O “cogito”
O caminho de um incontrastável ponto de partida para a “ciência admirável”, que há de conter a verdade e a certeza , leva Descartes à necessidade da dúvida metódica. Tudo o que, de qualquer modo, pode ser sujeito a dúvidas, será posto entre parênteses, o que não quer dizer que Descartes seja cético ou agnóstico. Para ele só importa a verdade e certeza da “ciência admirável”. A fim de encontrá-la, porém, precisa demolir primeiro, até os alicerces, suas “opiniões antigas”, pois viu como era duvidoso tudo quanto lhe ensinaram desde a juventude . [1]
Que foi, então, atingido pela dúvida metódica de Descartes ?
Permitindo-nos estabelecer certa sistemática na enumeração feita pelo filósofo, reuniremos o que é posto entre parênteses como sendo tudo o que não é o próprio sujeito, a saber, Deus , o mundo e o corpo. Por razões metódicas, Descartes suspende qualquer juízo sobre isso, e deseja abster-se provisoriamente de julgar, não por duvidar da realidade da existência de Deus, do mundo e do corpo, mas porque, a seus olhos, não teria fundamento algum o que lhe haviam ensinado a respeito deles, ainda que fosse verdadeiro. Também não é, entretanto, intenção de Descartes investigar uma por uma todas as opiniões. [2] Tal coisa não só seria impossível, como igualmente supérflua. Porque, se o fundamento de todas as “opiniões antigas” for demolido [45], cairá por si todo o edifício das verdades e certezas anteriores. [3]
Com relação à existência do mundo e do corpo, Descartes aduz dois motivos para duvidar de sua realidade, a saber, a insegurança dos sentidos e a possibilidade do sonho . É evidente que os sentidos nos enganam às vezes, ao experimentarmos tirar deles um conhecimento verdadeiro e certo sobre o corpo e o mundo. Mas se os sentidos nos enganam às vezes, podem enganar-nos sempre. [4] Além disso, temos em nossos sonhos imagens de nosso corpo e nosso mundo, de que, uma vez acordados, precisamos dizer que não se coadunam com nosso corpo e nosso mundo reais. Quando sonhamos que temos um corpo mais robusto e mais belo ou moramos em um mundo totalmente diverso, estamos bem convictos de que o corpo e o mundo sonhados são reais, assim como cremos na realidade de um cinzeiro, de uma pena , de um livro e de uma folha de papel sobre uma mesa, num quarto, numa casa que dá para uma rua. Se, pois, estamos convencidos da realidade de um cinzeiro, de uma pena , de um livro, de uma folha de papel, de uma mesa, de um quarto, de uma casa e de uma rua, trata-se de uma convicção tão infundada como a certeza a respeito do corpo e do mundo sonhados, porque não há nenhum critério para decidir que não sonho quando julgo sentir realmente um cinzeiro ou outra coisa qualquer. [5]
Descartes sabe muito bem que a dúvida metódica radical não pode ser, em absoluto , utilizada na vida cotidiana. Nela procurar-se-á repelir qualquer dúvida que por acaso surja, a fim de se poder sobreviver numa falsa certeza. Um prisioneiro que sonha estar livre também não quer deixar seu sonho. [6] A vida cotidiana é como um sonho, mas a procura da verdade e certeza requer que esse sonho seja desfeito.
A dúvida metódica radical é para Descartes o caminho da certeza inabalável do cogito. Desde que se tenha posto entre parênteses tudo o que de algum modo é duvidoso, manifesta-se [46] o fato da própria dúvida como indubitável e certo. O pensamento que duvida e a dúvida pensante, o cogito, permanece indubitavelmente certo em toda dúvida. Mas, acrescenta Descartes, se o cogito é indubitável e certo, também é indubitável e certo que eu que penso sou alguma coisa. [7] Essa certeza fica de pé mesmo se um mau espírito me engane em tudo o que penso, porque, se me engana, sou. Pode enganar-me quanto quiser, mas não pode fazer com que eu não seja enquanto penso. [8] O cogito, ergo sum (”penso, logo sou”) é, portanto, o incontrastável ponto de partida da “ciência admirável” que Descartes tentava construir.
