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Contra o Método
Feyerabend (CM:455-459) – o conto de fadas cientificista
sexta-feira 29 de outubro de 2021, por
Feyerabend , Paul. Contra o Método. Tr. de Octanny S. da Mata Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 455-459
Estado e ciência, entretanto, atuam em estreita ligação. Somas imensas são gastas no desenvolvimento de ideias científicas. Disciplinas espúrias, como a filosofia da ciência, que não têm a seu crédito qualquer descoberta, beneficiam-se do crescimento explosivo das ciências. Até as relações humanas são tratadas de maneira científica, tal como evidenciam os projetos [455] de educação, as propostas de reforma penitenciária e assim por diante. Quase todos os assuntos científicos são matérias obrigatórias em nossas escolas. Se os pais de uma criança de seis anos podem decidir se ela receberá rudimentos de protestantismo ou de judaísmo ou se não terá instrução religiosa alguma, não gozam esses pais da mesma liberdade no que respeita à ciência. Física, Astronomia , História devem ser estudadas. Não podem ser substituídas por mágica, astrologia ou por um estudo das lendas.
E nem basta uma apresentação apenas histórica dos fatos e princípios físicos (astronômicos, históricos, etc.). Não se diz algumas pessoas acreditam que a Terra se move em torno do Sol, enquanto outras consideram que a Terra é uma esfera oca, onde se contêm o Sol , os planetas, as estrelas fixas. Diz-se: a Terra gira em torno do Sol — e tudo o mais é pura idiotia.
A maneira como aceitamos ou rejeitamos ideias científicas é, por fim, radicalmente diversa dos processos de decisão democrática. Aceitamos leis científicas e fatos científicos, ensinamo-los nas escolas, tornamo-los a base de importantes decisões políticas, sem, contudo, havê-los submetido a votação. Os cientistas não os submetem a votação — ou, pelo menos, assim dizem proceder — e os leigos por certo que não os submetem a voto. Propostas concretas são, por vezes, objeto de debate e sugere-se votação. Todavia, o processo não se aplica a teorias gerais e a fatos científicos. A sociedade moderna é ‘copernicana’, mas não porque a doutrina de Copérnico haja sido posta em causa , submetida a um debate democrático e então aprovada por maioria simples; é ‘copernicana’ porque os cientistas são copernicanos e porque lhes aceitamos a cosmologia tão acriticamente quanto, no passado , se aceitou a cosmologia de bispos e cardeais.
Até mesmo pensadores audazes e revolucionários se curvam ao juízo da ciência. Kropotkin deseja destruir todas as instituições existentes — ma não toca na ciência. Ibsen aprofunda-se no desmascarar as condições da humanidade contemporânea — [456] mas - conserva a ciência, em que vê medida da verdade. Evans-Pritchard, Lévi-Strauss e outros reconheceram que o ‘Pensamento Ocidental’, longe de ser um pico isolado no desenvolvimento da humanidade, é perturbado por problemas que não estão presentes em outras ideologias — mas excluem a ciência da relativização das formas de pensamento. Para eles, a ciência é uma estrutura neutra, encerrando conhecimento positivo, que é independente de cultura, ideologia ou preconceito.
A razão desse tratamento especial está, sem dúvida, em nosso pequeno conto de fadas: se a ciência encontrou método que transforma concepções ideologicamente contaminadas em teorias verdadeiras e úteis, a ciência não é mera ideologia, porém medida objetiva de todas as ideologias. Não cabe, portanto, a exigência de separação entre Estado e ideologia.
