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Philosophie des sciences

A comunidade de argumentação de Karl-Otto Apel et al.

terça-feira 2 de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

      

Excertos de Daniel Andler, Anne Fagot-Largeault, Bertrand Saint-Sernin, «Philosophie des sciences»

      

Karl-Otto Apel   se apresenta como um antipopperiano neokantiano (um Kant   revisto e corrigido por Peirce  : a obra de 1973 contém um artigo "Von Kant zu Peirce", que visa estender a teoria   do sensus communis   de Kant para um estudo das condições de validação dos argumentos em um grupo de pessoas que trocam argumentos). Tendo partido de Heidegger  , passado   pela filosofia analítica austro-anglófona, e posteriormente retornado, por meio do pragmatismo de Peirce, para uma filosofia transcendental instruída pela "virada hermenêutica e linguística", Apel acredita que é possível "fundar" a validade intersubjetiva dos conhecimentos elaborados por uma "comunidade de argumentação".

No que se segue, as passagens citadas são extraídas principalmente dos artigos "L’a priori   de la communauté communicationnelle" (1967; tradução francesa de 1987) e "Le logos   propre au langage humain" (tradução francesa de 1994); a linha diretriz é a do argumento   desenvolvido por Apel no artigo traduzido, em 1981, em Critique: "La question d’une fondation ultime de la raison". Esse argumento tem a forma de uma refutação pelo absurdo: os popperianos afirmam a tese não-F [a razão não poderia ser "fundada"], essa tese voltada contra si mesma se autodestrói, logo F. O argumento se desdobra em quatro tempos: o inimigo   da tese F é designado, combatido com suas próprias armas  , morto, de modo que F triunfa - a razão pode ser "fundada". O procedimento é "transcendental" no sentido em que remonta aos "pressupostos" ou "condições de possibilidade" da racionalidade: "A objetividade da ciência objetivamente neutra pressupõe a validade intersubjetiva das normas morais" (tradução francesa, 1987, § 2.3., p. 88).

O inimigo designado é o falibilismo, que conduz ao ceticismo. Através de H. Albert (1968, Traktat über Kritische Vernunft  ), Apel visa Popper   (1934) e seus êmulos "hipercriticistas". Os adeptos de uma "crítica ilimitada" argumentam deste modo. Quem quer que busque um fundamento último da razão é acuado a um trilema (dito de Münchhausen ou de Fries): deve escolher entre a regressão ao infinito   (fundar o fundamento), o círculo vicioso (fundar B em A, utilizando sub-repticiamente B para estabelecer A) e a suspensão do processo de fundação sobre um princípio infundado - na ordem   epistemológica: a evidência; na ordem ontológica: uma causa   primeira que é causa sui -; mas admitir uma evidência última é uma demissão intelectual, proveniente de uma necessidade   de certeza   que faz com que uma convicção se transforme em dogma   e com que se renuncie a toda crítica ulterior - onde se vê que querer estar certo (fechar) é justamente o inverso de buscar a verdade (permanecer aberto). É preciso recusar o trilema, afirma Albert, ou seja, abandonar a ideia de um fundamento último, e optar - é uma livre escolha   - pelo falibilismo, isto é, a doutrina segundo a qual nenhuma teoria ou tese está definitivamente ao abrigo da dúvida, o que conduz no plano metodológico ao criticismo, com suas duas dimensões: científica - nenhum paradigma   científico é intocável - e social - ninguém tem inteiramente ou definitivamente razão, todos têm o direito de contestar: recusa dos "dogmas".

Apel aceita o desafio lançado pelos criticistas. Propõem-nos, diz ele, à guisa de racionalismo, um permanente pôr à prova, e cada um estará livre para criticar tudo sob a condição de admitir que os outros o critiquem? De acordo: jogarei o jogo  , vou submeter a tese hipercrítica a um exame   crítico -voltando o racionalismo crítico contra ele próprio, vou esclarecer seus pressupostos.

"É notável que a escola popperiana, após ter acabado de decidir, no sentido do trilema de Fries, pela impossibilidade de uma fundação filosófica última, e de substituir   essa exigência pela de um exame   crítico virtualmente universal  , tenha caído em uma forma inédita da problemática da fundação, que ela não havia manifestamente previsto: ela se viu confrontada à questão das condições de possibilidade e de validade do exame crítico." (Apel, tradução francesa, 1987, § 2.3.3., p. 106)

A reconstrução crítica da posição pancrítica se apoia sobre a distinção entre três sentidos de "verdade" ou, para dizer melhor, entre três espécies de "critérios" do verdadeiro. Quando os popperianos apresentam o problema do fundamento sob a forma do trilema, pressupõem (é um pressuposto comum a toda a tradição racionalista) que nossos conhecimentos devem formar um sistema coerente, bem fundado sobre noções primeiras claras e primeiros princípios, dos quais se deduzem, por meio de regras de inferência seguras, proposições derivadas que tiram sua verdade de seu laço com aquilo que as funda. A primeira vista, eles têm, portanto, como método de validação, a argumentação dedutiva, isto é, eles adotam um critério sintático do verdadeiro: é verdadeiro o que é corretamente derivado dos princípios se forem seguidas as regras da lógica.

