Qualquer tecnologia da informação não é uma tabula rasa . Sobre sua base material, organizando circuitos lógicos e aritméticos e memória, segundo um sistema binário, já opera um programa, composto por algoritmos e dados simbólicos, que estabelece seu modo performativo e sua interface na interação com seu usuário. Sobre esta camada de programação, representando o engenho, outra camada de programação oferece as diferentes funções de representação do engenho, que o tornam capaz de aplicações diversificadas, no tratamento de textos, no processamento de imagens, na resolução de problemas matemáticos e estatísticos.
O computador é programado e tudo que nele é codificado, obedece ao sistema binário, 0 e 1. Do mesmo modo tudo que entra e sai do computador, passa por esta conformação ao sistema binário. As camadas de programação que lhe configuram como engenho de representação são também codificações em sistema binários, em última instância. O mistério cerca a proximidade e o distanciamento entre o baixo nível do sistema binário, implementado nos circuitos do computador e o alto nível de um programa de processamento de texto, de uso comum hoje em dia. Enquanto este mi-lieu permanecer velado e não pensado, a essência da informática, formulada como dis-positivo de representação, só será uma etiqueta, mas não um significado, uma re-velação. A funcionalidade expressa em seu poder de representação encobre e desencobre a essência da informática, assim como o agir humano vela e re-vela sua essência humana.
Na proximidade-distanciamento entre os níveis operacionais do engenho, reside também a separação da noção de informação, como sinal circulando e armazenado no baixo nível operacional da máquina , e como conteúdo com significado reconhecido pela pessoa ocupada com um instrumento do engenho, por exemplo, uma base de dados de população. No primeiro, a informação é considerada de um ponto de vista sintático, exatamente como Shannon a estabeleceu em sua Teoria . Na segunda, o conteúdo sintático ganha seu significado na “dis-posição ” pessoa-com-engenho-de-representação, tratando um problema qualquer segundo o modelo informacional-comunicacional do mesmo.
A sintaxe pode ser representada em termos matemáticos binários, ou em qualquer outro sistema matemático de codificação. Deste modo, pode ser reconduzida a um tratamento lógico-matemático de um grupo de símbolos. A sintaxe é estritamente cálculo. Por outro lado, esta constatação parece prevalecer e reforçar outra mais sutil e questionável de que o significado pode ser retirado deste mesmo tratamento, desde que se faça um investimento maior no programa e na memória do engenho, e especialmente na mimese que estes representam da razão e da memória humanas diante de diferentes atos e fatos da vida.
Há um processo em curso que faz com que a representação da linguagem não seja determinada a partir dela mesma, do falar um com o outro, mas sim pela maneira como o computador fala e calcula isto. A equiparação da linguagem com o computador. Este destino da Física, que chegou agora à Física Nuclear, inquieta os pensadores entre os físicos, visto que eles veem que o homem , colocado neste mundo construído pela Física Nuclear, não tem mais acesso ao mundo. Agora só continuam acessíveis a calculabilidade e o efeito. Nesta situação tentamos nos ajudar, por exemplo, com a palestra que Heisenberg fez sobre Goethe e as ciências naturais modernas. Ali ele procurou algo totalmente insustentável, ou seja, mostrar que aquilo para o que se dirige a Física, isto é, a fórmula universal , a recondução a um princípio simples, corresponderia ao fenômeno originário de Goethe ou às ideias platônicas. Heisenberg não reparou que uma fórmula matemática, por mais simples que seja, é algo fundamentalmente diferente do fenômeno originário de Goethe. Mas o problema de Heisenberg é ainda maior, ele não consegue colocar a sua Física em relação vital com o homem. Outros físicos ligam a ciência à fé.
Falar é dizer = mostrar = deixar ver = comunicar e ouvir de modo correspondente, subordinar-se e adaptar-se a uma exigência, corresponder. (Heidegger , 1987/2001, pág. 228, grifo meu)
“Como o computador fala e calcula isto” é a redução à sintaxe e ao poder operatório do algoritmo em sua presunção de enunciar sentido. Fica-se apenas com o lógico, os símbolos matemáticos e as regras de relação válidas para os entes matemáticos, enquanto representações do que de razão e de memória se pode codificar em algoritmos operando sobre dados simbólicos.
Na Metafísica moderna, a esfera da interioridade invisível se determina como a região da presença dos objetos calculados. Esta esfera, Descartes a caracterizou como consciência do ego cogito.
Quase ao mesmo tempo em que Descartes, Pascal descobre, antítese da lógica da razão calculante, a lógica do coração . O interior e o invisível da dimensão do coração é não somente mais interior que a interioridade da representação calculante — e, por isto, mais invisível — mas leva ao mesmo tempo mais longe que a região dos simples objetos produtivos. (...) No interior desta consciência incomum reside um espaço intimo no interior do qual, para nós, toda coisa superou o numérico do cálculo, e pode assim, livre de limitações, se expandir no todo sem entraves do aberto. Tal supérfluo sobre-numérico nasce, quanto à sua presença, na interioridade e invisibilidade do coração. (Heidegger, 1949/1962, pág. 367-368)
Com a informática, impulsionada pela informatização, a questão do sentido do ser proposta por Heidegger desde “Ser e Tempo” torna-se ainda mais vital à superação da metafísica. O sentido do ser daquilo que é, o sentido do ser do ente , e agora o sentido do ser do ente informacional é a questão premente desta “Era da Informação”.
Para Marc Richir (1990, pág. 9), “o Dasein , sempre ex-stasiado ao sentido, não dispõe de sentido a seu bel prazer, não é o mestre do sentido, este está dissimulado em suas profundezas insondáveis”. Posto deste modo, a determinação do sentido do ser daquilo que é, surge, enquanto determinação, de uma “instituição simbólica”. Entendida em sua generalidade como o conjunto coeso de sistemas simbólicos (línguas, práticas, técnicas e representações) que codificam o ser, o agir, as crenças e o pensar dos homens, sem que estes decidam; como o “já dado” de antemão (Richir, 1996, pág. 14).
Sendo assim é urgente pensar a essência da informática e o processo de informatização, face às mudanças em curso na instituição simbólica contemporânea, quando a técnica moderna alcança seu ápice no engenho de representação. Quando a essência da técnica moderna, a Ge-stell, vislumbrada por Heidegger há meio século atrás, se manifesta em todo sua resplandecência e plenitude no dar-se e propor-se da informática em cada situação individual, e na informatização galopante da humanidade.