Ao longo desta investigação o termo memória foi usado inúmeras vezes. Para que seu sentido fique bem claro e se possa falar de uma “industrialização da memória” é necessário elaborar o termo e a noção .
Na tradição ocidental, o termo memória teve o privilégio de ser referência a um titã da mitologia grega, Mnemósina (Mnemosine). Heidegger recupera seu sentido original ao se referir a um poema de Hölderlin , e articular este sentido ao pensar :
Mnemósina, a filha do Céu e da Terra , se torna, como esposa de Zeus , durante nove noites a Mãe das Musas . Jogo e Musica, Dança e Poesia pertencem ao seio de Mnemósina, à Memória. É claro que este termo designa outra coisa que a única faculdade, determinável pela psicologia, de reter o passado na representação. Memória pensa naquilo que tem de ser pensado. Mas, sendo o nome da Mãe das Musas, “Memória” não significa um pensar qualquer de não importa que pensável. Memória é o recolhimento do pensar sobre aquilo que em tudo desejaria ser já guardado no pensar. Memória é o recolhimento do pensar fiel. Ela protege próximo a ela e ela guarda consigo aquilo que é necessário pensar de antemão de tudo aquilo que é e que se revela à nós como o ente , como sendo o recolhimento do ser (als Wesendes, Gewesendes). Memória, a Mãe das Musas! O pensar fiel àquilo que demanda ser pensado é no fundo de onde soa a poesia. A poesia são então as águas, que por vezes escoam às avessas em direção à fonte , em direção ao pensar como pensar fiel. Tanto quanto crermos poder alcançar da lógica um esclarecimento sobre isto que é a poesia, tanto quanto não poderemos nos por a pensar à maneira pela qual toda poesia repousa no pensar fiel. Tudo que encanta na poesia brota do “recolhimento junto a...” que é aquele do pensar fiel. (Heidegger, 1954/1959, pág. 29-30)
Ao longo do ensaio, “O que se chama pensar?”, Heidegger alerta para a perda deste sentido profundo da Memória, em sua articulação com o pensar. No exame da questão, a partir “daquilo que nos faz mais pensar em nosso tempo que nos faz pensar é que não pensamos ainda”, Heidegger acompanha a máxima de Nietzsche “O deserto cresce...” para concluir que “a desolação é, na cadência máxima, o banimento de Mnemósina” (ibid, pág. 36).
Por conseguinte, poderia ser que aquilo que faz mais pensar fosse alguma coisa do alto, talvez mesmo o mais alto que seja para o homem, se pelo menos o homem habite este ser que ele é enquanto pensa, quer dizer enquanto é requerido pelo pensado, pois, com efeito, sua essência repousa na Memória. (Heidegger, 1954/1959, pág. 37)
Que distância guarda a Memória da memória informacional-comunicacional tratada nesta investigação, embora a mesma denominação pareça indicar uma proximidade, algo em comum que na Memória se re-vela e na memória se vela de todo. Pois, nesta última, o que se tem é a mimese da Memória, capturada naquilo que tem mais próximo de um registro de símbolos, palavras ou imagens, que representam um ato ou um fato. Uma mimese onde prevalece de pronto a interpretação da Memória como apenas um depósito de símbolos armazenados na mente , referentes a atos ou a fatos, e passíveis de serem codificados em dados simbólicos, a serem armazenados em um suplemento artificial de memória, componente da tecnologia da informação.
Esta interpretação da Memória como simples depósito de palavras ou imagens, por sua vez, se aproxima em certo sentido, da memória informacional, guardando, no entanto, certa distancia de todos os esforços realizados desde a Antiguidade por estabelecer uma “arte da memória”. Pelo contrário, aproxima-se muito da evolução desta arte da memória e de suas técnicas aperfeiçoadas através da Idade Média e da Renascença, como muito bem indica Frances Yates (1966) em seu clássico, “The Art of Memory”.
Aquilo que se busca pela arte da memória e aquilo que se constrói pela memória informacional-comunicacional é, no primeiro caso, um artifício de Memória, enquanto no segundo, uma memória artificial. A diferença significativa é que na arte da memória, ainda se guardam os princípios enunciados por Heidegger de uma Memória, essência do homem, e se elaboram técnicas para o pensar, com base em linguagem, imagem, tropos , figuras e esquemas, que não visam a mimese, mas as condições de possibilidade do pensar, do meditar. Enquanto na memória artificial, só interessa a codificação, o registro, o armazenamento, a ordenação, a classificação, a busca e a recuperação como instrumentos de dis-ponibilidade da memória para sua exploração.
