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Giacóia (2021:9-10) – consciência moral (Gewissen)

segunda-feira 26 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

A Psicologia do ressentimento é um dos temas mais instigantes da filosofia madura de Nietzsche  ; situa-se no centro de sua Genealogia da Moral (GM) e é, por certo, amplamente considerado pela fortuna crítica. Um percurso pelo fértil campo de questões que o cerca exige a explicitação prévia do conceito de Gewissen (consciência moral), cuja derivação genealógica constitui um dos pontos nevrálgicos de Para a Genealogia da Moral (Zur Genealogie der Moral, doravante GM). Opto pela tradução do termo Gewissen pelo sintagma consciência moral, e não por consciência unicamente, como também costuma ser traduzido em português. O substantivo Gewissen é derivada do antigo alto alemão (Hochdeutsch): gewizzani, gewizzenique, idioma para o qual verte — com apoio no termo latino ‘conscientia’ — o equivalente grego συνειδησις. De acordo com o Dicionário Histórico da Filosofia, editado por Joachim Ritter, o termo extrai seu significado originário de um tipo especial de saber inscrito no campo da moralidade, e a palavra parece ter sido introduzida no léxico alemão pelo erudito beneditino Notker Labeo ou Notker Teutonicus (950-1022), por meio de uma glosa do Salmo   68, 20: “Tu conheces o meu insulto, minha vergonha e minha confusão. Meus opressores estão todos à tua frente”.

Nesse contexto, o significado de ‘Tu conheces’ foi essencialmente determinado pelo termo grego συνειδησις, denotando um ‘saber juntamente comigo’, a modo de uma testemunha (ou uma dimensão da consciência), que acompanha o comportamento do agente. Entre os gregos, a raiz linguística de συνειδησις (συ) encontra-se em συνειδέναι τινί, e significa, então, ‘saber com’ (em alemão: «mitwissen»), um compartilhamento de saber acerca da própria ação, ou da ação de outrem, mas principalmente da própria, que nasce de uma vivência compartilhada, de que se conhece com certeza (gewiss: certo, mas com decisivo apoio em wissen: saber) o seu valor moral — um valor predominantemente negativo. É desse modo que o termo figura, “já na mais antiga ocorrência de συνειδησις em geral, em Demócrito, que fala de consciência, por algumas pessoas, de seu mau modo de vida. Pelo que elas, ao mesmo tempo, são afligidas, angustiadas e oprimidas por isso. (ἐν χαραχαῖς καὶ φόβοις ταλαιπωρέουσι) [1]. (Cf. Ritter; s.d., Vol. 3, p. 574-576). [9]

Gewissen (consciência moral) designa, pois, a instância psíquica da consciência ético-religiosa, o fulcro da moralidade humana. Stricto sensu, o termo denota o fenômeno da auto-censura, o constrangedor sofrimento moral, brotado em seguida à prática de uma ação contrária ao dever — e manifesta-se no célebre morsus conscientiae, a mordida da consciência (remorso) ou má consciência (schlechtes Gewissen), que em português tem o sentido de consciência pesada, peso de consciência. Na Europa, esse conceito de consciência moral foi primeiramente desenvolvido entre os gregos, como mencionado anteriormente, com apoio na representação, segundo a qual para todo e qualquer mau comportamento, em relação aos deuses ou aos homens, há sempre uma testemunha, uma dimensão interna de saber e certeza acerca do censurável e do louvável, do certo e do errado, do bem e do mal.

O conceito de consciência moral adquiriu, daí em diante, uma profundidade e significação muito mais ampla e aprofundada na ética cristã, mormente no seio da filosofia medieval, em que se consolida o matiz de sentido que aproxima estreitamente consciência moral, pela via do remorsus e arrependimento, à consciência do pecado, à aflitiva convicção de ter transgredido um mandamento. Nessa acepção, a consciência moral está relacionada ao julgamento (moral) das próprias ações, ao sentimento que daí resulta, à consciência da necessidade de uma incondicional obediência ao dever, indicando ser louvável toda ação que se deseja empreender em cumprimento deste comando.

Na filosofia contemporânea, este é o sentido predominante do termo, que recebe tratamento conceitual paradigmático na filosofia prática de Immanuel Kant  ; para Kant, dever é a necessidade de uma ação a ser praticada mediante a representação da lei moral, sendo essa um comando que tem a forma de imperativo categórico.


Ver online : Oswaldo Giacóia Jr.


GIACÓIA Jr., Oswaldo. Ressentimento e Vontade. Para uma Fisio-Psicologia do Ressentimento em Nietzsche. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021


[1Cf. Historisches Wörterbuch der Philosophie. HWPh. Verbete Gewissen. Vol. 3, p. 574-576.