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Da essência da informática

de Castro (SEI): cibernética – caixa-preta ou autômato-natural (homem racional?)

Técnica e informática a partir do pensamento de M. Heidegger

quarta-feira 20 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

      

DE CASTRO  , Murilo Cardoso. Sobre a essência da informática. Técnica e Informática a partir do pensamento   de M. Heidegger  . Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 189. 2005. (revisado)

      

O movimento   da Cibernética foi marcado pelo selo da lógica matemática desde sua origem. Seu principal pensador, Norbert Wiener  , tendo estudado em Cambridge com Russell  , afirmava categoricamente que o mesmo impulso intelectual que levou ao desenvolvimento da lógica matemática, conduzia ao mesmo tempo à mecanização ideal ou real dos processos do pensamento  . Da mesma forma, é possível identificar nos demais fundadores do movimento, a primazia de uma visão do mundo centrada na lógica matemática, seja em suas formações ou em suas posições a partir da constituição do movimento.

Fundamentados na lógica-matemática, todos esses pioneiros teóricos da informática militavam dentro de um enfoque que buscava reconhecer   no ser humano   e nas coisas, uma espécie de “ente   informacional”, como já denominado anteriormente. Ou seja, esperavam descobrir um ente de natureza informacional, transparente e racional, que se destacaria de um fundo de ruído (“diabólico”, segundo Wiener).

Este modelo informacional, sobressai particularmente no pensamento de Norbert Wiener, que se empenha em operar uma separação   bem nítida entre a dimensão informacional, única essencial para ele, e os suportes materiais, secundários e sem importância. Wiener chega mesmo a imaginar e propor, já nesta época, que este modelo poderia se “materializar” em uma máquina computacional, e até mesmo ser transmitido como uma mensagem entre máquinas (Breton, 1995).

Os caminhos da lógica e da teoria   da informação se entrecruzam antes mesmo de suas formalizações modernas, quando então se interligam ainda mais, através dos conceitos de operação e de codificação. Com efeito, após Leibniz  , e mais intensamente ainda após Frege, a lógica começa a se aprisionar dentro de uma visão que prima pela otimização da codificação, e que tende a produzir uma linguagem monos  êmica, instrumento ideal para informatização.

Quanto ao conceito de “operação”, deve-se partir da assertiva de Shannon, de que informação é aquilo que permanece invariante sob todas as codificações ou traduções que podem ser aplicadas às mensagens produzidas por processos. Ou seja, dado um tradutor que opera sobre uma mensagem, se a tradução é reversível, sua saída contém a mesma informação que a sua entrada. A informação é, portanto, o que permanece invariante por uma série de operações reversíveis. Deste modo, a comunicação passa a ser um caso particular do cálculo: uma série de operações cujo sentido pode ser invertido de tal forma que os dados iniciais possam ser reencontrados.

Como foi dito, a lógica matemática foi revitalizada por uma associação à teoria dos autômatos, pela Cibernética e pela Teoria da Informação. Wiener afirmava que a ciência de hoje é operacional, ou seja que ela considera cada proposição como essencialmente referente às experiências possíveis ou aos processos observáveis. Desta maneira, o estudo da lógica deve reduzir-se ao estudo da máquina lógica.

A cibernética fixa três conceitos fundadores de sua aplicação: sistema, feedback (retro-alimentação) e informação codificada. O conceito de sistema como uma caixa-preta que admite entradas dando em resposta  , saídas. Entradas e saídas como mensagens codificadas, em uma linguagem reduzida que a caixa—preta “entende”. A retro-alimentação, por sua vez, é que garante o controle do processamento das mensagens em saídas, introduzindo mais uma informação no sistema, o seu estado   a cada instante  .

O já citado artigo de Wiener de 1943, fundador da Cibernética, é exemplar   a este respeito, ao adotar uma leitura dos fenômenos, como “caixas-pretas”, onde se privilegia a lógica do fenômeno  , passível de se depreender a partir de uma análise da estrutura   de comportamento   expressa no próprio fenômeno; de sua funcionalidade, refletida nas relações entre entradas e saídas. A essência de um fenômeno qualquer seria, portanto, a organização dos cálculos entre informação aferente e informação eferente.

Seja como caixa-preta, da qual interessa representar a operação da razão e da memória que “sinalizam” as entradas e saídas de seu fazer, seja como um autômato natural  , no qual neurônios cerebrais “comportam-se” como circuitos eletro-eletrônicos em uma máquina, está em jogo   uma imagem de homem, animal   racional [1].

Esta imagem do homem como animal racional é várias vezes criticada por Heidegger   como uma visão moderna da razão, ligada ao triunfo de um fenômeno paradoxal, denominado por Zimmerman   (1990) “humanismo naturalista”. O paradoxo está justamente no reconhecimento do homem como um animal, idêntico a qualquer outro na Terra  , e ao mesmo tempo distinto de qualquer outro, por ser dotado de razão. Uma racionalidade que lhe daria o direito de definir  , julgar e usar coisas do modo que bem entender.