Contudo, o conto de fadas é, como vimos, falso. Não há método especial que assegure o êxito ou o torne provável. Os cientistas não resolvem os problemas por possuírem uma varinha de condão — a metodologia ou uma teoria da racionalidade — mas porque estudaram o problema por longo tempo e conhecem bem a situação, porque não são tolos (embora caiba duvidar disso hoje em dia, quando quase qualquer pessoa pode tomar-se um cientista) e porque os excessos de uma escola científica são quase sempre contrabalançados pelos excessos de alguma outra escola. (Além disso, os cientistas só muito raramente resolvem os problemas, cometem erros numerosos e oferecem, frequentemente, soluções impraticáveis.) No fundo, pouquíssima diferença há entre o processo que leva ao anúncio de uma nova lei científica e o processo de promulgação de uma nova lei jurídica: informa-se a todos os cidadãos ou aos imediatamente envolvidos, faz-se a coleta de ‘fatos’ e preconceitos, discute-se o assunto e, finalmente, vota-se. Sem embargo, enquanto uma democracia faz algum esforço para esclarecer o processo, de sorte que todos o entendam, a ciência ou o esconde ou o distorce, para que ele se Amolde a seus sectários interesses. [457]
Nenhum cientista admitirá que votar tenha sentido na matéria a que se dedica. Só os fatos, a lógica e a metodologia decidem — é o que nos diz o conto de fadas. Mas como decidem os fatos? Que função desempenham no avanço do conhecimento? Não podemos fazer nossas teorias deles derivarem. Não podemos apresentar um critério negativo, dizendo, por exemplo, que as boas teorias são as teorias passíveis de refutação, mas não contraditadas pelos fatos. Um princípio de falseamento que afasta as teorias porque não se acomodam aos fatos teria de afastar a totalidade da ciência (ou teria de admitir que grandes porções da ciência são irrefutáveis). A sugestão de que uma boa teoria explica mais que suas oponentes também não é admissível. Certo: novas teorias predizem, com frequência, coisas novas — mas quase sempre a expensas de coisas já conhecidas. Voltando-nos para a lógica, damo-nos conta de que nem mesmo seus mais simples requisitos são satisfeitos pela prática científica e não poderiam ser satisfeitos, em razão da complexidade do material. As ideias de que os cientistas costumam valer-se para apresentar o conhecido e avançar rumo ao desconhecido raramente estão em estrita concordância com as injunções da lógica ou da matemática pura e a tentativa que se fizesse para levá-las a essa concordância roubaria da ciência a flexibilidade sem a qual é impossível alcançar progresso. Anotemos: só os fatos não bastam para levar-nos a aceitar ou rejeitar teorias científicas, pois a margem que deixam ao pensamento é demasiado ampla; a lógica e a metodologia eliminam demais, são demasiado acanhadas. Entre esses extremos situa-se o sempre cambiante domínio das ideias e dos desejos humanos. Mais pormenorizada análise dos lances de êxito no jogo da ciência (‘de êxito’ do ponto de vista dos próprios cientistas) mostra, indubitavelmente que há uma larga faixa de liberdade a pedir multiplicidade de ideias e a permitir a aplicação de processos democráticos (apresentação-discussão-voto), mas que está obstruída pela política e pela propaganda do poder. Esse o ponto em que o conto de fadas [458] do método especial assume sua função decisiva. Oculta a liberdade de decisão que os cientistas criadores e o público em geral têm, mesmo no que se refere às mais sólidas e avançadas partes da ciência, antepondo-lhes a repetição dos critérios ‘objetivos’ e assim protegendo os grandes nomes (os Prêmio Nobel; os chefes de laboratórios de organizações como a Associação Médica Americana, de escolas especiais; os ‘educadores’, etc.) contra as massas (os leigos; os especialistas em campos não-científicos; os especialistas em outros ramos da ciência): só importam os cidadãos que foram expostos às pressões das instituições científicas (sofreram longo processo de educação), que sucumbiram a essas pressões (foram aprovados no exame ) e que estão, agora, firmemente convencidos da verdade do conto de fadas. Dessa maneira os cientistas se iludiram a si próprios e aos demais com respeito à tarefa a que se dedicam, sem, contudo, virem a sofrer qualquer real desvantagem: dispõem de mais dinheiro , mais autoridade e exercem maior atração do que merecem — e os mais estúpidos processos e mais risíveis resultados que alcançam em sua esfera de atuação vêm rodeados de uma aura de excelência. É tempo de reduzi-los às devidas proporções e de atribuir-lhes mais modesta posição na sociedade.
Essa advertência, que apenas alguns dos contemporâneos mais bem preparados têm condições de aceitar, parece entrar em conflito com certos fatos simples e amplamente conhecidos.
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