrição da ideia platônica é aquela que a radica no costume de «pôr uma certa ideia, cada uma única, para toda a multiplicidade a que atribuímos o mesmo nome.» (R., X, 596a). O que entretanto já oferece fundadas dúvidas é que o pensamento platônico pense a questão do uno e do múltiplo apenas ou primeiramente daquele modo, quer dizer, que ele seja apenas esse pensamento do uno e do múltiplo.