O problema sugerido por esse título é um dos problemas importantes da filosofia das ciências. Em certo sentido, aliás, pode ser considerado como um dos mais antigos problemas que se tenham colocado a propósito do conhecimento científico. De fato, já se apresentou no contexto da astronomia antiga, quando foi preciso confrontar a teoria de Eudóxio, que utilizava esferas concêntricas girando em torno de eixos inclinados uns com relação aos outros, e a teoria de Ptolomeu, que utilizava a célebre hipótese dos epiciclos. Essas duas teorias pareciam capazes de explicar os fenômenos observados com o mesmo grau de aproximação, mas, em compensação, não pareciam! compatíveis entre si. Resultava daí a seguinte situação: ou bem era preciso ver essas teorias como simples instrumentos (permitindo a interpretação e a previsão dos movimentos dos planetas) não se podendo atribuir-lhes os predicados “verdadeiro” ou “falso”, ou bem era preciso considerá-las como susceptíveis de receber um valor de verdade, sendo então preciso determinar um critério que permitisse arbitrar entre eles.
Neste contexto, o problema do estatuto das teorias aparecia essencialmente como um problema relativo ao estatuto das proposições teóricas. Será que essas proposições deviam ser consideradas segundo a interpretação ordinária, como enunciados susceptíveis de serem verdadeiros ou falsos, ou seria preciso dar-lhes uma outra interpretação? Mas, no caso de renunciar a considerá-los como potencialmente verdadeiros, como então explicar sua fecundidade, seu poder de reconstituir as aparências, logo de explicar os fenômenos observados? Como explicar o acordo com a realidade observada fora de uma teoria da verdade?
No contexto contemporâneo, o problema do estatuto das proposições teóricas foi parcialmente elucidado graças à noção de hipótese. Mostrou-se que essas proposições desempenham o papel de suposições das quais se pode deduzir os fatos observados e, até certo ponto em todo caso, foi possível elucidar o estatuto desses enunciados hipotéticos. A análise desse estatuto exige um aparelho semântico mais complexo do que aquele com que se contentava a teoria clássica dos valores de verdade, é preciso recorrer a uma lógica da confirmação, ou, para seguir as concepções de Popper , a uma lógica da corroboração. Trata-se aí de teorias semânticas estreitamente relacionadas com a teoria da probabilidade. Segundo os pontos de vista desenvolvidos por Carnap, a teoria da confirmação pode mesmo ser considerada diretamente como uma das interpretações possíveis do cálculo de probabilidades (considerado como sistema puramente formal).
Mas toda essa questão do estatuto das proposições hipotéticas representa apenas um aspecto do problema geral do estatuto das teorias. Esse problema foi desenvolvido numa outra linha no contexto epistemológico elaborado pelo neopositivismo. Como se sabe, uma das preocupações mais importantes dos neopositivistas foi, pelo menos de início, estabelecer um critério de significação dos termos e das proposições capaz de dar uma forma precisa ao postulado epistemológico fundamental do empirismo e capaz, por via de consequência, de discriminar as proposições científicas das proposições que não o são. Nessa perspectiva, o problema do estatuto dos termos foi colocado como um problema de significação.
B. A teoria neopositivista da significação
Poderíamos exprimir, em linhas gerais, o postulado de base do empirismo da seguinte maneira: só a experiência pode ser fonte de conhecimento e, no domínio da experiência, só, praticamente, a experiência perceptiva pode ser fonte de um conhecimento que tenha valor científico, pois, ao que parece, só a experiência perceptiva pode dar lugar a um controle inter-subjetivo e isso segundo modalidades suficientemente claras. Colocando semelhante princípio, afas-tami-se todas as formas possíveis de experiência que não sejam acessíveis a um controle intersubjetivo, como a percepção extra-sensorial, os estados interiores mais ou menos ligados à afetividade, o “sentimento da vida” (do qual fala Carnap) e, de modo geral, todas as formas de intuição não perceptiva. Mas esse princípio elimina igualmente toda forma de conhecimento a priori , quer se trate de ideias inatas, quer de intuição intelectual, quer de formas a priori no sentido kantiano ou da apreensão reflexiva dessas formas no sentido de uma teoria transcendental do saber. Traduzido na linguagem da lógica, o princípio do empirismo significa que só se podem aceitar como dotadas de sentido as proposições analíticas, ou seja, as verdades lógicas e matemáticas (segundo o ponto de vista neopositivista que considera as proposições matemáticas como analíticas), as contradições lógicas, e as proposições sintéticas a posteriori. Mas tudo isso nos dá ainda só uma indicação geral, uma espécie de linha de conduta. É preciso dar a esse critério geral do sentido um conteúdo tão preciso quanto possível, e é aqui que as dificuldades começam.
Os critérios propostos foram formulados sob forma de condições relativas à linguagem. Se a linguagem contivesse unicamente termos designando propriedades diretamente perceptíveis ou objetos imediatamente accessíveis à intuição sensível, seria extremamente fácil reformular o princípio empirista sob forma de um princípio relativo ao uso da linguagem. Mas a linguagem ordinária e, num grau bem mais evidente ainda, a linguagem científica utilizam termos que não temi esse caráter e, no entanto, são, em certo sentido, descritivos, isto é, termos que se referem a objetos ou a propriedades, eventualmente a objetos ideais ou a propriedades ideais. Trata-se de termos que, sem se referir diretamente ao domínio do percebido, não são, porém, termos lógicos, tais como “e”, “ou”, “a classe dos x tais que. . .”, etc. A dificuldade está em dar um estatuto aceitável do ponto de vista empirista a termos desse gênero , que não se podem dispensar sob pena de arruinar a ciência e mesmo de retirar à linguagem ordinária muitas de suas possibilidades de expressão.
