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A Vida de Laboratório
Latour (VL:192-195) – Como os cientistas iludem-se sobre a verdadeira natureza dos fatos que produzem?
A produção dos fatos científicos
quarta-feira 27 de outubro de 2021, por
LATOUR , Bruno & WOOLGAR, Steve. A Vida de Laboratório. A produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 192-195
Os fatos e os artefatos não correspondem a enunciados respectivamente verdadeiros e falsos. Os enunciados situam-se sobre um continuum em que sua posição depende do grau em que eles apelam para as condições de sua construção. Alguns deles, que se situam aquém de um certo limite neste continuum, fazem referência às condições de sua construção. Esta é uma exigência para que eles desempenhem seu papel de persuasão. Além desse limite, ou se considera que eles não têm nada a ver com as condições de sua construção, ou tenta-se, integrando-os, fragilizar o estatuto de fato estabelecido que o enunciado desempenha. Não queremos dizer que os fatos não são reais ou que eles são puramente artificiais. Não afirmamos apenas que os fatos são socialmente construídos. Queremos mostrar também que o processo de construção põe em jogo a utilização de certos dispositivos pelos quais fica muito [193] difícil detectar qualquer traço de sua produção. Observemos com mais atenção o que se passa no ponto de estabilização.
Os membros do laboratório não têm condições de operar uma distinção dos enunciados entre os verdadeiros e os falsos, os objetivos e subjetivos, os bastante verossímeis ou os somente prováveis no momento em que são formulados. Enquanto dura o processo agon ístico, as modalidades são constantemente acrescentadas, suprimidas, invertidas ou modificadas. Mas uma vez que o enunciado começa a estabilizar-se, produz-se uma importante mudança . O enunciado toma-se entidade cindida. De um lado, ele é uma sequência de palavras que enunciam algo sobre um objeto. De outro, ele mesmo é um objeto que anda com as próprias pernas. É como se o enunciado de origem tivesse projetado uma imagem virtual dele mesmo, que existiría fora dele (Latour , 1980). Antes da estabilização, os cientistas ocupavam-se de enunciados. No momento em que ela se opera, aparecem ao mesmo tempo objetos e enunciado sobre esses objetos. Um pouco depois, atribui-se cada vez mais realidade ao objeto e há cada vez menos enunciados sobre o objeto. Produz-se, consequentemente, uma inversão: o objeto toma-se a razão pela qual o enunciado foi formulado na origem. No começo da estabilização o objeto é a imagem virtual do enunciado; em seguida, o enunciado toma-se a imagem no espelho da realidade “exterior”. Assim, o enunciado “o TRF é Pyro-Glu-His-Pro-NH2” justifica-se simplesmente como “o TRF é efetivamente Pyro-Glu-His-Pro-NH2”. Ao mesmo tempo o passado se inverte. O TRF sempre existiu, simplesmente esperava ser descoberto. A história de sua construção transforma-se também a partir desse novo ponto de vista sedutor: o processo de construção apresenta-se como a busca de um caminho simples que conduz inevitavelmente à “verdadeira” estrutura . É somente graças aos talentos e aos esforços dos “grandes sábios” que se puderam superar os falsos problemas e os impasses, e que a estrutura real pôde ser revelada pelo que ela era.
Uma vez que a cisão e a inversão ocorreram, mesmo os observadores mais cínicos e os relativistas empedernidos terão as maiores dificuldades [194] para resistir à impressão de que se encontrou o “verdadeiro” TRF, e que o enunciado refletia a realidade. O observador fica tentado mais uma vez, ao confrontar a série de enunciados com a realidade à qual eles correspondem, a espantar-se com a perfeita concordância entre o enunciado formulado por um cientista e a realidade externa.16 Como o espanto é a mãe da filosofia, nada impede que o observador se ponha a inventar todo tipo de sistemas fantásticos para explicar essa maravilhosa adequatio rei et intellectus . Propomos aqui o exame das observações da construção desse tipo de ilusão no laboratório, de modo a romper de vez com essa explicação. Não é um grande milagre que os enunciados pareçam corresponder tão exatamente às entidades externas: eles são uma única e mesma coisa.
Afirmamos que o grau de correspondência entre objetos e enunciados provêm da cisão e da inversão de um enunciado no interior do contexto do laboratório. Essa afirmação pode ser demonstrada de três formas. Em primeiro lugar, é extremamente difícil descrever apropriadamente a natureza da “exterioridade ” na qual os objetos supostamente residem, porque as descrições da realidade científica compreendem muitas vezes uma reformulação ou uma re-enunciação do enunciado que pretende “ser sobre” a realidade. Por exemplo, afirma-se que o TRF é Pyro-Glu-His-Pro-NHj. Mas para descrever com o máximo de detalhes a natureza deste “TRF exterior”, out there, cumpre repetir este enunciado. A operação teve, portanto, que incluir uma tautologia. Vamos citar um argumento levantado em favor de uma “teoria realista da ciência”, de modo a evitar que o leitor veja aí uma caricatura injustificada da posição realista. Afirmamos que não se podería falar de teoria da ciência sem fazer referência ao que chamamos “objetos intransitivos do conhecimento científico”.
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Podemos facilmente imaginar um mundo que se assemelhe ao nosso, contendo os mesmos objetos intransitivos de saber científico, mas [1] [195] sem qualquer ciência para deles extrair conhecimento [...] Em um mundo como esse, que já existiu e que poderia ressurgir, a realidade não seria expressa e, no entanto, as coisas não deixariam de agir e de interagir de múltiplas formas diferentes. Em um mundo como esse [...] as marés continuariam com seu movimento e os metais prosseguiríam conduzindo a eletricidade, como fazem, sem que um Newton ou um Drude estejam lá para produzir o nosso conhecimento desses fenômenos. A lei de Widemann-Franz continuaria a ser válida, embora não houvesse ninguém para formulá-la, para estabelecê-la experimentalmente ou para deduzi-la. Dois átomos de hidrogênio continuariam a combinar-se com um átomo de oxigênio e, em circunstâncias favoráveis, o fenômeno da osmose continuaria a se produzir (Bhaskar, 1975, p. 10).
Ver online : A Vida de Laboratório
BHASKAR, R. (1975). A realist theory of Science, Atlantic Highlands, Humanities Press.
[1] Isso constituiu os fundos de comércio dos filósofos desde que Hume propôs um tratamento radical da questão.