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ENSAIOS SOBRE INFORMÁTICA

de Castro: computador — bola de cristal

quinta-feira 21 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

      

A demonstração fenomenológica do ser dos entes que se encontram mais próximos faz-se pelo fio condutor do ser-no-mundo cotidiano, que também chamamos de modo de lidar no mundo e com o ente   intramundano. Esse modo de lidar já sempre se dispersou numa multiplicidade de modos   de ocupação. Como se viu, o modo mais imediato de lidar não é o conhecer meramente perceptivo e sim a ocupação no manuseio e uso, a qual possui um “conhecimento” próprio. A questão fenomenológica vale, sobretudo, para o ser dos entes que vêm ao encontro nessa ocupação. Para se assegurar a visão aqui exigida, faz-se necessária uma observação metodológica preliminar. [Heidegger  , Ser e Tempo §15, 2015, pág. 114-115]

Por sua ação vital e resoluta, o Dasein   na ocupação informacional-comunicacional na situação de uso da tecnologia   da informação e da comunicação (doravante TIC) se dá enquanto um modo de ser-no-mundo particular em lida com este ente intramundano, a TIC (o computador, no caso), que diferentemente de qualquer outro ente intramundano reflete seu raciocinar. Na peculiaridade   desta ocupação arregimentam-se outros entes à-mão (zuhanden), enfim elementos   na constituição do “dar-se da informática”. Dada a natureza de engenho de representação da TIC, no “dar-se da informática” um destes elementos é a estrutura   digital de representação da realidade, no caso como “dados simbólicos” manipulados por “programas no computador”, por sua vez com-postos de algoritmos. Dados simbólicos que guardam uma referência com o mundo, enquanto reflexo deste sobre a bola de cristal. Da mesma maneira os programas no computador e as bases de dados digitais, sobre as quais operam, enquanto lógica formal e estrutura de dados digitais, permitem uma analogia   à forma da bola que determina o reflexo do que seja sobre sua superfície.

A bola de cristal é, assim como o computador um engenho técnico, ou seja, um engenho constituído segundo certa arte, no caso, de reflexão ou de representação. A bola de cristal e o computador são “arte-fatos”. Na ocupação informacional-comunicacional refletem-se no computador corpos e entes do “mundo circundante”, em todos os sentidos, do literal ao figurativo. No computador, como na bola, tudo se apresenta como “ato/fato técnico”, ou algoritmo/dado, ou seja, como um simulacro informacional-comunicacional.

A constituição progressiva e interativa de um processo de informatização se dá pela projeção do ser-no-mundo nesta ocupação informacional e comunicacional sobre um arte-fato tecnológico, onde o ser-no-mundo é "capturado", "apreendido" ou "apropriado" em termos de instruções lógicas (seus atos e/ou raciocínios) e dados simbólicos (seus fatos e/ou percepções), armazenados na TIC. O que passa muitas vezes desapercebido, em tudo isto, é a regência do “dar-se da informática”. O "quem" rege e o "como" rege este “dar-se”, são algumas das questões críticas na constituição moderna da informática, a serem ainda investigadas.

O computador, assim como a bola de cristal, pela manipulação em sua lida na ocupação informacional, pelo seu posicionamento adequado neste "aí" da litogravura, enquanto clareira imediata do ser-no-mundo, reflexiona um raciocínio e sua mundaneidade, por representações. Mas, sempre segundo regras lógicas, que enquadram um raciocínio, ou seja, segundo a abordagem, a interpretação e a tradução de um raciocínio qualquer, a ser pretensamente operacionalizado, como raciocínio de natureza informacional/comunicacional.

A compreensão do ser nesta ocupação informacional-comunicacional decai na interpretação de um raciocínio qualquer, em linguagem ou em termos informacionais/comunicacionais, segundo o meio técnico-científico-informacional conformado à “com-posição” (o razoamento, a Ge-stell) das atuais tecnologias da informação e da comunicação (TICs). À semelhança   do reflexo na bola de cristal e a interpretação do mesmo reflexo, se dá em um meio iluminado pela luz que emana da janela ao fundo, que pode ser por sua vez localizada pelo próprio reflexo da pessoa   e de seu "Umwelt", ou seja, sua circunvisão sobre a bola.

O “dar-se da informática” constitui-se segundo a essência da técnica moderna: a “com-posição”. Esta é a luz   que "impressiona" o meio técnico-científico-informacional, que hoje em dia, cada vez mais, atribui “coloração” ou perspectiva própria, a todos elementos co-responsáveis de sua constituição. Este meio se conjuga com outros elementos no “dar-se e propor-se da informática” e orienta, desde o princípio, este mesmo “dar-se e propor-se”. Quanto mais, por sua imanência nas TICs, da mesma maneira que uma capacidade luminescente é imanente à própria bola de cristal, que se constituiu como arte-fato, segundo esta mesma capacidade luminescente.

