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Da essência da informática
de Castro (SEI): sistema formal e programa de computador (algoritmos + dados)
Técnica e informática a partir do pensamento de M. Heidegger
quarta-feira 20 de outubro de 2021, por
DE CASTRO , Murilo Cardoso. Sobre a essência da informática. Técnica e Informática a partir do pensamento de M. Heidegger . Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 189. 2005. (revisado)
No século XIX surge a proposta de sistema formal, em contrapartida a essa busca de uma linguagem universal , reunindo em si propriedades gramaticais e semânticas. Uma vez eliminado todo apelo à intuição nas construções matemáticas, sendo estas então dissociadas da consistência lógica exigida pela verdade categórica, as chamadas “ciências matemáticas” paradoxalmente se engajam na via do rigor crescente (rigor mortis?). Substituem-se nas construções matemáticas as palavras da linguagem usual, por símbolos “virgens de sentido”, e, por conseguinte, suscetíveis de receber exata e exclusivamente aquele sentido que os axiomas lhes conferirem, segundo o sistema formal que os definiu.
A especificação das regras segundo as quais devem ser conduzidas as deduções válidas, constitui a etapa seguinte dessa formalização. Explicitadas, as regras de lógica se tornam por sua vez hipotéticas e convencionais, como os axiomas; levando a demonstração de um teorema em um sistema formal, a ter a aparência de uma transformação ordenada de configurações de símbolos, de manipulação de signos tipográficos, seguindo procedimentos exatamente definidos. A evidência dos encadeamentos lógicos não tem mais lugar na dedução, travestida em um estrito jogo formal.
Por uma volta inesperada, a demonstração sofre uma metamorfose e vira algoritmo cego mas eficaz, manipulação de símbolos em um plano virtual, abstrato e purificado, que distingue a Modernidade ocidental de qualquer outra. Como já apresentado, brevemente, estes sistemas têm certas propriedade importantes:
- primeiro, a semântica de um sistema formal concerne as interpretações concretas que dele se podem fazer; intrinsecamente desprovido de significado, o sistema formal se presta a por em evidência isomorfias estruturais entre domínios concretos aparentemente sem relações; ou seja, a mesma axiomática pode formalizar várias teorias ou modelos;
- a sintaxe de um sistema formal se relaciona unicamente a suas características internas; dentre as propriedades sintáxicas destacam-se a consistência (se o sistema não contém fórmulas que não possam ser derivadas de seus axiomas), a completude (se dada uma expressão bem formada do sistema, pode-se demonstrá-la como falsa ou verdadeira) e decidibilidade (na medida em que o sistema exige um método que possa distinguir entre proposições demonstráveis ou refutáveis, e outras).
Caberá ao matemático Gödel, em 1931, a responsabilidade por abalar definitivamente esta formalização progressiva, ao demonstrar que um sistema formal suficientemente poderoso para codificar a aritmética, não atenderia ao requisito de completude. Pondo um termo na ambição dos matemáticos formalistas de codificar a matemática (e até o mundo!), em sistemas formais dedutivos, perfeitamente coerentes.
Por outro lado, foi justamente abordando a questão da decidibilidade que Alan Turing elaborou o modelo de autômato universal, em seguida batizado de “máquina universal” ou de Turing. A perfeita definição de algoritmo que ele alcançou nesta tentativa, reforçou a demonstração de Gödel, ao mesmo tempo em que assentava as bases teóricas da informática, através da máquina universal, como já relatamos. Fato que o levou a participar ativamente da construção de protótipos de computador, na Inglaterra da década de 1940.
Na gênese de uma ordem dedutiva perfeita emerge o “algoritmo rigoroso”, que paradoxalmente faz seu ninho em um autômato cego, que privilegia o poder operatório, a velocidade, a instrumentalidade, ou como prefere Lyotard (1979) o “performativo”. Prevalece, cada vez mais, a visão utilitarista da matemática da contabilidade renascentista, da ciência do Estado - a estatística, e da filosofia analítica deste século.
As linguagens de programação da informática (o logiciel, como diriam os franceses), ao se conformarem com o algoritmo, realizam o sonho de Leibniz , de certo modo. Embora com restrições significativas, culminam este avanço em lógica matemática, na linha reducionista, que pretende substituir as incertezas da razão, pela infalibilidade do cálculo, do sistema formal e coerente de signos sobre o qual opera um conjunto de instruções, e que assim se apresenta como um programa.
