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Quem tem medo da ciência?

Stengers (QTMC:101-105) – noção de precursor em ciências

Ciências e poderes

segunda-feira 8 de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

      

STENGERS  , Isabelle. Quem tem medo da ciência? Ciências e poderes. Tr. Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Siciliano, 1990, p. 101-105

      

A noção de precursor em ciências é bem curiosa. Se, em história da arte se diz que Van Gogh não interessou a ninguém durante sua vida, isso não diminuirá em nada o valor   de Van Gogh, ao contrário, aumentará mesmo o poder dramático da evocação de Van Gogh. Em contrapartida, se um historiador das ideias descobre que, cinquenta anos antes que uma noção científica seja reconhecida, alguém a havia proposto e que ela não tinha interessado a ninguém, isso causará pouco interesse   entre os cientistas, e a rigor  , até mesmo um pouco de piedade  : “coitado”, é verdade que com os meios que ele tinha, o que ele dizia não era muito convincente. . . ”, etc. Para que um trabalho   científico tenha valor, é preciso que ele faça a diferença  , que ele interesse aqui e agora. O precursor é aquele que não pode [101] fazer a diferença, criar uma diferença para os outros, fazer que a história passe por ele.

Eu, cientista individual, proponho um fato, um tipo de raciocínio que me permite interpretar tal tipo de observação, tal uso de um instrumento. O que eu proponho não é nada mais que uma ficção. A passagem da ficção para a realidade, no sentido científico do termo, depende dos outros, depende de os outros se deixarem ou não interessar, aceitarem ou não levar em conta minha proposição em seu trabalho, aceitarem que minha proposição tem sentido para eles, muda alguma coisa para eles. Nada pior   do que o silêncio. Enquanto só o silêncio me responde, minha ficção continua a ser ficção. É melhor para um cientista ter interessado e ter sido “refutado” — sua interpretação não é coerente, seu “fato” era um artefato. Ao menos a ficção foi considerada como um possível válido, e sua refutação faz parte da história das ciências. Foi o que Benveniste não conseguiu com sua “memória da água”: ninguém até agora se deu ao trabalho de refutá-lo efetivamente, de mostrar onde ele se enganou. O “ele deve ter se enganado” é o fracasso mais cruel para um cientista.

Deixar-se interessar é, para um cientista, um risco: será que vou deixar tal proposição me situar, isto é, será que vou integrar em minha prática o uso desse instrumento, ou o que esse instrumento permitiu dizer, será que vou integrar em meu trabalho o que o outro propõe? Se a proposição não se sustenta, todo o trabalho que a tiver integrado será anulado. É porque um cientista está interessado, e não porque ele é objetivo, que ele é exigente, que exige fidedignidade das testemunhas, que tenta testá-las, deturpar seus testemunhos. Uma proposição que não interessou não é, estritamente falando, nem verdadeira, nem falsa, ela continuou [102] sendo ficção, não produziu diferença na história dos cientistas. Ela só remete à história das ideias.

A história das ciências é singular naquilo que aqueles que dela participam colocam na própria prática (por pouco que sejam inovadores) a questão da história, lutam para que “sua” ficção se torne realidade, isto é, que a história da ciência deles passe por eles. As ciências são talvez, contrariamente ao que tantos filósofos pensam, o mais intensamente histórico dos empreendimentos humanos, pois é um empreendimento cuja história é a principal questão. Eu disse que a questão “isso é científico?” é a questão das ciências modernas. Para tal questão não existe nenhuma resposta   que transcenda a história, nenhuma referência a partir da qual as controvérsias encontrariam de direito sua solução. A resposta à questão “isso é científico?”, isto é, será que posso me deixar interessar, levar em conta, operar a partir de, define o trabalho dos cientistas, a aposta que eles fazem sobre a história, os riscos que eles correm aqui e agora. As mais das vezes um cientista sabe muito bem que o que ele propõe vai estar ultrapassado dentro de dez   anos. Isso não tem muita importância. Ele não procura a verdade no sentido dos filósofos. A verdade que ele procura é definida pelo propósito da história: que sua proposição una os outros cientistas e crie uma história. Os cientistas modernos trabalham juntos na medida em que o trabalho de cada um não tem outro valor além do de ter conseguido interessar a outros.

Os interesses são amorais; é sem dúvida por isso que os filósofos não gostam deles. O próprio dos interesses é poder constituir redes disparatadas. Se eu digo: “isso é verdade”, exijo por parte daqueles que consideram a coisa verdadeira, que eles a vejam como eu. Exijo uma homogeneidade, uma convergência de olhares. Se consigo interessar a alguém com minha [103] proposição, não peço que ele se interesse por ela como eu me interesso, peço simplesmente que ele se interesse por ela. Se eu for uma física e utilizar um instrumento que me dê informações que considero fidedignas, ficaria bem satisfeita se um médico ou um biólogo dissesse: “mas se pudermos ter esse tipo de informação, isso pode me servir”. Eu ficaria satisfeita mesmo que não compreendesse nada de biologia ou de medicina  . Não peço que todos aqueles que se interessam por minha proposição tornem-se físicos. O que sei é que o interesse dos biólogos   ou dos médicos fortaleceu minha proposição. Meus colegas físicos serão eventualmente obrigados a levá-la em conta. Indústrias construirão eventualmente meu instrumento em série. Meu “fato” estará então em todos os laboratórios.

O cientista que quer ser inovador, que quer criar história, deve ser um estrategista dos interesses. Ele deve criar vínculos, encontrar aliados, criar relações de força favoráveis. Ele deve certamente aceitar   certas imposições: Lyssenko é o exemplo daquilo que é preciso evitar, aquele que jogou de maneira direta o poder do Estado   soviético contra seus colegas. Se um biólogo, porém, consegue fazer com que, por exemplo, se aceite um vínculo entre sua pesquisa e o problema da Aids, ele terá mais crédito financeiro, mais prestígio e terá feito seu trabalho de cientista: se suas pesquisas não contribuírem para a resolução do problema, ninguém o censurará.

As ciências não são nem empreendimentos puros, inocentes, vítimas dos poderes que desviam o sentido das pesquisas, nem os cúmplices servis dos poderes. O cientista procura interessar àqueles que o ajudarão a fazer a diferença, a criar história, e nenhum limite intrínseco define aqueles a quem ele não deve procurar interessar. Eventualmente certas preocupações políticas [104] ou morais impedirão um   físico de dizer aos militantes: “nós poderíamos conceber um novo tipo de arma   a partir de minha proposição”. Eventualmente, mas não seria na qualidade   de cientista que ele se recusaria a isso. Enquanto cientista seu trabalho é de interessar, e interessar a todos aqueles que podem ajudá-lo a criar uma história que passe por ele. Tal cientista, porém, poderá também, e com a consciência limpa, enganar os militares, conseguir interessá-los por aquilo que ele sabe que não passa de uma ficção. Isso também faz parte da profissão. As ciências não traduzem de maneira servil os interesses daqueles de quem dependem, e sim reinventam o sentido para seu proveito. Em contrapartida, há uma coisa que elas traduzem fielmente: as relações de forças sociais que determina aqueles a quem é interessante interessar, aqueles que podem ajudar a fazer a diferença.