Depois eles percebem que, em um tal sistema, buscar um fundamento absoluto é uma tarefa desesperada: ou bem remonta-se ao infinito ou bem gira-se em círculos - dois   primeiros ramos do trilema. Mudam então de método de validação! Admitem que há enunciados verdadeiros por si próprios, que interrompem a regressão ao infinito e evitam que o pesquisador fique girando em círculos. De um critério sintático, eles passaram para um critério semântico do verdadeiro: é verdadeiro o enunciado que diz o que é. E a noção mais comum da verdade. A evidência de que isso é se impõe a uma consciência, quer se trate de consciência intelectual como em Descartes  , de consciência empírica como nos positivistas — "enunciados protocolares" - ou no Popper realista, ou de consciência fenomenológica em Husserl  . O hipercriticista Albert recusa esse subterfúgio - terceiro ramo do trilema -; ele conclui que nem pela via sintática nem pela via semântica se atinge verdade irrecusável e que, uma vez que não há outra via, não se sai da posição crítica.

Apel afirma que há uma outra via. Esqueceu-se o critério pragmático do verdadeiro - Albert o mencionou, mas nada fez com ele. O que é suscetível de ser verdadeiro? Uma proposição (asserção) enunciada em uma linguagem. Uma linguagem é um sistema de signos. Peirce realçou a natureza tridimensional do signo   (sintaxe, semântica, pragmática). Isso deve fazer com que se reflita sobre a tridimensionalidade do verdadeiro: 1) O que você diz é verdadeiro se sua sintaxe lógica estiver correta: critério interno à linguagem - há regras do jogo de linguagem, você deve jogar de acordo com as regras -; o jogo pode ser jogado por uma máquina; 2) O que você diz é verdadeiro se suas proposições de base corresponderem à realidade: trata-se então da função referencial da linguagem. Para julgar sobre a correspondência, é preciso pressupor uma consciência, dito de outra maneira, um sujeito  ; 3) Esse sujeito, para quem ele argumenta? Não se argumenta sozinho; o empreendimento polemista da validação remete a uma prática intersubjetiva de argumentação - e eis que se pressupõe uma comunidade de sujeitos.

"Até mesmo o pensador que, de fato, é solitário, apenas pode explicitar e submeter sua argumentação ao exame à medida que for capaz de interiorizar a discussão de uma comunidade potencial de argumentação no "diálogo   crítico da alma   consigo mesma" (Platão). Mostra-se assim que a validade do pensamento solitário é, por princípio, dependente da justificação dos enunciados linguísticos na comunidade efetiva de argumentação." (Apel, tradução francesa, 1987, § 2.3.2., p. 93)

Os sujeitos em ato estão mergulhados em uma comunidade em que se trocam signos, eles aprendem dessa comunidade as regras da emissão dos signos, sua função referencial (sua interpretação), e, para que o jogo funcione, é preciso que cada um se curve às regras da troca e presuma que os outros jogam segundo a mesma regra que ele. Você está à procura de um "fundamento"? Não se deve buscá-lo do lado dos resultados da troca, mas do lado de suas condições de possibilidade. Você quer que cada um critique, discuta, argumente, conteste tal ou tal "evidência": mas qual é o a priori que subtende a contestação? Não há crítica sem comunicação. Sob que condição há comunicação? Essa é a questão.

"Aquele que tenta uma reconstrução não arbitrária da Razão (prática e teórica) [...] tem todas as razões de começar com a reflexão transcendental sobre o "factum   da Razão" que deve "sempre já", no sentido de um "perfeito a priori", estar pressuposto pela pertença à comunidade de linguagem." (Apel, tradução francesa, 1987, § 2.3.4., pp. 122-3)

O criticismo radical destrói a si próprio. "A parte performativa da enunciação contradiz a parte propositiva" (Apel, 1981, p. 923). A ideia diretriz do falibilismo foi enunciada, antes de Popper, por Charles Sanders Peirce, e antes ainda e de melhor maneira por Claude Bernard: "E preciso duvidar, mas não ser   cético". É preciso duvidar de tudo: é essencial nas ciências experimentais, que só progridem sob a condição de que não se considere nenhuma teoria ou hipótese como inatacável. Mas não se pode duvidar de tudo, os filósofos sabem disso há muito tempo, sem escorregar na circularidade cética. Ludwig Wittgenstein   o notou - "o jogo da dúvida pressupõe a certeza" -, Jaakko Hintikka o repete - "ali onde há dúvida o sujeito da dúvida não é eliminável" -, Karl-Otto Apel o diz com uma imagem: "O diabo   só pode se tornar independente de Deus   por meio de um ato de destruição" (1967, tradução francesa, 1987, fim do § 2.3.3., p. 112). O hipercrítico Albert não escapa dessa sorte: desenvolve toda uma argumentação para provar que se pode e se deve duvidar de tudo e, "ao argumentar, ele contradiz em ato o que afirma ser teoricamente impossível". Criticar, argumentar é pressupor em ato que a comunidade de argumentação é instituída e funciona:

"[...] a comunidade dos sujeitos argumentadores não é idêntica à comunidade dos especialistas, embora esta a pressuponha. No a priori da argumentação reside a pretensão de justificar não apenas todas as "asserções" da ciência mas, além disso, todas as pretensões humanas - inclusive as pretensões implícitas dos homens em relação a outros homens que estão contidas nas ações e instituições. Aquele que argumenta reconhece implicitamente todas aquelas pretensões possíveis de todos os membros da comunidade de comunicação que podem ser justificadas por meio de argumentos razoáveis - na falta disso, a pretensão da argumentação se limitaria tematicamente a ela própria -, e compromete-se a justificar por meio de argumentos todas as suas pretensões em relação aos outros." (Apel, tradução francesa, 1987, § 2.3.5., pp. 124-5)

Em conclusão, há um fundamento último da racionalidade. Ele não é de princípio; é pragmático-transcendental. Ele deve ser buscado nas condições de possibilidade da validade intersubjetiva da argumentação científica ou filosófica.

"[...] Por intermédio de frases explicitamente performativas e auto-referenciais, três pretensões à validade do discurso humano, necessárias e universais  , podem ser formuladas: 1. a pretensão à verdade intersubjetivamente válida das proposições;

2. a pretensão à exatidão normativa intersubjetivamente válida - por exemplo, ao caráter justificável ou legitimável - dos atos de linguagem como atos de comunicação social;

3. a pretensão à veracidade ou à sinceridade das expressões de intenções subjetivas, apelando para um reconhecimento interpessoal.

Essas três pretensões à validade do discurso (Jogos) são necessárias e ninguém pode se subtrair a elas; não se pode de fato contestá-las sem cair em uma autocontradição pragmática. É a razão pela qual não me contentei em nomeá-las (como Habermas  ) pragmático-universais, mas pragmático-transcendentais." (Apel, tradução francesa, 1994, p. 49)

Qual é o a priori que torna possível uma crítica virtualmente universal, isto é, a liberdade do pensamento? A liberdade não é o arbitrário total. O "meio vital" da argumentação é uma comunidade de comunicação.

Essa comunidade é a um só tempo de fato e ideal. Ela é de fato: estou imerso em uma comunidade linguística onde fui iniciado no jogo, e só posso contestar livremente dentro desse meio. Ela é de direito: tomar a palavra é pressupor esse contrato originário que torna possível a comunicação. A escolha da racionalidade não pode ser compreendida como irracional ou arbitrária, pois é a escolha do sentido. A escolha de ser irracional (de não argumentar) é uma escolha autodestrutiva:

"[...] aquele que argumenta sempre já pressupõe duas coisas ao mesmo tempo: primeiramente, uma comunidade de comunicação real da qual ele próprio tornou-se membro por um processo de socialização e, em segundo lugar, uma comunidade de comunicação ideal que seria, em princípio, capaz de compreender adequadamente o sentido de seus argumentos e de julgar definitivamente sobre a verdade destes. Mas o aspecto notável e dialético da situação reside no fato de que ele pressupõe de certa maneira a comunidade ideal dentro da comunidade real, isto é, enquanto possibilidade real da sociedade real, ao mesmo tempo que sabe que, na maioria dos casos, a comunidade real, onde ele próprio se inclui, ainda está bem longe de assemelhar-se à comunidade ideal de comunicação. Porém, por causa de sua estrutura   transcendental, a argumentação não tem outra escolha senão enfrentar essa situação ao mesmo tempo desesperada e cheia de esperança." (Apel, tradução francesa, 1987, § 2.3.5., p. 130-1)

Essa posição é kantiana, já que não dá um conteúdo à ética, mas uma forma - a coerência racional. O que devo fazer? jogar o jogo. O que é verdadeiro? o que resiste à discussão crítica, uma vez que se joga o jogo. Notar-se-á que, á medida que o critério pragmático do verdadeiro não toca no conteúdo das proposições enunciadas e que os consensos podem flutuar ao longo das discussões ou das mudanças de locutor, o que "funda" a racionalidade não garante de qualquer maneira a estabilidade do verdadeiro: é um dos traços "desesperadores" da situação. A esperança está ligada à força do argumento proposto, que se impõe absolutamente a todo locutor.

"A pertinência de uma fundação filosófica última da razão reside então em um argumento reflexivo: não se pode decidir, ao nível do discurso e da prática, nem a favor nem contra as regras do jogo de linguagem transcendental sem já ter pressuposto essas regras." (Apel, tradução francesa, 1981, p. 928)

Uma dificuldade   residual está ligada às imperfeições constatadas da "comunidade real". Se for provavelmente verdade que ninguém pode duravelmente excluir-se da comunidade de comunicação fazendo a escolha (não vivível) da irracionalidade, é fato que alguns membros da comunidade não hesitam em autorizar-se, de tempos em tempos, uma pequena "autocontradição pragmática" - torcer as regras do jogo. E preciso, portanto, abordar a questão da defasagem entre comunidade "ideal" e comunidade "real".