Página inicial > Modernidade > Ciência e Técnica > Fourez (CC:117-125) – do pré-paradigmático ao paradigmático

A Construção das Ciências

Fourez (CC:117-125) – do pré-paradigmático ao paradigmático

O método científico

quinta-feira 11 de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

      

FOUREZ  , Gérard. A Construção das Ciências. Tr. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: EDUSP, 1985, p. 117-125

      

 Ciência normal e revolução científica

Ao introduzir o conceito de paradigma   como conjunto   de regras e de representações mentais e culturais ligadas ao surgimento de uma disciplina científica, Thomas S. Kuhn   valorizou as decisões (muitas vezes não-intencionais, não-racionais, mas não se devendo ao acaso ou sendo irracionais) pelas quais uma disciplina toma sua forma histórica. Ao introduzir esse conceito, ele evidenciou que uma ciência tem data de nascimento, diante de questões e preocupações precisas, em uma rede de interesses precisos que hoje é fácil de analisar (como no caso da ciência da informática, em que se vê o contexto influenciar a estrutura   e a prática dessa disciplina). Colocou em questão, assim, fundamentalmente, a representação segundo a qual as disciplinas existiriam desde sempre, como pensam os idealistas.

Kuhn introduzia um conceito que gerou inúmeras controvérsias. Distingue com efeito dois   momentos bem diversos das práticas científicas. O que ele chama de ciência normal é o trabalho   científico que, no interior de escolhas paradigmáticas determinadas, tenta resolver problemas. E o que ele chama de revolução científica é o que acontece quando é o âmbito paradigmático de uma disciplina que é questionado.

Assim, no início do século XIX, a física trabalhava dentro do paradigma newtoniano e a maneira pela qual se agia corresponde bem ao conceito de “ciência normal”. Trabalhava-se dentro de um esquema teórico conhecido, que quase não se questionava. Além disso, no final do século, o paradigma do espaço newtoniano foi1 cada vez mais questionado; estar-se-ia diante de uma revolução científica: após um período de fervilhamento intelectual, nasceu o paradigma relativista. Uma análise análoga poderia ser feita no campo   da biologia da hereditariedade que trabalha dentro do paradigma da biologia molecular (Jacob  , 1970). Em cada caso, quando ocorre uma revolução científica, a disciplina redefine o seu objeto (respectivamente o espaço e a hereditariedade) por meio do novo paradigma. Seria o caso de perguntar-se também se a tendência na ciência da saúde em revalorizar os fatores psicológicos, sociais e globais não significa também uma certa revolução científica.

Existem inúmeras controvérsias relativas à operacionalidade da distinção entre ciência normal e período de revolução científica; de acordo com o ponto de vista, com efeito, pode-se considerar “pequenas revoluções científicas” ou “grandes” [1]. Porém, praticamente todos concordam em reconhecer   o valor   da contribuição de Kuhn quando ele indica a existência de um vínculo entre uma história cultural e o desenvolvimento das disciplinas científicas. Mesmo que alguns (Giard, 1974) acrescentem que ele negligenciou a importância da história socioeconòmica ligada às disciplinas.

 Nascimento de uma disciplina: período pré-paradigmático

O período durante o qual uma disciplina está a ponto de nascer, o momento em que ela é ainda relativamente flexível chama-se, de acordo com o grupo de Stanberg (um grupo de filósofos alemães, cf. Stengers  , 1981), a fase pre-paradigmatica. É o período em que as práticas das disciplinas não estão ainda bem definidas como, há cerca de 30 anos, a informática ou a vulcanologia. Em vulcanologia, por exemplo, Haroun Tazieff é o protótipo do cientista de uma disciplina em fase pré-paradigmática. Ele se recusa a utilizar técnicas que serão em seguida adotadas por outros vulcanólogos  . A sua prática científica parece por vezes que se baseia mais em uma familiaridade com os vulcões do que com métodos extremamente precisos. Essa prioridade do existencial sobre as regras da disciplina caracteriza esse período, assim como a importância dada às demandas sociais exteriores a uma comunidade científica cuja identidade   não está clara ainda. Sabe-se aliás como, em especial quando houve a ameaça de explosão do vulcão Soufrière, Tazieff foi contestado pelos “ortodoxos” da vulcanologia (ou seja, aqueles que haviam adotado o paradigma!; Lague, 1977).