O funcionamento da tecnologia da informação, sobre o equipamento que a sustenta, se dá pela execução dessa programação algorítmica e imperativa, isto é, dessa sequência de instruções elementares que são executadas sequencialmente. O elenco de instruções disponível é pequeno. É sua combinação em um programa que dá à tecnologia o poder de representar qualquer operação lógica da razão. De um modo geral, apenas cinco instruções são suficientes para a representação da razão: leitura/escritura de dados; armazenamento de dados na memória digital; atribuição de um valor , ou do resultado de um cálculo a um endereço de memória; decisão quanto a sequência de instruções a seguir, em função de uma condição; e repetição de uma série de instruções.
Em seu lado matériel (como diriam os franceses), a informática repousa sobre a descoberta que processos físicos podem ser exatamente isomorfos à operações lógicas. Este princípio, como mencionando anteriormente, teve uma formulação original em uma tese de doutoramento de 1938, defendida por Claude Shannon, o mesmo da teoria da informação. Nesta tese, Shannon demonstrava a analogia de estrutura entre o funcionamento de circuitos elétricos e a álgebra de Boole. A concepção de componentes lógicos e aritméticos dos computadores, segue ainda hoje os princípios fundamentais expostos por Shannon.
A proposta de uma máquina universal, assentada em termos de cálculo [1] e informação, oferece-se como o novo paradigma tecno-científico, pretensamente capaz de aportar respostas inovadoras a questões clássicas, do tipo: conhecimento, sabedoria , ser, teleologia, memória, percepção, cognição etc.
Estaria a essência da informática explicitando um dos segredos da história do pensamento ocidental, a forma oculta de seu ideal cientificista, o motor invisível de seu tecnicismo, o selo de sua potência industrial? Segundo Pierre Lévy (1987), ela estaria revelando a própria essência do que se chama Ocidente.
A informática é a expressão atual mais contundente da essência da técnica moderna, a Ge-stell, através de sua natureza imediata de representação da realidade através da lógica e do cálculo. Mas esta afirmação ainda requer um maior esclarecimento.
Tal esclarecimento supõe uma explicitação mais aprofundada do cálculo. Se o termo retorna frequentemente a partir dos anos quarenta, é no Princípio de razão que Heidegger se mostra o mais preciso quanto ao cálculo. Como muitas vezes, é o comentário de uma camada etimológica que produz a clareza desejável. Ratio significa a conta — e não somente a quantificação, mas o comportamento que conta sobre e com, que põe em ordem e dispõe segundo as coisas a fazer. É a dimensão pragmática do cálculo. No fundo desta, se abriga uma exigência de inteligibilidade. Não há por em ordem sem pressuposição do que é a coisa e, por conseguinte: “A conta que supõe presente uma coisa como tal coisa.” Ela a produz como base de conta, como “fundo” — a dimensão teorética do cálculo se manifesta no “perceber que toma em consideração ”, “vor-nehmen”. O cálculo se faz Razão — Vernunft. A produção do fundo regra este pela representação: eis o cálculo como objetivação. A modernidade manifesta e realiza a essência da técnica através da unidade das dimensões teorética e pragmática do cálculo na objetivação. (Milet, 2000, pág. 85-86)
O tratamento da informação, o processamento de dados, é o cálculo, que encerra em si o conceito de operação matemática, organizada e metódica, com vistas à produção de um resultado determinado. No entanto, é possível estender a definição de cálculo, além do conjunto de operações matemáticas, se forem consideradas outras espécies de operações organizadas e metódicas, tais como: selecionar, classificar, permutar, combinar, comparar, substituir, transcodificar etc.
O algoritmo apresenta-se, deste modo, como uma forma estendida do cálculo, ou seja, uma sequência finita (é preciso que atinja um resultado) e ordenada (convenientemente disposta para se atingir o resultado desejado) de operações (regras ou instruções), com vistas à resolução de uma determinada classe de problemas, de natureza informacional ou comunicacional. O algoritmo abre assim caminho para a noção de programação de computador, pois segundo um dos mestres da ciência da computação, Niklaus Wirth: “algoritmo + dados = programa de computador”.