Consequências da primazia do “cogito”
A profundidade da crítica com que Descartes procede em sua procura de um ponto de partida indubitável do filosofar começa a produzir consequências já na primeira verdade da filosofia. O sujeito-como-cogito está fora de dúvida. Que é, porém, o sujeito ? Descartes não pode responder que o sujeito se encontra imerso na corporalidade ou envolto no mundo, porque a realidade do corpo e do mundo foi posta entre parênteses por motivos metódicos. À pergunta “o que sou ?” só pode responder com o que não foi posto entre parênteses, e isso é unicamente o pensamento: sum cogitans (”sou um ser pensante”). Descartes aceita de modo explícito essa consequência. Julga que o sujeito, o “eu”, a “substância pensante”, a que chama “alma ”, é simplesmente o que ela é, mesmo sem corpo e sem mundo, dos quais é inteiramente independente. [9]
Pelo método da dúvida radical decide-se ao mesmo tempo qual o objeto do pensamento, do conhecimento ou consciência . Sou um ser pensante. Mas o que penso ? Impossível a Descartes dizer que o sujeito-como-cogito pensa a realidade de Deus, do mundo ou do corpo, já que pôs entre parênteses a realidade deles. No entanto, o pensamento é necessariamente pensamento-de-alguma-coisa, porque, se não o fosse, seria, como [47] pensamento-do-nada, simplesmente um não-pensar. À pergunta sobre o objeto do pensamento só pode, de novo, responder com o que não foi posto entre parênteses, o que não é senão o pensamento. Sum cogitans cogitationes meas: penso meus próprios pensamentos, sou consciente dos conteúdos de minha consciência, conheço minhas próprias imagens cognitivas, e isso é que sou.
O radicalismo da dúvida metódica não fez com que se perdessem do pensamento Deus, o mundo e o corpo, juntando-lhes tão só a denominação de “pensamento de”. [10] O cogito-com-conteúdo tira daí sua certeza incontrastável. Ainda que a pena com que escrevo, o papel que emprego, a cadeira em que sento e o quarto em que moro não fossem realidades, seria, embora tudo isso não passasse de um sonho, irrefutável que tenho a ideia de pena, a ideia de papel, a ideia de cadeira e a ideia de quarto. [11] O cogito-com-conteúdo é indubitável, e isso é o que sou.
Critério da verdade e certeza
A certeza inabalável do “penso logo existo” levou Descartes a investigar em que consiste precisamente a certeza, o que era de suma importância para a construção da “ciência admirável”, visto que esta deveria conter em todas as suas fases uma indiscutível verdade e certeza. O filósofo achara já uma proposição caracterizada pela verdade e certeza, i. é, o cogito, ergo sum. [12] Procurando então o que dava à proposição o caráter indubitável, que lhe cabia inegavelmente, chegou à conclusão de que nada mais o assegurava da sua verdade senão o fato de afirmar clara e distintamente que para pensar se precisa ser. A “clareza ” e “distinção” do pensamento revelavam-se, pois, a Descartes como o critério da verdade e certeza do que se pensa. Por isso, resolveu também na construção da “ciência admirável” só reconhecer verdade e certeza naquilo de que tivesse uma ideia “clara” e “distinta”. [13]
[48] Segundo Descartes, a veracidade de Deus garante que são verdadeiras e reais as ideias claras e distintas. O critério da verdade é o conceito claro e distinto, mas esse critério necessita de uma garantia. [14] O filósofo prova a existência de Deus, [15] a fim de poder assegurar que nossas ideias claras e distintas vêm de Deus como Criador. Mas se nossas ideias claras e distintas procedem de Deus e somos obrigados por ele a afirmar que a “clareza” e “distinção” das ideias são um critério da verdade e realidade, Deus simplesmente nos enganaria se assim não fosse. Ora, seria contra a veracidade divina que ele nos enganasse. Logo, Deus é a garantia da verdade e realidade do que se pensa clara e distintamente. [16] Assim sendo, urge apenas estabelecer quais são as ideias “claras” e “distintas”. [17]