O período pré-paradigmático se caracteriza em particular pelo fato de que não existem ainda formações universitárias precisas para se tornar um especialista dessa disciplina. Estes provêm de todos os campos, como se viu, no início dos anos 60, no período pré-paradigmático da informática. Os problemas se originam de maneira mais ou menos direta da vida cotidiana ou, em todo caso, de fora da disciplina: do mundo industrial, militar, da produção, de outras disciplinas científicas etc. Em informática, por exemplo, serão problemas colocados em termos de armazenagem, de gestão, de pesquisa operacional, e assim por diante. Em ciências ligadas ao campo da saúde, serão problemas diretamente colocados em termos de pessoas que estão doentes ou morrendo (o que explica aliás a prioridade da medicina   curativa sobre a medicina preventiva). Diz-se, aliás, que, durante esse período, são as “demandas externas” que são determinantes.

Durante o período pré-paradigmático, as realidades sociais são determinantes para a evolução de uma disciplina. Assim, na história da física, as necessidades da navegação, da balística militar, da mineração são preocupações que determinam as direções nas quais o objeto “físico” desenvolver-se-á. Para a informática, pode-se analisar a influência da indústria, e mais particularmente da “gigante” IBM. As questões que se colocaram os geólogos, por ocasião do período pré-paradigmático, foram fortemente influenciadas pelas pesquisas militares e petrolíferas. Quanto à geografia, ela esteve de maneira geral ligada ao “poder”: no período pré-paradigmático, é por vezes difícil distinguir um geógrafo do batedor de uma invasão (e aliás, não é sempre tão fácil fazer essa distinção atualmente, de tal modo a geografia tem servido ao exercício do poder, embora nem sempre para “fazer a guerra  ” e estabelecer impérios — militares ou econômicos). Por alto, pode-se considerar que a geografia nasceu como uma tecnologia   intelectual cujo objetivo era o de facilitar o governo (Lacoste, 1976).

As disciplinas científicas são portanto ligadas a múltiplos mecanismos sociais e mesmo a lutas sociais. São as demandas sociais e a maneira pelas quais os grupos de pessoas procuram responder a elas que determinam pouco a pouco a fisionomia própria das disciplinas. Por vezes, contudo, com o tempo, a demanda social externa pode ser obnubilada a um tal ponto que se poderia acreditar que ela desde sempre existiu. É o caso, por exemplo, da física e de outras “velhas” disciplinas de conceitos “enrijecidos” (Stengers, 1987, esquece-se, por exemplo, da ligação que a matemática teve com as técnicas comerciais e o vínculo que ela mantém atualmente com a nossa sociedade de gestão!). Para outras disciplinas, pelo contrário, pode-se ainda perceber o vínculo entre a sua origem social e o seu atual funcionamento   (é o caso para a geografia, a geologia, a medicina, a informática etc).

A atenção aos condicionamentos socioculturais dos paradigmas não deve fazer com que se perca de vista a importância das determinações ligadas a outros componentes da condição humana e de sua evolução. Assim, “a física de Galileu   remete ao fato de que vivemos em um meio onde as forças de fricção são geralmente débeis. Se, semelhantes aos golfinhos, tivéssemos vivido em um meio mais denso  , a ciência dos movimentos teria assumido uma forma diferente” (Prigogine & Stengers, 1988, p.21).

 Disciplinas estabelecidas: período paradigmático

Quando uma disciplina está “estabelecida”, fala-se de período paradigmático. É a época durante a qual ela tem o seu objeto construído de maneira relativamente estável, e suas técnicas são relativamente claras. Nesse momento, os problemas não são mais definidos tanto pelas demandas “externas” quanto por termos “disciplinares”. Será preciso, por sinal, traduzir o tempo todo as questões da vida cotidiana em termos paradigmáticos e vice-versa.

