Vale a pena examinar, com maior minúcia, essa defesa, aparentemente ‘empírica’, de um ponto de vista dogmático. Admitamos que os físicos hajam acolhido, consciente ou inconscientemente, a ideia da singularidade da complementaridade e que se recusem a examinar alternativas. De início, é possível que esse procedimento se mostre inofensivo. Afinal de contas, um homem e mesmo uma escola influente só podem fazer umas [53] tantas coisas de cada vez e é melhor que explorem uma teoria considerada interessante do que uma teoria julgada sem atrativos. Admitamos, ainda, que a exploração da teoria escolhida tenha levado a êxitos e que a teoria haja esclarecido, de maneira satisfatória, circunstâncias que, há longo tempo , se mostravam ininteligíveis. Isso empresta apoio empírico a uma ideia que inicialmente só parecia possuir uma vantagem : era interessante e provocadora. A adesão à teoria ver-se-á reforçada e a atitude frente a alternativas será de menor tolerância. Ora, se é verdade — tal como se sustentou no capítulo anterior — que muitos fatos só se manifestam à luz de teorias alternativas, recusar-se a examinar essas alternativas resultará em afastar, ao mesmo tempo, fatos potencialmente refutadores. Mais particularmente: resultará em afastar fatos cuja descoberta patentearia a completa e irreparável inadequação da teoria [1]. Tornados inacessíveis esses fatos, a teoria estará aparentemente livre de imperfeição e se afigurará que “toda evidência aponta, com determinação categórica, no... sentido... de que todos os processos que envolvem... interações desconhecidas se conformam à lei quântica fundamental” [2]. Isso reforçará ainda mais a crença no caráter único da teoria aceita e na futilidade de explicação que procure caminho diverso. Firmemente convencido de que há uma única microfísica adequada, o físico tentará valer-se dos termos dessa teoria para explicar fatos a ela antagônicos e não dará grande atenção à circunstância de essas explicações se mostrarem, ocasionalmente, um tanto impróprias. Logo a seguir, os desenvolvimentos havidos passam a ser de conhecimento geral. Livros científicos de cunho popular (e isso inclui muitos livros a propósito de filosofia da ciência) divulgam amplamente os postulados básicos da teoria; ocorrem aplicações em campos remotos, auxílio financeiro é dado ao ortodoxo e negado aos rebeldes. Mais do que nunca, a teoria parece possuir largo fundamento empírico. A possibilidade de considerar alternativas torna-se reduzidíssima. Parece assegurado o êxito final dos [54] pressupostos básicos da teoria quântica e da ideia de complementaridade.
Com base em nossas considerações, também se torna evidente que o êxito aparente não pode ser visto como sinal de verdade e de correspondência com o natureza. Muito ao contrário, surge a suspeita de que a ausência de dificuldades maiores se deva a uma redução do conteúdo empírico, provocada pela simples eliminação de alternativas e dos fatos passíveis de se verem descobertos com o auxílio de tais alternativas. Em outras palavras, surge a suspeita de que o pretenso êxito se deva à circunstância de que a teoria, ficando projetada para além de seu ponto de partida, transformou-se em rígida ideologia. Essa ideologia ‘tem êxito’ não porque bem se afeiçoe aos fatos, mas porque não se especificam fatos que pudessem constituir-se em teste e porque alguns desses fatos são afastados. O êxito é inteiramente artificial. Tomou-se a decisão de, haja o que houver, aderir a algumas ideias e o resultado foi, muito naturalmente, o de essas ideias sobreviverem. Se, por exemplo, a decisão for esquecida ou adotada apenas implicitamente, se ela se tornar lei comum em Física, ocorrerá que a própria sobrevivência parecerá erigir-se em apoio independente que reforçará a decisão e lhe emprestará caráter explícito — fechando, dessa maneira, o círculo . É assim que a ‘evidência’ empírica pode ser criada através de um procedimento que cita como justificação a própria evidência que produziu.