Apresentam-se assim reunidas as condições para a constituição de um “dar-se e propor-se da informática” em qualquer circunstância  , muitas vezes à revelia da ação direta, vital, resoluta e autêntica do Dasein, mas na impessoalidade (das Man) que conduziria e harmonizaria a coalescência de todos os elementos neste “dar-se”. Este é outro aspecto notável da TIC: ela se dá sempre como o reflexo de um Dasein reduzido a um raciocínio em seu contexto imediato, em sua circunvisão decadente e reduzida, sobre o engenho de representação, por exemplo, o computador. Todavia, na construção do engenho algo de sua aplicação e uso já vem deliberado, imanente à TIC. Cabe assim uma questão: "quem" ou "o que" efetivamente rege o “dar-se e propor-se da informática”?

Na leitura metafórica da imagem do Escher, a mão, aparentemente desprendida de tudo, que emerge no quadro sustentando a bola, e que na dúvida parece ser de quem empunha a bola, aponta para algo ou alguém, ainda indefinido. O "ninguém" da impessoalidade (das Man)?

Há algo paradoxal na imagem onde apenas uma bola e uma mão estão retratadas. Os reflexos de uma pessoa e de seu contexto sobre a bola parecem indicar que esta mão que eleva a bola é a mesma da pessoa refletida sobre ela. Um pequeno reflexo da mão que empunha a bola, na parte inferior   da mesma, parece até mesmo confirmar esta crença. Mas como se trata apenas de um reflexo sobre a bola pode ser uma ilusão de ótica... Temos uma analogia do que Heidegger denomina "das Man", o impessoal?

Este aparente paradoxo também pode ser verificado no “dar-se e propor-se da informática”. O Dasein, enquanto ser-no-mundo, é levado a considerar-se como condutor e arregimentador da coalescência dos elementos responsáveis por este “dar-se e propor-se”. No entanto, algo no estatuto original do engenho, do computador, sobre o qual se efetiva este “dar-se e propor-se”, parece estar guiando e ilustrando toda sua doação e proposição, o tempo todo, como dis-positivo informacional-comunicacional.

A natureza reflexiva da bola de cristal, fundada em seu estatuto técnico, operando em sintonia com a luz, a “com-posição” que ilumina o meio onde se situa, parece indicar também algo de suma relevância. A bola, em analogia com o computador enquanto engenho de representação, está preparada para responder à luz que ilumina o meio, bastando apenas ser tomada e elevada em um ser-aí (Dasein), que, nesse sentido, se coloca subserviente ao estatuto técnico do “arte-fato”, sua natureza e seu poder de reflexão, para obter o reflexo pretendido. O “dar-se e propor-se da informática” se constitui, do mesmo modo, segundo um ser-no-mundo, numa ocupação informacional-comunicacional nivelada e ditada por algo que emana do estatuto técnico do computador e da luz que ilumina o meio.

O ser-no-mundo na ocupação de uso da bola de cristal reflete-se sobre a bola, em conformidade com “dis-posições” desta, ou seja, submisso às condições de refração e outras disposições da bola de cristal. Do mesmo modo, no “dar-se e propor-se da informática”, o ser-no-mundo na ocupação de uma situação de lida com uma TIC reflete-se sobre o engenho, segundo as “dis-posições e dis-positivos” próprios do engenho, clareado pela “com-posição”, a luz que ilumina o meio.

Dessa maneira, a estrutura de dados simbólicos, a linguagem de programação (implementadoras dos algoritmos) e as características técnicas da TIC, enquanto “dis-posições e dis-positivos”, “lidam” (como a mão “anônima” da imagem, das Man) também a conformação dos dados que nele são registrados e as possibilidades de tratamento destes dados, segundo as funcionalidades previstas neste “dar-se e propor-se da informática”. As “disposições e dispositivos” que compõem o engenho, segundo sua constituição a priori  , ordenam e limitam o poder e as possibilidades de arregimentação de qualquer ocupação informacional-comunicacional de um ser-no-mundo; neste caso, instala-se uma mundanidade “restrita”, melhor dizendo, uma "pobreza   de mundo" (Heidegger, 1983/2003).


HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tr. Márcia Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2015

HEIDEGGER, Martin. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica. Mundo, Finitude, Solidão. Trad. Marcos Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983/2003