Este humanismo naturalista simboliza para Heidegger a auto-elevação do homem à situação de sujeito   de uma empreitada para ser “mestre e senhor da Natureza”. No fundo, seria a resposta moderna e equivocada ao princípio aristotélico do “animal racional”, que atravessa o pensamento de gerações sucessivas, desde o início da metafísica ocidental até a total degeneração do logos   grego, enquanto “ser capaz” de reunir   e distinguir todas as coisas, em uma “racionalidade instrumental”, onde o logos é apenas um instrumento humano; e sendo assim, pode ter sua mimese perfeita e mais rápida em uma “tecnologia da inteligência”, como Lévy   (1990) denomina a tecnologia da informação.

A revolução cibernética, associada ao advento   da informática, é um sinal de que o logos condicionou-se à “matematização da natureza” [2], à “logicização da razão” pela logística [3] e à “industrialização da memória” [4]. Prevaleceu o “princípio de razão”, que não visa o excesso   do ser, sua simplicidade, mas a possibilidade de reduzi-lo a uma identidade   conceitual, intercambiável, permitindo produzir uma antecipação do devir e exercer retro-especulação (feedback) como guia   deste devir. Isto é a cibernética.


Ver online : O que é informática e sua essência. Pensando a "questão da informática" com M. Heidegger


BRETON, Philippe. À l’image de l’homme. Du Golem aux créatures virtuelles. Paris: Seuil, 1995

DUPUY, Jean-Pierre. Nas Origens das Ciências Cognitivas. São Paulo: UNESP, 1995

HEIDEGGER, Martin. Qu’appelle-t-on penser ? Trad. Gérard Granel. Paris: PUF, 1954/1959

HEIDEGGER, Martin. Que é uma coisa ?. Trad. Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 1987/1992

LÉVY, Pierre. Les Technologies de L’Intelligence. Paris: La Découverte, 1990

PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Edições Rolim, 1988

ZIMMERMAN, Michael E.. Heidegger’s Confrontation with Modernity. Technology, Politics, Art. Bloomington: Indiana University Press, 1990


[1Vale lembrar aqui o poeta Fernando Pessoa: “O homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância que nele nasce.” (Pessoa, 1988, pág. 18)

[2Com as três referidas caracterizações da ciência moderna - ciência de factos, ser experimental e ciência que mede — não encontramos o traço fundamental da nova posição do saber. O traço fundamental deve residir naquilo que, fornecendo-lhe a medida, determina completamente, de um modo igualmente originário, o movimento-de-fundo da ciência enquanto tal: trata-se da relação-de-trabalho com as coisas e do projecto metafísico da coisalidade da coisa. De que modo devemos conceber este traço fundamental?

Atribuímos um nome ao carácter-de-fundo, que procuramos, da moderna atitude do saber, ao dizermos que a nova pretensão do saber é matemática. É de Kant a seguinte afirmação, muitas vezes citada, mas menos vezes compreendida: «Mas eu digo que, em cada teoria particular acerca da natureza, só se pode encontrar uma autêntica ciência, na medida em que se encontrar nela a matemática.» (Prefácio a Primeiros princípios metafísicos da ciência da natureza). (Heidegger, 1987/1992, pág. 74-75)

[3O pensar sobre o pensar se desenvolve no ocidente como lógica. Esta recolheu conhecimentos particulares sobre uma maneira particular de pensar. Apenas recentemente que se fez frutificar cientificamente estes conhecimentos da lógica, e isto em uma ciência particular que se denomina “logística”. Ela é a mais especial de todas as ciências especiais. A logística é tomada atualmente em vários lugares, antes de mais nada nos países anglo-saxões, como única forma possível de filosofia estrita, porque seus resultados e seus métodos guardam uma relação segura e imediata com a construção do mundo técnico. (Heidegger, 1954/1959, pág. 33-34)

[4O pensamento é um reconhecimento? Mas que quer dizer aqui “reconhecimento”? Ou bem o reconhecimento repousa no pensamento? Mas o que quer dizer aqui “pensamento”? A memória não é um reservatório para aquilo que pensou o pensamento, ou bem o pensamento repousa ele mesmo na memória? Qual a relação entre reconhecimento e memória? Colocando estas questões nós nos movemos no espaço daquilo que acede à linguagem no verbo “pensar” e que aflora nele. (...) O “Gedanc” equivale quase à alma (Gemüt). “muot” — o coração. Pensar, no sentido da palavra inicialmente falante, aquele do “Gedanc”, é quase ainda mais original que este pensar do coração que Pascal, séculos mais tarde, já como contragolpe ao pensar matemático, buscou reconquistar.

O pensar, compreendido no sentido de “representações” lógicas e racionais, se revela, em relação ao “Gedanc” inicial, como uma restringência e um empobrecimento da palavra de tal ordem que mal se pode imaginar a grandeza. (Heidegger, 1954/1959, pág. 146)