A essa altura, uma teoria ‘empírica’ do tipo descrito (e lembremos sempre que os princípios básicos da atual teoria quântica e, em particular, a ideia de complementaridade estão desagradavelmente próximos de constituir esse tipo de teoria) torna-se quase indistinguível de um mito de segunda classe. Para nos darmos conta disso, basta lembrar um mito como o da feitiçaria e da possessão demoníaca, desenvolvido por teólogos católico-romanos e que, no continente europeu, dominou o pensamento dos séculos XV, XVI e XVII. Esse mito é um sistema explicativo complexo , que encerra numerosas hipóteses [55] auxiliares, destinadas a abranger casos especiais, de sorte que facilmente alcança alto grau de confirmação baseado em observações. O mito foi ensinado por longo tempo; seu conteúdo recebe o reforço do medo, do preconceito e da ignorância, ao mesmo tempo que de um exercício clerical zeloso e cruel. Suas ideias penetram o idioma comum; infeccionam todas as formas de pensamento e atingem muitas decisões de relevante significação para a vida humana. O mito proporciona modelos para a explicação de qualquer concebível evento — concebível, entenda-se, para os que aceitaram o mito [3]. Assim sendo, seus termos-chave ver-se-ão fixados de maneira clara; e a ideia (que talvez tenha, originalmente, levado a esse procedimento) de que são cópias de entidades isentas de alterações e que a alteração de significado, se ocorrer, se deverá a erro humano — essa ideia passará a apresentar-se como plausível. Essa plausibilidade fala em favor de todas as manobras utilizadas para a preservação do mito (inclusive a eliminação de oponentes). O aparelhamento conceptual da teoria e as emoções ligadas à sua aplicação, insinuando-se em todos os meios de comunicação, em todas as ações e, afinal, em toda a vida da comunidade, passam a garantir o êxito de métodos tais como o da dedução transcendental, da análise de uso, da análise fenomenológica — meios de emprestar maior solidez ao mito (o que mostra, assinalemos de passagem, que todos esses métodos, característicos de escolas filosóficas antigas e modernas, apresentam um traço comum: tendem a preservar o status quo da vida intelectual). Também os resultados de observação falarão em favor da teoria, de vez que formulados com observância de seus termos. E surge a impressão de se haver, finalmente, alcançado a verdade. Torna-se evidente, ao mesmo tempo, que se perdeu todo contato com o mundo e que a estabilidade atingida, a aparência de verdade absoluta, não passa do resultado de um conformismo absoluto [4]. Com efeito, como será possível submeter a teste ou aprimorar a verdade de uma teoria, se ela é elaborada de maneira tal que qualquer acontecimento concebível [56] pode ser descrito e explicado nos termos de seus princípios? A única maneira de estudar esses princípios que a tudo abrangem seria compará-los com um conjunto de outros princípios igualmente abrangentes — mas a possibilidade desse procedimento está, desde o início, afastada. O mito não tem, pois, relevância objetiva; continua a existir apenas como resultado do esforço da comunidade de crentes e de seus orientadores, sejam estes sacerdotes ou vencedores do Prêmio Nobel. Esse é, a meu ver, o mais forte argumento contra qualquer método que estimule a uniformidade, quer seja esse método empírico ou não. Cada método dessa espécie é, em última análise, um método decepcionante. Dá forças a um conformismo sombrio e fala de verdade; leva à deterioração das capacidades intelectuais, do poder de imaginação e fala de introvisão profunda; destrói o mais precioso dom da juventude — o enorme poder de imaginação — e fala em educar .
Resumindo: Unanimidade de opinião pode ser adequada para uma igreja , para as vítimas temerosas ou ambiciosas de algum mito (antigo ou moderno) ou para os fracos e conformados seguidores de algum tirano. A variedade de opiniões é necessária para o conhecimento objetivo. E um método que estimule a variedade é a único método compatível com a concepção humanitarista. (Na medida em que a condição de coerência restringe a variedade, ela encerra um elemento teológico, elemento que se traduz na adoração dos “fatos”, que é um traço característico de quase todo empirismo [5].)