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Contra o Método
Feyerabend (CM:53-57) – científica ou mítica, toda teoria tende a tornar-se fixa num sistema rígido
Capítulo III
sexta-feira 29 de outubro de 2021, por
Feyerabend , Paul. Contra o Método. Tr. de Octanny S. da Mata Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 53-57
Vale a pena examinar, com maior minúcia, essa defesa, aparentemente ‘empírica’, de um ponto de vista dogmático. Admitamos que os físicos hajam acolhido, consciente ou inconscientemente, a ideia da singularidade da complementaridade e que se recusem a examinar alternativas. De início, é possível que esse procedimento se mostre inofensivo. Afinal de contas, um homem e mesmo uma escola influente só podem fazer umas [53] tantas coisas de cada vez e é melhor que explorem uma teoria considerada interessante do que uma teoria julgada sem atrativos. Admitamos, ainda, que a exploração da teoria escolhida tenha levado a êxitos e que a teoria haja esclarecido, de maneira satisfatória, circunstâncias que, há longo tempo, se mostravam ininteligíveis. Isso empresta apoio empírico a uma ideia que inicialmente só parecia possuir uma vantagem : era interessante e provocadora. A adesão à teoria ver-se-á reforçada e a atitude frente a alternativas será de menor tolerância. Ora, se é verdade — tal como se sustentou no capítulo anterior — que muitos fatos só se manifestam à luz de teorias alternativas, recusar-se a examinar essas alternativas resultará em afastar, ao mesmo tempo, fatos potencialmente refutadores. Mais particularmente: resultará em afastar fatos cuja descoberta patentearia a completa e irreparável inadequação da teoria [1]. Tornados inacessíveis esses fatos, a teoria estará aparentemente livre de imperfeição e se afigurará que “toda evidência aponta, com determinação categórica, no... sentido... de que todos os processos que envolvem... interações desconhecidas se conformam à lei quântica fundamental” [2]. Isso reforçará ainda mais a crença no caráter único da teoria aceita e na futilidade de explicação que procure caminho diverso. Firmemente convencido de que há uma única microfísica adequada, o físico tentará valer-se dos termos dessa teoria para explicar fatos a ela antagônicos e não dará grande atenção à circunstância de essas explicações se mostrarem, ocasionalmente, um tanto impróprias. Logo a seguir, os desenvolvimentos havidos passam a ser de conhecimento geral. Livros científicos de cunho popular (e isso inclui muitos livros a propósito de filosofia da ciência) divulgam amplamente os postulados básicos da teoria; ocorrem aplicações em campos remotos, auxílio financeiro é dado ao ortodoxo e negado aos rebeldes. Mais do que nunca, a teoria parece possuir largo fundamento empírico. A possibilidade de considerar alternativas torna-se reduzidíssima. Parece assegurado o êxito final dos [54] pressupostos básicos da teoria quântica e da ideia de complementaridade.
Com base em nossas considerações, também se torna evidente que o êxito aparente não pode ser visto como sinal de verdade e de correspondência com o natureza. Muito ao contrário, surge a suspeita de que a ausência de dificuldades maiores se deva a uma redução do conteúdo empírico, provocada pela simples eliminação de alternativas e dos fatos passíveis de se verem descobertos com o auxílio de tais alternativas. Em outras palavras, surge a suspeita de que o pretenso êxito se deva à circunstância de que a teoria, ficando projetada para além de seu ponto de partida, transformou-se em rígida ideologia. Essa ideologia ‘tem êxito’ não porque bem se afeiçoe aos fatos, mas porque não se especificam fatos que pudessem constituir-se em teste e porque alguns desses fatos são afastados. O êxito é inteiramente artificial. Tomou-se a decisão de, haja o que houver, aderir a algumas ideias e o resultado foi, muito naturalmente, o de essas ideias sobreviverem. Se, por exemplo, a decisão for esquecida ou adotada apenas implicitamente, se ela se tornar lei comum em Física, ocorrerá que a própria sobrevivência parecerá erigir-se em apoio independente que reforçará a decisão e lhe emprestará caráter explícito — fechando, dessa maneira, o círculo. É assim que a ‘evidência’ empírica pode ser criada através de um procedimento que cita como justificação a própria evidência que produziu.
