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Introdução ao Pensar
Buzzi (IP:31-32) – o mito
Capítulo 2 O Conhecimento Mítico
terça-feira 7 de dezembro de 2021, por
O MITO , embora na linguagem comum o termo seja usado como sinônimo de crença dotada de validade mínima e de pouca verossimilhança, não deve ser visto como produto de uma atividade secundária e subordinada do intelecto . Porque o saber lógico-científico não consegue controlar a linguagem mítica, considera-a como ilógica. O ilógico é um termo criado pelo poder lógico para dominar o que não pode. Por conseguinte, quando a ciência coloca a linguagem mítica no reino da incoerência lógica, ela confessa o limite de sua compreensão e proclama, no espaço de seu saber, um outro desconhecido ao modelo lógico de compreensão. O alcance do mito nunca é percebido com nitidez.
«O mito não encontra, de maneira nenhuma, adequada objetivação no discurso» (Nietzsche , F., Origem da Tragédia, p. 128).
O conhecimento expresso em mitos traduz uma intelecção do ser de validade originária e primária, que se coloca num plano diferente da lógica racional, mas dotada de igual dignidade .
«A coerência do mito provém muito mais de uma unidade de sentimento do que de regras lógicas. Esta unidade é um dos impulsos mais fortes e mais profundos do pensamento primitivo» (E. Cassirer , Essay on Man, cap. 7).
Mito é uma profunda intuição compreensiva da realidade, vazada numa linguagem fantasiosa. As intuições míticas são de valor perene, porque exprimem os mais recônditos níveis de estrutura ção do psiquismo humano, inacessível à atividade do consciente lógico. O mito se constitui a partir do dinamismo-psíquico infra-estrutural.
O pensamento de Platão, nos seus voos mais sublimes, termina sempre afogado no mito. Freud e Jung , os corifeus da Psicanálise, exprimem seu saber numa linguagem simbólica, impregnada de mitos. A ciência nos seus avanços mais ousados termina sempre numa fantaciência (science fiction) mítica. Os mitos de Dionísio, de Prometeu, o mito do paraíso perdido, o mito da árvore da vida, o mito do desenvolvimento traduzem, numa intelecção própria e autônoma, a problemática existencial humana, sentida e vivida por todo homem .
Pela sua intuição e linguagem, o mito é algo de muito vivo, prenhe de significação existencial. Cada época possui seus mitos. Neles a sociedade consubstancia as respostas aos problemas fundamentais da vida. A «sociedade desenvolvida», a «hegemonia do proletariado», como fim de todas as alienações, a «liberdade burguesa» como dignidade do homem, a «pátria», são mitos do homem de hoje. A função social dos mitos foi amplamente estudada por Malinowski. O mito, segundo esse autor, é uma interpretação que possibilita a sociedade viver os fatos numa unidade e coesão superior. O mito é assim força que faz a história.
O melhor caminho para chegar à interpretação do mito não é o exame lógico de sua linguagem, mas a experiência em profundidade da existência. O mito é uma legenda, uma saga da história. Para interpretar essa legenda é preciso descer à din âmica da história, vivê-la, participar intensamente do destino humano.
Mito é a linguagem na qual o homem está em permanente diálogo com a realidade. O homem está sempre na linguagem da realidade, antes mesmo de instituir qualquer representação, qualquer expressão denotativa que traduza em palavras e conceitos esse seu modo de ser. Portanto, o mito é a própria existência, o concreto real na sua visibilidade máxima. Diz-se, p. ex., a ciência é mito, a flor é mito, o homem é mito. Isto significa que o que está aí, a ciência, o homem, a flor, são percebidos como revelando e ocultando o que eles são.
O mito está, por isso, intimamente ligado ao mistério, pois, quando o homem percebe o mito de tudo quanto é, ele está na experiência do mistério. Mistério é a presença inominável que se apresenta no particular-aí-imediato. É o estranho no familiar. Em alemão mistério é Ge-heimnis. Ge significa recolhido, guardado, preservado. Heimnis significa casa , lar. Mito é a experiência que nos faz ver que tudo o-que-está-aí vive recolhido e preservado na cripta secreta do ser.
O mito proferido é mitologia. Esta denomina também a realidade na inteligibilidade da representação que o sujeito (indivíduo ou sociedade) se faz. A representação é a linguagem denotativa dos agentes. Estes dizem a vida, os problemas e conflitos da comunidade, em expressões mitológicas. Essas expressões são apenas mediações que lhes possibilitam viver o mito da existência, i. é, a vida na ambiguidade de seu dar-se e recusar-se, de seu revelar-se e velar-se.
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