Tratava-se de precisar em que condições um termo descritivo pode ser considerado como dotado de sentido, em conformidade com o princípio geral do empirismo, e isso de modo a salvaguardar a capacidade expressiva da linguagem científica. A primeira solução proposta consistiu na formulação do célebre princípio de verificação. Esse princípio afirma que uma proposição é dotada de sentido se, e somente se podemos indicar um processo aceitável que permita, direta ou indiretamente, decidir se essa proposição é verdadeira ou falsa. Correlativamente, diremos que um termo descritivo é dotado de sentido se figura numa proposição dotada de sentido. Por “processo aceitável” é preciso, naturalmente, entender um processo que satisfaça à ideia formulada pelo princípio do empirismo. Trata-se de um princípio decomponível numa série finita de operações que são quer operações lógicas, inferências, quer procedimentos puramente observacionais. Praticamente, a verificação de uma proposição dotada de sentido deve poder se reduzir, por intermédio de procedimentos lógicos, à verificação de proposições elementares que só introduzam designações de objetos físicos e predicados de observação. Trata-se aí de proposições da forma P (a), onde a é uma expressão nominal que designa um objeto físico (por exemplo, utilizando coordenadas espacio-temporais) e P um predicado de observação. Diremos que um predicado P é um predicado de observação se for possível determinar, para todo objeto do domínio considerado, mediante um número finito de observações sensoriais, se P convém ou não a esse objeto. Em outras palavras, um predicado P é considerado como predicado de observação se é possível decidir numa base puramente observacional se a proposição formada pela aplicação do predicado P a um objeto (qualquer) do domínio estudado é verdadeira ou falsa.
Muito rapidamente notou-se que o critério da verificação era excessivamente exigente. Com efeito, jamais estamos em situação de especificar todas as condições contextuais que permitem efetivamente dizer, de maneira definitiva e categórica, que um predicado é verificado ou não a propósito de um objeto dado, mesmo se se trata de um predicado de observação.
Por isso, foi preciso ampliar o critério empirista do sentido das proposições. Foi o que fez Carnap em seu célebre artigo Testability and Meaning, onde propôs que se substituísse o critério de verificação pelos critérios de confirmabilidade e de comprovabilidade. [1]
A ideia básica é a seguinte: não se pode, a rigor , obter uma verificação nem mesmo das mais simples proposições, mas pode-se tentar obter uma confirmação crescente das proposições elementares e, por intermédio das operações da lógica, pode-se estender essa confirmação às proposições mais complexas que intervêm nas teorias científicas. Carnap distingue dois graus em seu critério, segundo a natureza dos predicados que figuram na proposição a examinar. Diremos que um predicado P é observável se, em circunstâncias apropriadas, um observador pode obter, seja para a proposição “a possui a propriedade P”, seja para a proposição “a não possui a propriedade P” (a designando um indivíduo qualquer do domínio estudado), uma confirmação de tal grau que ele será levado praticamente a aceitar ou a rejeitar a proposição “a possui a propriedade P”. Diremos que um predicado P é comprovável se um observador é capaz, em circunstâncias apropriadas, de tornar verdadeira a proposição “a possui a propriedade P”, ou por outras palavras, de conferir efetivamente a propriedade P ao objeto a. Dir-se-á que uma proposição é confirmável se todos seus predicados podem ser reconduzidos, graças a um processo de redução apropriado, a predicados comprováveis. E uma proposição é considerada como dotada de sentido se é confirmável ou comprovável. Carnap desenvolveu ulteriormente essa ideia da confirmação sob a fórmula de uma teoria quantitativa do “grau de confirmação”. Trata-se de uma teoria que associa à noção de confirmação uma função de medida de forma adequada, dotada precisamente de propriedades que refletem de maneira suficientemente adequada aquelas que se podem atribuir intuitivamente ao processo epistemológico da confirmação.
Quaisquer que sejam os detalhes da teoria da confirmação, a ideia diretriz que serve de base aos novos critérios não é fundamentalmente diferente da ideia em que se baseava o primeiro critério. Podemos formulá-la da seguinte maneira: uma proposição só é dotada de sentido se ela pode ser resolvida, graças a uma série de operações de “redução”, em proposições susceptíveis de uma confirmação direta, mediante atos elementares de observação. A concepção semântica que comanda tanto a teoria da confirmação quanto a teoria da verificação consiste na ideia de que o significado de um termo teórico é dado pelos atos de observação aos quais se pode, em última análise, ligá-lo (por intermédio das proposições em que ele figura e que representam, direta ou indiretamente, estados de coisas que podem dar lugar a esses atos de observação).
O próprio critério de confirmação foi criticado, pois não era suficiente para justificar a intervenção de certos termos teóricos abstratos, que no entanto eram indispensáveis. Essa ideia exprime-se no seguinte critério: diz-se que uma proposição na qual figurem termos não estritamente empíricos é dotada de sentido, se ela pode ser interpretada numa linguagem (isto é, num conjunto de proposições) que só contenha termos estritamente empíricos. Esse critério dá não somente os meios de distinguir as proposições dotadas de sentido das outras, mas também permite conferir um sentido preciso aos termos teóricos abstratos (não diretamente relativos a traços observáveis), por intermédio justamente da interpretação proposta. Pode-se dizer que a noção de interpretabilidade fornece a base de uma teoria semântica que pode ser considerada como a teoria empirista clássica no que concerne ao significado dos termos teóricos. Vejamos como essa teoria se apresenta. Nossa exposição vai se apoiar essencialmente nos trabalhos de Carnap e de Hempel.