A essa altura, uma teoria ‘empírica’ do tipo descrito (e lembremos sempre que os princípios básicos da atual teoria quântica e, em particular, a ideia de complementaridade estão desagradavelmente próximos de constituir esse tipo de teoria) torna-se quase indistinguível de um mito de segunda classe. Para nos darmos conta disso, basta lembrar um mito como o da feitiçaria e da possessão demoníaca, desenvolvido por teólogos católico-romanos e que, no continente europeu, dominou o pensamento dos séculos XV, XVI e XVII. Esse mito é um sistema explicativo complexo , que encerra numerosas hipóteses [55] auxiliares, destinadas a abranger casos especiais, de sorte que facilmente alcança alto grau de confirmação baseado em observações. O mito foi ensinado por longo tempo; seu conteúdo recebe o reforço do medo, do preconceito e da ignorância, ao mesmo tempo que de um exercício clerical zeloso e cruel. Suas ideias penetram o idioma comum; infeccionam todas as formas de pensamento e atingem muitas decisões de relevante significação para a vida humana. O mito proporciona modelos para a explicação de qualquer concebível evento — concebível, entenda-se, para os que aceitaram o mito [3]. Assim sendo, seus termos-chave ver-se-ão fixados de maneira clara; e a ideia (que talvez tenha, originalmente, levado a esse procedimento) de que são cópias de entidades isentas de alterações e que a alteração de significado, se ocorrer, se deverá a erro humano — essa ideia passará a apresentar-se como plausível. Essa plausibilidade fala em favor de todas as manobras utilizadas para a preservação do mito (inclusive a eliminação de oponentes). O aparelhamento conceptual da teoria e as emoções ligadas à sua aplicação, insinuando-se em todos os meios de comunicação, em todas as ações e, afinal, em toda a vida da comunidade, passam a garantir o êxito de métodos tais como o da dedução transcendental, da análise de uso, da análise fenomenológica — meios de emprestar maior solidez ao mito (o que mostra, assinalemos de passagem, que todos esses métodos, característicos de escolas filosóficas antigas e modernas, apresentam um traço comum: tendem a preservar o status quo da vida intelectual). Também os resultados de observação falarão em favor da teoria, de vez que formulados com observância de seus termos. E surge a impressão de se haver, finalmente, alcançado a verdade. Torna-se evidente, ao mesmo tempo, que se perdeu todo contato com o mundo e que a estabilidade atingida, a aparência de verdade absoluta, não passa do resultado de um conformismo absoluto [4]. Com efeito, como será possível submeter a teste ou aprimorar a verdade de uma teoria, se ela é elaborada de maneira tal que qualquer acontecimento concebível [56] pode ser descrito e explicado nos termos de seus princípios? A única maneira de estudar esses princípios que a tudo abrangem seria compará-los com um conjunto de outros princípios igualmente abrangentes — mas a possibilidade desse procedimento está, desde o início, afastada. O mito não tem, pois, relevância objetiva; continua a existir apenas como resultado do esforço da comunidade de crentes e de seus orientadores, sejam estes sacerdotes ou vencedores do Prêmio Nobel. Esse é, a meu ver, o mais forte argumento contra qualquer método que estimule a uniformidade, quer seja esse método empírico ou não. Cada método dessa espécie é, em última análise, um método decepcionante. Dá forças a um conformismo sombrio e fala de verdade; leva à deterioração das capacidades intelectuais, do poder de imaginação e fala de introvisão profunda; destrói o mais precioso dom da juventude — o enorme poder de imaginação — e fala em educar .
Resumindo: Unanimidade de opinião pode ser adequada para uma igreja , para as vítimas temerosas ou ambiciosas de algum mito (antigo ou moderno) ou para os fracos e conformados seguidores de algum tirano. A variedade de opiniões é necessária para o conhecimento objetivo. E um método que estimule a variedade é a único método compatível com a concepção humanitarista. (Na medida em que a condição de coerência restringe a variedade, ela encerra um elemento teológico, elemento que se traduz na adoração dos “fatos”, que é um traço característico de quase todo empirismo [5].)