Desse modo, em medicina, em termos pré-paradigmáticos, falar-se-á de uma dor   de barriga  , enquanto, em termos paradigmáticos, será preciso traduzir essa demanda externa em termos mais disciplinares, falando por exemplo em hiperacidez no estômago   ou coisas semelhantes. Depois, será necessário traduzir novamente o problema em termos de existência cotidiana, prescrevendo remédios, por exemplo, e indicando como devem ser tomados, impondo ou discutindo regimes para a vida toda.

No período paradigmático, as pesquisas serão efetuadas em geral de maneira “técnica” (isto é, em termos que se referem às escolhas paradigmáticas): assim, haverá uma tendência menor a fazer pesquisas sobre a “dor   de barriga” do que sobre objetos já determinados pela disciplina, como as “úlceras estomacais”, ou outras questões ainda mais técnicas, definidas em termos bioquímicos, por exemplo.

De igual modo, em informática, no período paradigmático, o conceito de “armazenagem” tem cada vez menos a ver com o que pensa o merceeiro, mas será definido de uma maneira bem mais precisa no interior de um conjunto conceituai determinado pela matriz disciplinar e pelas teorias da informática.

Vimos também como, em medicina, a significação da palavra “curar” depende do paradigma dessa disciplina, a ponto de que se fala que se pode curar uma doença quando, de maneira concreta — ou seja, quando não se eliminaram as variáveis econômicas e culturais — , ela não pode ser na verdade curada.

Em todos esses casos, pode-se perceber ao mesmo tempo a força e a debilidade das abordagens paradigmáticas. Elas são fortes porque, sem elas, não conseguiríamos resolver a metade das questões concretas que resolvem as nossas técnicas modernas. Elas são débeis porque, separando-se cada vez mais da existência cotidiana, elas só resolvem os problemas pensados pelos especialistas, e não aqueles que sentem as pessoas em seu cotidiano. No fundo, a força da ciência provém de que os seus paradigmas simplificam suficientemente o “real” a fim de poder estudá-lo e agir sobre ele. Porém, é também em seu período paradigmático que se começa a criticar a ciência por se separar dos problemas da sociedade, assim como as tecnologias.

 O desenvolvimento das abordagens paradigmáticas

O funcionamento da ciência no período paradigmático pode ser comparado ao desenvolvimento das tecnologias materiais. Também elas começam por períodos   “pré-paradigmáticos”. Assim, no final do século XIX, uma série de pesquisas aqui e ali acabou criando uma nova tecnologia e um novo conceito: o automóvel. No século XX, esse conceito está bem definido. Desse modo, pode-se ver pesquisas ligadas ao que se poderia chamar de “ciência do automóvel”. Semelhantes trabalhos não definem mais os problemas estudados em termos de demandas externas (transportes, conforto etc), mas em termos técnicos, ligados ao “paradigma” do automóvel. Parte-se das pesquisas sobre os motores a explosão, os aceleradores, os carburadores e assim por diante. O objeto de pesquisa está bem definido pelo contexto tecnológico, mais do que pela demanda externa.

Neste sentido, pode-se considerar o período paradigmático como o momento em que uma disciplina científica, tendo determinado e construído o seu objeto, aprofunda a pesquisa nas direções determinadas por suas escolhas paradigmáticas — ocultando em geral a existência dessas escolhas e negligenciando a sua influência (Levy-Leblond, 1982). Para retomar a comparação com as tecnologias, pode-se examinar de que modo a pesquisa em relação ao automóvel dependeu de escolhas feitas no final do século XIX. Foram elas que determinaram todo um programa de pesquisas. De maneira similar, a biologia molecular, uma vez estabelecido o seu paradigma, levou adiante as suas pesquisas utilizando o patrimônio genético como “chave” da hereditariedade (do mesmo modo, levar-se-á adiante as pesquisas em tecnologia automotiva, como se o paradigma do automóvel constituísse a chave dos modernos meios de transporte).