No processo de informatização de um sistema-objeto [2], um dos objetivos iniciais é diante de uma problemática definida, identificar uma solução hipotética, incluindo os procedimentos informacionais e os dados a serem operados por estes procedimentos, de maneira a projetá-la, respectivamente, em algoritmos e em dados simbólicos, e, posteriormente, codificá-la em um programa com sua estrutura de dados associada, na língua técnica do computador.
Naturalmente, uma vez formalizado um programa, pela dissecação de um ato-fato humano, em seus dados simbólicos e no conjunto de operações sobre estes (o algoritmo), corre-se o risco de perda da percepção global do ato-fato original, em si mesmo . O rigor da descrição formal passa, por sua vez, a ser doravante a referência e a explicação do dito ato-fato.
Deste modo, o ato-fato original, enquanto ente , submete-se à lógica puramente operatória, perdendo eventuais polos de significação. Um programa de computador pretende ser uma equação ótima combinando algoritmo(s) com estrutura(s) de dados simbólicos, dentro do computador, visando à consecução de tarefas, que traduzem a visão do ato-fato humano como um problema de natureza informacional.
Fatos sob a forma de estruturas de dados simbólicos e algoritmos como fórmulas operativas sobre estas estruturas, são por si mesmos sem significado. Para que o engenho de representação mimetize aproximadamente o que Heidegger denomina “ocupação”, cabe ao homem que o opera dar alguma relevância a esta construção algoritmos-dados. Mas os predicados que devem ser adicionados para registrar esta relevância junto à construção artificial são apenas mais algoritmos-dados sem significado; e paradoxalmente, quanto mais fatos, sob esta configuração são adicionados ao engenho, mais distante de uma “ocupação” se situa a interação homem e engenho [3].
Ver online : O que é informática e sua essência. Pensando a "questão da informática" com M. Heidegger
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1954/2002
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tr. Márcia Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2015
LÉVY, Pierre. La Machine Univers. Paris: La Découverte, 1987
LYOTARD, Jean-François. La Condition Postmoderne. Paris: Minuit, 1979
MILET, Jean-Philippe. L’Absolu Technique. Heidegger et la question de la technique. Paris: Editions Kimé, 2000
[1] Como esse cálculo rege pura e simplesmente, parece que perto da vontade nada mais há do que o mero asseguramento da pulsão de calcular. Essa pulsão constitui a primeira regra de cálculo para o cálculo de tudo. (Heidegger, 1954/2002, pág. 82)
[2] O sistema-objeto deve ser entendido como a leitura, já sob a perspectiva do método informacional-comunicacional, de um recorte arbitrado sobre a realidade dos atos-fatos humanos. De modo que nele, sob o ângulo da informática, estão realçados os problemas a serem processados, após uma tradução segundo a língua técnica do computador, sob a forma de tarefas homens-máquinas, estruturas de dados simbólicos e fluxos de dados, de acordo com uma sistematização, uma ordenação lógica.
[3] Pode-se apreender formalmente o conceito referencial que constitui o mundo como significância no sentido de um sistema de relações. Deve-se, porém, observar que tais formalizações nivelam de tal modo os fenômenos que, em remissões tão “simples” como as que a significância abriga, perdem o conteúdo propriamente fenomenal. Essas “relações” e “relatas” do ser-para, do ser em virtude de, do estar com de uma conjuntura, em seu conteúdo fenomenal, resistem a toda funcionalização matemática; também não são algo pensado, posto pela primeira vez pelo pensamento, mas remissões em que a circunvisão da ocupação sempre se detém como tal. Esse “sistema de relações” constitutivo da mundanidade dissolve tão pouco o ser do manual intramundano que, na verdade, é só com base na mundanidade do mundo que ele pode descobrir-se em seu “em-si substancial”. E somente quando o ente intramundano em geral puder vir ao encontro é que subsiste a possibilidade de se tornar acessível o que, no âmbito deste ente, é simplesmente dado. Com base neste ser simplesmente dado é que se podem determinar matematicamente “propriedades” desses entes em “conceitos de funções”. Conceitos de função dessa espécie só se tornam ontologicamente possíveis remetendo-se a um ente cujo ser possui o caráter de pura substancialidade. Conceitos de função não são outra coisa do que conceitos formalizados de substância. (Heidegger, 2015, pág. 139)