Por memória artificial, na teoria da informação moderna, entende-se a forma de sua codificação para armazenamento e recuperação, assim como o suporte material, a mídia, onde podem-se inscrever os dados simbólicos como sequências de 0 e 1, de acordo com o código binário. Esta memória, seja como disco rígido, disquete, CD-ROM, etc., é o suplemento de memória dis-posto pela tecnologia da informação, para armazenamento daquilo que é representável de atos e fatos na Memória. Guarda assim uma analogia com aquilo que a escrita representou no passado remoto enquanto um suplemento [1].
Toda memória requer um suporte, uma mídia, e desde o passado mais remoto o homem buscou a forma ideal desta mídia, apesar da injunção de “esquecimento e perda de memória” que em Platão paira como uma ameaça à adoção de diferentes mídias, como suplementos da memória.
Desde o uso da voz e de gestos, como mídias baseadas na intimidade do próprio corpo, mas capazes de registrar e transmitir a memória individual ou comunal, até a mais completa externalização desta memória através da arte e da escrita, manifesta-se a necessidade de memorização e transmissão, ou em um único termo, a necessidade de “tradição”.
As mídias foram variadas segundo o “fazimento poético” até se alcançar a mídia padrão dis-posta no registro digital, onde voz, ou imagem, ou escrita são configuradas segundo uma única língua técnica. Na língua franca da informática o suplemento de memória é um traço já materializado e não apenas uma entidade formal. A lógica do suplemento é “tecno-lógica”.
Todo suplemento é técnica, é prótese, no sentido de “posto-lá-diante”, de “pro-posição ”, onde a técnica é o que nos é pro-posto, segundo um saber originário, uma mathesis que “nos pro-põe as coisas”. E toda técnica suplementar é um suporte de memória exteriorizando um programa, um hábito . Mas todo suplemento técnico não é por sua vez uma técnica de memorização.
Como afirma Stiegler (1994), se o homem também se define pela memória genética e pela memória epigenética, isto quer dizer que o processo de externalização e suplementação da memória, é uma ruptura que indica o advento de uma terceira memória, epifilogenética. Esta memória essencial ao humano, é técnica, inscrita no instrumental, que se torna transmissível e acumulável, constituindo uma tradição, um patrimônio, uma herança.
A epifilogênese, acumulação recapitulativa, dinâmica e morfogenética (filogênese) da experiência individual (epi), designa a aparição de uma nova relação entre o organismo e seu meio, que é também um novo estado da matéria: se o indivíduo é uma matéria orgânica e portanto organizada, sua relação ao meio (a matéria em geral, orgânica e inorgânica), quando se trata de um quem, é mediatizada por esta matéria organizada embora inorgânica que é o organon , o instrumento com seu papel instrutor (seu papel de instrumento), o que. É neste sentido que o que inventa o quem ao mesmo tempo em que é por ele inventado. (Stiegler, 1994, pág. 185)
Por outro lado, para Stiegler, o que antecipa, quer, pode, pensa e conhece, é o quem. O suplemento do quem, sua prótese, é seu que. O quem não é nada sem o que pois estão em relação transdutiva [2] no processo de exteriorização na vida. Há uma dinâmica do que, irredutível a do quem, na medida em que a lógica do suplemento é “tecno-lógica”, mas que depende da dinâmica do quem como poder de antecipação . Poder este que depende, por sua vez, do “já-aí” [3] do que lhe pro-põe seu passado não vivido. Na “negociação transdutiva dos termos, há co-individuação”.
Se a memória pode industrializar-se é porque é tecno-logicamente sintetizada, e esta síntese é originária, na co-invenção do “quem” e do “que”, na constituição do suplemento requerido diante da limitação , do esquecimento, da falta, que demanda um suporte, instrumento e meio de conservação e condições de elaboração.
Stiegler avança assim a questão do tempo apreendido a partir da questão “tecno-lógica”, da memória artificial registrada no instrumento, que é sempre uma herança no “já-aí”, imanente, portanto, ao ser-no-mundo. As estruturas epifilogenéticas tornam possíveis o “já-aí” e sua apropriação, em uma “maiêutica instrumental”. “O paradoxo da exteriorização nos fez dizer que o homem e o instrumento se inventam um ao outro, como uma maiêutica tecnológica” (Stiegler, 1994, pág. 183).
Resgatando também o pensamento de Leroi-Gourhan , Stiegler percorre esta memória em expansão, como verdadeira história da exteriorização da memória, que anuncia o quadro geral de uma história do suplemento do ponto de vista “tecno-lógico”. Por sua leitura do clássico de etnografia “A memória e os ritmos”, Stiegler reconhece os três níveis de memória (genética, epigenética e epifilogenética) como níveis programáticos, ou seja, como gramáticas. E vislumbra uma quarta memória advinda com a tecnologia da informação, enquanto engenho de representação, atuando como “suporte gramatical” de todas, e base da industrialização da memória.