Ainda hoje, a ciência pode tirar e tira vantagem da consideração de elementos não-científicos. Exemplo examinado acima, no capítulo IV, é a revivescência da medicina tradicional na China comunista. Quando os comunistas, na década de 1950, forçaram os hospitais e escolas de medicina a transmitir as ideias e métodos registrados no Manual de Medicina interna do imperador Amarelo e a aplicá-las no tratamento dos pacientes, muitos especialistas ocidentais (entre eles, Eccles, um dos ‘Cavaleiros de Popper ’) se horrorizaram e predisseram a derrocada da medicina chinesa. Ocorreu exatamente o oposto. A acupuntura , a moxa, o diagnóstico pelo pulso conduziram a novas percepções, novos métodos de tratamento e colocaram novos problemas, tanto para o médico ocidental quanto para o chinês. E os que não apreciam ver o Estado imiscuir-se em questões científicas devem lembrar-se do acentuado chauvinismo da ciência: para a maioria dos dentistas, a frase ‘liberdade para a ciência’ significa liberdade para doutrinar não apenas os que resolveram acompanhá-los, mas também resto da sociedade. [461] Claro está que nem toda combinação de elementos científicos e não científicos alcança êxito (exemplo: Lysenko). Todavia, também a ciência nem sempre é bem sucedida. Se importa evitar as misturas porque às vezes falham, também a ciência pura (se é que ela existe) há de ser evitada. (No caso Lysenko, o condenável não é a interferência do Estado, mas a interferência totalitária, que destrói o oponente em vez de permitir-lhe seguir o próprio caminho .)
Combinando essa observação com a percepção de que a ciência não dispõe de método especial, chegamos à conclusão de que a separação entre ciência e não-ciência não é apenas artificial, mas perniciosa para o avanço do saber. Se desejamos compreender a natureza, se desejamos dominar a circunstância física, devemos recorrer a todas as ideias, todos os métodos e não apenas a reduzido número deles. Assim, a asserção de que não há conhecimento fora da ciência — extra scientiam nulla salus — nada mais é que outro e convenien-tíssimo conto de fadas. As tribos primitivas faziam classificações de animais e plantas mais minuciosas que as da zoologia e da botânica de nosso tempo; conheciam remédios cuja eficácia espanta os médicos (e a indústria farmacêutica já aqui fareja uma nova fonte de lucros); dispunham de meios de influir sobre os membros do grupo que a ciência por longo tempo considerou inexistentes (vodu); resolviam difíceis problemas por meios ainda não perfeitamente entendidos (construção de pirâmides, viagem dos polinésios). Havia, na Idade da Pedra , uma astronomia altamente desenvolvida e internacionalmente conhecida, astronomia que era factualmente adequada e emocionalmente satisfatória, dando solução a problemas tanto sociais quanto físicos (o mesmo não se pode dizer a respeito da astronomia moderna) e que foi submetida a testes por meios muito simples e engenhosos (observatórios de pedra na Inglaterra e no Pacifico Sul ; escolas astronômicas na Polinésia). (Para tratamento mais aprofundado e referências mais precisas, no que toca a todas essas afirmativas, cf. meu Einfuhrung in die Naturphilosophie .) [462] Houve a domesticação de animais, a criação da agricultura rotativa, novos tipos de plantas foram desenvolvidas e conservados puros graças a evitar-se cuidadosamente a fertilização cruzada, surgiram invenções químicas, ‘desenvolveu-se uma arte surpreendente, suscetível de ser comparada às melhores manifestações da arte contemporânea. Por certo que não houve excursões coletivas à Lua , mas indivíduos isolados, desprezando grandes perigos que lhes ameaçavam a alma e a sanidade mental elevaram-se de esfera a esfera e finalmente encararam Deus em todo Seu esplendor, enquanto outros homens se transformavam em animais para depois readquirir figura humana (capítulo XVI, notas 20 e 21). Em todos os tempos, o homem enfrentou a circunstância de olhos abertos, com inteligência viva; em todos os tempos, realizou descobertas incríveis; em todos os tempos, há ensinamento a colher em suas ideias.