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A Vida de Laboratório
Latour (VL:196-200) – A fabricação dos fatos científicos
A produção dos fatos científicos
quarta-feira 27 de outubro de 2021, por
LATOUR , Bruno & WOOLGAR, Steve. A Vida de Laboratório. A produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 196-200
Os próprios cientistas passam um bom tempo perguntando-se se este ou aquele enunciado tem “verdadeiramente” relação com um objeto “exterior”, se ele não é um produto da imaginação ou um artefato, resultado dos procedimentos utilizados. É por isso que não se pode dizer que os homens de ciência ocupam-se dos temas científicos deixando aos filósofos os debates entre realismo e relativismo . Tudo depende da problemática do laboratório, da época do ano e do caráter de atualidade da controvérsia. Os pesquisadores também podem adotar a posição do realista, do relativista, do idealista, do relativista transcendental, do cético etc. Dito de outro modo, o debate sobre o paradoxo contido na noção de fato não é apanágio do sociólogo ou do filósofo. E, por conseguinte, quando nos prendemos às diferenças essenciais entre esses pontos de vista, estamos somente debatendo o próprio conteúdo dos temas estudados. A questão, portanto, não é tentar compreender como se resolvem os debates, nem como um processo prático e temporário gera esta ou aquela posição.
Para o sociólogo, é uma tarefa importante mostrar que a construção da realidade não deve ser ela própria reificada. Isso pode ser demonstrado quando se consideram todas as etapas do processo de construção da realidade e quando se resiste à tentação de fornecer uma explicação geral do fenômeno .
O argumento mais poderoso em favor da cisão e da inversão é sem dúvida e existência de artefatos. Uma modificação produzida no contexto social do laboratório pode ter como consequência o uso de uma modalidade pela qual um enunciado aceito é reconhecido ou posto em dúvida. Isso talvez leve à mais fascinante observação que se pode fazer [197] sobre um laboratório - a desconstrução da realidade. A realidade “exterior” é mais uma vez refundida em um enunciado cujas condições de produção tomaram-se explícitas. Já demos um determinado número de exemplos desse processo de desconstrução. Durante alguns anos, a existência material do TRF foi considerada um fato. Ela parecia estar assegurada até o dia em que se descobriu que ele não passava de uma artefato do processo de purificação... Acontece que o estatuto dos enunciados muda dia a dia e, por vezes, mesmo, hora a hora. Vimos, por exemplo, o estatuto de uma substância, a endorfina, variar de maneira espetacular em um período de alguns dias. [1] Na terça-feira, pensava-se que o pico indicava a presença de uma substância real. Mas, na quarta-feira, ele foi considerado resultado de uma medição não confiável. Na quinta-feira, depois de uma série de amostragens, conseguiu-se encontrar um pico que foi declarado o mesmo. A existência de um novo objeto estava a ponto de crescer de maneira lenta. Mais tarde, ela foi aniquilada. Na fronteira da ciência, os enunciados constantemente manifestam uma dupla característica: ou são explicados por causas locais (subjetividade ou artefato), ou se referem a entidades externas.
Quando o estatuto de um enunciado tende para um fato sob o impulso de uma série de forças agon ísticas, há outras forças que, ao contrário, tendem a fazer dele um artefato. Isso pode ser visto nos intercâmbios entre pesquisadores citados no início deste capítulo. O estatuto local de um enunciado a todo instante depende da resultante dessas forças (Figura 4.2). A observação direta permite seguir o processo de formação e de abandono de um dado enunciado: o que era visto como um “objeto exterior”, de repente é qualificado como “pura cadeia de palavras”, “ficção” ou “artefato” (Latour , 1978). Observar a transformação do estatuto de um enunciado de fato em artefato significa um [199] trunfo da maior importância: quando se consegue mostrar que o “efeito de verdade” da ciência está submetido a um movimento de fluxo e refluxo, toma-se bem mais difícil sustentar que o fato distingue-se do artefato, porque estaria fundado na realidade, enquanto o segundo artefato seria o mero produto das circunstâncias iocais ou de estados psicológicos. A distinção entre realidade e condições locais só existe depois que um enunciado estabilizou-se como fato.