Ver online : Contra o Método
[1] A teoria quântica pode ser adaptada para, assim, contornar numerosas dificuldades. É uma teoria aberta, no sentido de que inadequações claras podem merecer explicações ad hoc, através da introdução de operadores convenientes (ou de apropriados elementos) na hamiltoniana, em vez de se reexaminar toda a estrutura. Uma refutação do formalismo básico teria, pois, de evidenciar que não há ajustamento da hamiltoniana ou dos operadores usados capaz de levar a teoria a ajustar-se a um determinado fato. Claro está que um enunciado geral dessa espécie só poderá decorrer de uma teoria alternativa, que há de ser suficientemente pormenorizada para permitir a realização de testes decisivos. Isso foi explanado por D. Bohm e J. Bub, Reviews of Modern Physics, n°.. 38, 1966, pp. 456 SS. As observações que refutam uma teoria nem sempre são descobertas com o auxílio de uma teoria alternativa; muitas vezes, já são conhecidas. Assim, a anomalia do periélio de Mercúrio era conhecida muito antes da criação da teoria geral da relatividade (que, por sua vez, não foi criada com o intuito de resolver aquele problema). A partícula browniana era conhecida muito antes de aparecerem as versões mais refinadas da teoria cinética. Sem embargo, a explicação que as observações recebem, graças ao auxílio de uma teoria alternativa, leva-nos a vê-las sob nova luz: verificamos que conflitam com uma concepção geralmente aceita. Suspeito que todos os ‘falseamentos’, inclusive o repetido Caso do Corvo Branco (ou do Cisne Negro), se baseiam em descobertas deste último tipo. Para um interessantíssimo debate em torno da noção de ‘novidade’, [61] que surge em conexão com o ponto discutido, ver seção 1.1. do artigo de Elie Zahar, ‘Why Did Einstein’ s Programme supersede Lorentz’s?’, British Journal for the Philosoph) of Science, junho, 1973.
[2] L. Rosenfeld, ‘Misunderstandings about the Foundations of the Quantum Theory’ , Observation and Interpretation, ed. Korner, Londres, 1957, p. 44.
[3] Para descrições minuciosas, cf. Ch. H. Lea, Materials for a History of Witchcraft, Nova Iorque, 1957, bem como H. Trevor-Roper, The European Witch Craye, Nova Iorque, 1969, onde há muitas referências à bibliografia antiga e moderna.
[4] A análise do uso, para considerar apenas um exemplo, pressupõe a existência de certas regularidades concernentes ao uso. Quanto mais as pessoas diferem, no que concerne a ideias fundamentais, mais difícil se torna desvelar essas regularidades. Consequentemente, a análise do uso operará melhor em uma sociedade fechada, que se mantenha unida graças a um poderoso mito como se deu com a sociedade dos filósofos de Oxford, que existia há cerca de vinte anos. Os esquizofrênicos sustentam, muito frequentemente, crenças tão rígidas, amplas e desligadas da realidade quanto as melhores filosofias dogmáticas. Note-se, contudo, que essas crenças lhes ocorrem naturalmente, ao passo que por vezes, um filósofo ‘crítico’ dedica toda sua vida à tentativa de encontrar argumentos que criem um estado de espírito semelhante.
[5] É interessante notar que são quase idênticas as trivialida-des que levaram os protestantes à Bíblia e as trivialidades que levam os empiristas e outros fundamentalistas ao que lhes serve de fundamento, a saber, a experiência. Assim, em seu Novum Organum, Bacon pede que todas as noções preconcebidas (aforismo 36), todas as opiniões (aforismo 42 ss.) e mesmo as palavras (aforismo 59, 121) ‘sejam conjuradas e a elas se renuncie com firme e solene [62] resolução e delas deve a compreensão libertar-se completamente, de sorte que o acesso ao reino do homem, reino que se fundamenta nas ciências, possa assemelhar-se a um acesso ao reino dos céus, onde só se concede entrada às crianças’ (aforismo 68). Em ambos os casos, a ‘disputa’ (que é consideração de alternativas) se vê criticada; em ambos os casos somos convidados a afastá-la; e, em ambos os casos, nos prometem ‘imediata percepção’, aqui, de Deus, e lá, da Natureza. Para informação acerca do pano de fundo teorético de tal similaridade, cf. meu ensaio ‘Classical Empiricism’, in The Methodological Heritage of Newton, ed. R. E. Butts, Oxford e Toronto, 1970. Para informação acerca dos fortes laços entre o puritanismo e a ciência moderna, ver R. T. Jones, Ancients and Moderns, Califórnia, 1965, capítulos 5-7. Exame exaustivo dos numerosos fatores que influenciaram o surgimento do moderno empiris-mo encontra-se em R. K. Merton, Science, Technology and Society in Seventeenth Century England, Nova Iorque, Howard Fertig, 1970 (versão-livro do artigo de 1938).