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A Construção das Ciências
Fourez (CC:21-24) – o apartamento e a casa com porão e sótão
Introdução
quarta-feira 27 de outubro de 2021, por
FOUREZ , Gérard. A Construção das Ciências. Tr. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: EDUSP, 1985, p. 21-24
A distinção desses dois códigos pode ser ilustrada por uma anedota cujo herói é o filósofo da ciência Gaston Bachelard . Esse pensador francês, no fim de sua vida, estava sendo entrevistado por um jornalista. Depois de alguns minutos, Bachelard o interrompeu: “O senhor, manifestamente, vive em um apartamento e não em uma casa .” E o jornalista, surpreso, perguntou-lhe o que queria dizer com isso. O filósofo lhe respondeu que a diferença entre uma casa e um apartamento é que a primeira possui, além da zona de habitação, um sótão e um porão; e o que há de particular, acrescentou, é que sempre subimos ao sótão, e descemos ao porão.
Bachelard queria assim indicar que muitos vivem sem jamais deixar o nível do código restrito. Questões como “O que é o amor, ou a amizade ?” parecem-lhes ociosas; assim como a maioria das questões relativas às ideias adquiridas. Pela imagem do sótão ou do porão, Bachelard mostrava que, para ele, ser “humano” significava por vezes “subir ao sótão”, isto é, viver uma busca de significações da existência por meio dos símbolos filosóficos, poéticos, artísticos, religiosos etc. E “descer ao porão” implicava ir, por vezes, olhar o que se passa nos subsolos e fundamentos psicológicos ou sociais de nossa existência e discernir nos condicionamentos o que nos oprime ou libera.
Um dos interesses dessa imagem me parece ligado ao fato de que se passa a maior parte da existência na sala de estar e não no sótão ou no porão. Mas aqueles que “não sobem jamais ao sótão” e “não descem jamais ao porão” carecem talvez de uma certa dimensão (notemos que esse tema da “carência” necessitaria de uma elaboração para derivar os seus significados e fazer um exame crítico!). Por outro lado, aqueles que vivessem o tempo todo no sótão, ou no porão seriam talvez facilmente considerados como pouco equilibrados (como por exemplo aqueles que se preocupam sempre com todas as razões de sua ação).
Permanecemos a maior parte do tempo no mundo prático de nossos códigos restritos. Se nos afastássemos dele o tempo todo tornar-nos-íamos literalmente loucos. Pois, se estou em vias de efetuar uma experiência de laboratório, não tenho vontade, nesse momento, de me colocar a questão da significação última daquilo que faço. E o mesmo ocorre se quero dizer a alguém que gosto dessa pessoa . Não obstante, pode haver um sentido, tanto para nós como para os que estão à nossa volta, no fato de podermos, em certos momentos, “interpretar” o que fazemos, ou “criticar” ideias comuns adquiridas.
Parece-me normal, portanto, que uma reflexão filosófica não assuma, na formação prática de um cientista, um lugar exagerado. Assim mesmo, julgo importante que aqueles que recebem uma formação em ciência não se tornem seres “unidimensionais”, incapazes de ver algo mais além de sua prática técnica. Não seria lamentável, tanto para a sociedade quanto para os indivíduos, que seres humanos tivessem uma formação extremamente aprimorada, quando se trata do código restrito, e formação alguma quanto à utilização de nossas tradições relativas ao código elaborado? Em outros termos, consideraria lamentável, para ambas as partes, formar cientistas que tentariam ser rigorosos quando se trata de ciências, mas aceitariam facilmente uma total aproximação em outros domínios. Em outros termos ainda, uma abordagem filosófica se opõe ao condicionamento dos cientistas “técnicos perfeitos”, mas incapazes de refletir sobre as implicações humanas de suas práticas (seria interessante, aliás, e isto faz parte de uma reflexão filosófica, interrogarmo-nos sobre as razões pelas quais muitos admitem sem dificuldade permanecer ignorantes quando se trata de questões humanas — de ter quanto a esse assunto uma espécie de “fé de carvoeiro”, fé humana ou religiosa -, ao passo que recusam absolutamente possuir conhecimentos apenas aproxima-tivos em um domínio técnico).
A abordagem filosófica que iremos empreender opõe-se também à existência daquilo que C. P. Snow (1963) chamou de uma “dupla cultura”, isto é, uma separação entre as práticas profissionais científicas e as reflexões mais pessoais. É típico, com efeito, encontrar em nossa sociedade pessoas que, em sua vida pessoal ou pública, são puros executantes, ou puros técnicos, incapazes ou se recusando a refletir nas implicações sociais de suas práticas; em suas vidas “privadas” ou “familiares”, contudo, advogam valores humanos.
Quando os cientistas desejam ter uma certa abertura , esta se faz geralmente à margem de seu trabalho profissional: interessam-se, por exemplo, pela música, por obras sociais ou caridosas, pela arte ou outras formas de expressão simbólica ou religiosa. Têm mais facilidade em lidar com grandes ideias sobre o mundo, Deus , a busca do verdadeiro, do que com reflexões concretas sobre as questões relacionadas com sua vida profissional. Precisaremos voltar às razões que levam a nossa sociedade a produzir uma classe média de cientistas técnicos, apolíticos, incapazes de enfrentar as significações humanas de suas vidas profissionais e confinando os seus questionamentos éticos a sua vida profissional ou privada.
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