Em outras palavras, o argumento de “realidade” só pode ser usado para explicar o processo pelo qual o enunciado torna-se fato, uma vez que é somente depois que ele se tomou um fato que surge o efeito de realidade. Isso se produz caso o efeito de realidade se apresente em termos de “objetividade”, de “exterioridade ”. É exatamente porque houve uma controvérsia que o enunciado cinde-se em uma entidade e em um enunciado sobre essa entidade. Essa clivagem nunca se produz antes da resolução da controvérsia. É evidente que isso parece trivial para um cientista que trabalha sobre um enunciado controvertido. Não se espera ver o TRF surgir inopinadamente em uma reunião que poria fim à controvérsia sobre sua composição em aminoácidos. Essa é a razão pela qual transformamos aqui esse argumento em precaução metodológica. Não usamos, como os cientistas, a noção de realidade para explicar a estabilização de um enunciado (ver capítulo 3), porque essa realidade é uma consequência daquela estabilização. [2]
Que não sejamos mal-compreendidos: longe de nós a ideia de que os fatos - ou a realidade - não existem. Neste ponto não somos relativistas. Apenas afirmamos que essa “exterioridade” é a consequência do trabalho científico, e não sua causa . É por essa razão que chamamos a atenção para a importância do momento em que as coisas acontecem. [200] Em janeiro de 1968, o TRF parecia uma construção social contingente, e os próprios cientistas eram relativistas, porque não excluíam a eventualidade de que a construção da realidade fosse um artefato. Mas em janeiro de 1970, o mesmo TRF era um objeto da natureza descoberto pelos cientistas que, naquele intervalo de tempo, transformaram-se em realistas empedernidos. Uma vez que a controvérsia foi regulamentada, considera-se que a realidade é a causa dessa regulamentação. Mas enquanto dura a controvérsia, a realidade é a consequência do debate , segue cada um de seus meandros e cada uma de suas voltas, como se ela fosse a sombra das preocupações científicas.
Pode-se objetar que a suspensão da controvérsia não é a única razão que leva a se aceitar a realidade como fato: a validade de um enunciado científico fora do laboratório constitui, por exemplo, uma base suficiente para que se aceite sua correspondência com a realidade. [3] Um fato é um fato, dir-se-á, porque ele funciona quando aplicado fora da ciência. Essa objeção pode ser respondida do mesmo modo como fizemos com o argumento sobre a equivalência entre um enunciado e a coisa objetiva. A observação da atividade do laboratório mostra que o caráter “objetivo” de um fato é a consequência do trabalho do laboratório. Nunca pudemos observar uma verificação independente em uma outra instância de um enunciado produzido no laboratório, mas observamos uma extensão de certas práticas de laboratório para outros setores da realidade social - hospital ou indústria, por exemplo (Latour, 1984).
Ver online : A Vida de Laboratório
BACHELARD, G. (1934). Le nouvel esprit scientifique, Paris, PUF.
LATOUR, B. (1978). “Les idéologies de la compétence en milieu industriei à Abidjan”, Cahiers Orstrom-Sciences Humaines, n° 9, p. 1-174.
LATOUR, B. (1984). Les microbes: guerre et paix, seguido de Irrédutions, Paris, A. M. Métaillé e Pandore.
POINCARÉ, R. (1905). La Science et l ‘hypothèse, Paris, Flammarion.
[1] Iremos contar em outro local a história da construção dessa substância. Ao contrário do caso do TRF, o observador desta vez estava presente desde as primeiras tentativas de se construir essa substância até a fase final de estabilização e de utilização em procedimentos industriais.
[2] A questão aqui colocada é saber que tipo de explicação é aplicável ao regulamento da controvérsia, dado que seu enunciado de verdade não pode ser utilizado. Embora indiquemos algumas das respostas no caso do TRF e prossigamos esboçando um modelo geral de explicação no capítulo 6, nossa primeira intenção é extrair da questão os vestígios da posição realista.
[3] Muitas vezes, nas histórias da epistemologia (por exemplo, Bachelard, 1934), o argumento da eficácia é usado quando o argumento de realidade torna-se insustentável: os convencionalistas entram em cena (Poincaré, 1905) quando os realistas se desdizem (e vice-versa). O argumento que consiste em alegar o funcionamento de um fenômeno não é nem mais nem menos misterioso do que o da correspondência com a realidade. Neste sentido, a posição que adotamos aqui está tão distante do pragmatismo quanto do realismo ou do convencionalismo (e pela mesma razão).