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Suzuki (DZNM:65-67) – estado de não-mente (wu-hsin)

quarta-feira 23 de agosto de 2023, por Cardoso de Castro

      

A esta altura do diálogo   entre Hui-chung e seu discípulo Lin-chiao, podemos ter uma ideia do significado de termos como wu-hsin  , wu-nien, wu, kutig e wang, frequentemente encontrados na literatura zen e que constituem a ideia central, expressa de forma negativa, da filosofia zen. As expressões “no-mind  -ness” [estado de não-mente  ] “no-thought-ness” [estado de não-pensamento] (ou de ausência de pensamento), “no-ness” [estado-de-não], “emptiness” [Vazio] e “forgetting” [esquecimento  ], tal como são usadas pelos mestres zen chineses, são termos estranhos à língua portuguesa. Elas parecem incorretas e, sob vários aspectos, completamente ininteligíveis; e foi isso justamente o que aconteceu com o discípulo chinês de Hui-chung, que achou muito difícil compreender o que seu mestre queria dizer. Na verdade, é preciso passar pela experiência para penetrar o espírito do mestre; então, a compreensão virá por si. Seja como for, todos esses termos negativos tentam mostrar a concepção do Inconsciente — não no sentido psicológico, mas no mais profundo sentido metafísico. Embora sejam meras negações, têm um significado positivo e por isso identificam-se com o Estado de Buda  , a Natureza de Buda, a Natureza-própria, o Ser  -em-si, a Quididade, a Realidade, etc.

Enquanto se permanecer no Inconsciente, não ocorre o despertar   do Prajna  . Temos o Corpo, mas não o Uso. E enquanto não se tem o Uso, não ocorre o “ver dentro da natureza-própria”, e todos voltamos literalmente a uma tranquilidade   estática de matéria inorgânica. Hui-neyig opôs-se firmemente a essa concepção do Dhyana  ; daí a sua filosofia do Prajna »o lema do Zen-budismo: “ver dentro de sua natureza-própria é tornar-se Buda”.

Essa ideia de ver dentro de sua natureza-própria ou do seu ser-em-si foi a maior contribuição que Hui-neng   fez para o estudo do Zen. Antes dele, a ideia do Zen consistia em contemplar a serenidade e a pureza   interior, o que levava ao quietismo ou à mera tranquilização. Issp já foi exposto antes, mas citarei mais uma passagem referente ao assunto, com o fito de tomar mais claro o significado da noção de Hui-neng acerca do ver dentro de sua natureza-própria.

Um monge   perguntou a Chih, de Yun-chu, no século VIII: — O que significa ver dentro de sua natureza-própria e tomar-se um Buda?
 
Chih: — Essa natureza é desde o princípio pura e incorrupta, serena e imperturbável. Não pertence às categorias   da dualidade  , tais como ser e não-ser, puro e impuro, longo e curto, dar e receber  ; o corpo permanece na sua Quididade. Penetrar nisto com uma clara visão interior é compreender a sua natureza-própria; a natureza-própria é o Buda e o Buda é a natureza-própria. Portanto, ver dentro da sua natureza-própria é tornar-se um Buda.
 
Monge: — Se a natureza-própria é pura e não se classifica em qualquer categoria de dualidade, tais como ser e não-ser, etc., onde ocorre essa visão?
 
Chih: — Existe o fato de ver, mas nada é visto.
 
Monge: — Se nada é visto, como podemos dizer então que existe uma visão?
 
Chih: — De fato, não há sinal algum de visão.
 
Monge: — De quem é a visão, nesse ato de ver?
 
Chih: — Também não existe sujeito   que vé.
 
Monge: — No final das contas, onde ficamos?
 
Chih: — Uma discriminação errônea faz-nos conceber a ideia de um ser e por isso a separação   entre sujeito e objeto. Trata-se de uma visão confusa, pois desse ponto de vista a pessoa se encontra envolvida em complexidades e cai na órbita do nascimento e da morte. Os que possuem uma visão interior mais clara não são desse tipo. O ato de ver pode ser praticado o dia inteiro e no entanto eles nada veem. Pode-se procurar neles vestígios da visão, mas nada, nem do Corpo nem do Uso, se descobrirá nele. A dualidade sujeito-objeto desapareceu — e a isso se chama ver dentro da natureza-própria.

Evidentemente, essa visão da natureza-própria não é uma visão comum, onde existe a dualidade do sujeito que vê e do objeto que é visto. Nem é um ato especial de ver, que, no entendimento comum, acontece num determinado momento e num determinado lugar. No entanto, existe o fato de ver, que é algo incontestável. Como pode ocorrer tal fato neste mundo de dualidades? Enquanto nos apegarmos (como se diz na linguagem budista) a esta maneira de pensar, nunca nos será possível compreender a experiência zen de ver dentro da natureza-própria. Para compreendê-la, é necessário passar pela experiência e ao mesmo tempo haver uma lógica ou uma dialética — seja o termo qual for — especialmente construída, a fim de dar à experiência uma interpretação racional ou irracional. O fato acontece primeiro, em seguida vem a intelecção. No diálogo reproduzido acima, Chih de Yun-chu fez o que pôde para expressar a sua ideia de ver segundo o modo de pensar da época. Essa expressão pode não satisfazer a nossa atual necessidade   de lógica, mas isso nada tem a ver com o fato em si.


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