Para compreender os elementos   aleatórios da evolução — ou da estagnação — de uma disciplina, poder-se-ia comparar a informática com a cibernética. Um observador superficial do início dos anos 50 teria apostado que, alguns anos mais tarde, a nova disciplina que era a cibernética (estudando os sistemas capazes de corrigir a si mesmos) teria estabelecido o seu paradigma. Ora, nessa época nascia a informática, que atingiu hoje a sua maturidade disciplinar, enquanto a cibernética continua no estágio pré-paradigmático, apaixonante graças a todas as mudanças por ela provocadas, mas sensivelmente menos desenvolvida do que a informática. Pode-se supor que o progresso da ciência dos computadores deve-se ao fato de que ela logo se ligou a desenvolvimentos econômicos, militares e comerciais, apoiados por empresas multinacionais (principalmente uma?), e por uma tecnologia precisa (o computador), ao passo que a cibernética permaneceu uma espécie de clube intelectual, interdisciplinar, fervilhamento de novas ideias, mas longe daquilo que Kuhn denominou de “ciência normal”.

Quanto ao exemplo da biologia molecular, ele mostra o interesse   do período paradigmático. Essa ciência aprimora uma tecnologia intelectual extremamente potente. Aprofundam-se os problemas dentro de um esquema que não se quer modificar. É desse modo que Kuhn comparou a pesquisa em período paradigmático (ou seja, a “ciência normal”) com a resolução de um quebra-cabeças: considera-se que as peças formam um conjunto que se tenta reconstituir. Kuhn comparará também o momento em que se pergunta se não existirão dois quebra-cabeças misturados no período da “revolução científica”, durante o qual se questionam as suas hipóteses fundamentais e o próprio horizonte   da pesquisa.

Por ocasião do período paradigmático, pode-se definir o próprio trabalho por referência a um âmbito disciplinar preciso: os pesquisadores se definem como fazendo física, biologia, química, matemática etc. Sentem-se menos inclinados a responder a demandas de conhecimentos vindas da vida externa à disciplina. É durante esse período que a disciplina define as suas questões, de maneira puramente interna; examinaremos adiante o vínculo entre essa atitude e os conceitos populares de “ciências puras” ou “ciências fundamentais”. Pode-se notar, contudo, desde já, que os períodos paradigmáticos possuem um papel importante em relação ao poder social: quando as disciplinas se impuseram (Latour  , 1984), enrijeceram os seus conceitos (Stengers, 1987), obnubilaram as suas origens sociais, e os pesquisadores passaram a usufruir   de uma relativa independência diante do contexto social dentro do qual evoluem.


Ver online : A Construção das Ciências


GIARD. Briser la clôture. In: Esprit, juin 1974. p.967-84

HACKING, I. Science Turned Upside Down. In: The New York Reviewof Books. New York, XXXIII, 3, 1986, p.21-6.

JACOB, F. La logique du vivant. Paris: Gallimard, 1970.

KUHN, Th. The Structure of Scientific Révolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1970.

LATOUR, B.. Les Microbes - Guerre et Paix seguido de Irréduction. Paris: Metaillé et Pandore, 1984.

LEVY-LEBLOND, J. M. L’esprit de sel: science, culture, politique. Paris: Fayard, 1981.

STENGERS, I. Comment parler de la science dans la société. In: Cahiers de sociologie et d’économie régionales. Bruxelas: Ed. UIB, novembre 1981, p. 151-60.

STENGERS, I. D’une science à l’autre, des concepts nomades. Paris: Seuil, 1987.


[1Masterman, in Lakatos & Murgrave (1970), de maneira epistemológica, e Salomon (1970), de maneira histórica, mostram as dificuldades encontradas ao se querer utilizar o conceito de revolução científica de maneira precisa. Ver também a excelente análise de Hacking (1986).