Graças a seus momentos noéticos, todo vivido intencional é justamente vivido noético; é da essência dele guardar em si algo como um “sentido” e, eventualmente, um sentido múltiplo, é de sua essência efetuar, com base nessas doações de sentido e junto com elas, outras operações que se tornam justamente “plenas de sentido” por intermédio delas. São exemplos de tais momentos noéticos: os direcionamentos do olhar do eu puro para o objeto “visado” por ele em virtude da doação de sentido, para aquele objeto que “não lhe sai do sentido”; [1] a apreensão e conservação desse objeto, enquanto o olhar se dirige para outros objetos que entram no “visado”; as operações de explicitar, relacionar, abarcar, e de diversas tomadas de posição como crer, supor, valorar etc. Tudo isso pode ser encontrado nos respectivos vividos, mesmo que sejam construídos de modo diferente e sejam em si variáveis. Conquanto essa série de momentos exemplares aponte para componentes reais dos vividos, ela também aponta para componentes não-reais, a saber, mediante aquilo que se encontra sob a designação de “sentido”.
Aos múltiplos dados do conteúdo real , noético, corresponde uma multiplicidade de dados, mostráveis em intuição pura efetiva, num “conteúdo noemático” correlativo ou, resumidamente, no unoema” — termos que usaremos constantemente a partir de agora.
[204] A percepção, por exemplo, tem o seu noema , tem, no nível mais baixo, o seu sentido perceptivo, [2] isto é, o percebido como tal. Da mesma maneirai cada recordação tem o seu recordado como tal, justamente como seu, precisamente como aquilo que nela é “visado”, aquilo de que nela se é “consciente”; o julgar tem, por sua vez, o julgado enquanto tal, o prazer, aquilo que apraz enquanto tal etc. Em tudo é preciso tomar o correlato noemátíco, que aqui se chama “sentido” (em significação bem ampliada), exatamente assim como ele está contido de maneira “imanente” no vivido de percepção, de julgamento , de prazer etc., isto é, tal como nos é oferecido por ele, se interrogamos puramente esse vivido mesmo.
A maneira como entendemos tudo isso será trazida à plena clareza mediante uma análise exemplar (que pretendemos efetuar em intuição pura).
Suponhamos que estejamos olhando com satisfação para uma macieira em flor num jardim, para o gramado com seu verde vicejante etc. Manifestamente, a percepção e a satisfação que a acompanha não são o imediatamente percebido e aprazível. Na orientação natural, a macieira é para nós um existente na efetividade espacial transcendente, e a percepção, assim como a satisfação, um estado psíquico pertencente a nós homens reais. Entre um real e outro, entre o homem real ou percepção real e a macieira real, subsistem relações reais. Em certos casos, se diz o seguinte acerca de tal situação de vivido: a percepção é “mera alucinação”, o percebido, essa macieira que está diante de nós não existe na realidade “efetiva”. A relação real antes visada como subsistindo realmente é agora interrompida. Resta apenas a percepção, não existindo nada de efetivo ali ao qual ela se refira.
Passemos agora à orientação fenomenológica. O mundo transcendente ganha seus “parênteses”, praticamos epoche em relação a seu ser efetivo. Perguntamos então o que se deve encontrar por essência no complexo de vividos noéticos daquela percepção e daquela apreciação prazerosa. A subsistência efetiva da relação real entre percepção e percebido é posta fora de circuito, junto com todo o mundo físico e psíquico; e, no entanto, resta manifestamente uma relação entre percepção e percebido (assim como entre prazer e aquilo que apraz), uma relação que entra na condição de dado eidético em “pura imanência ”, a saber, puramente com base no vivido de percepção e de prazer fenomenologicamente reduzido, tal como se insere no [205] fluxo transcendental de vividos. É justamente essa situação, a situação fenomenológica pura, que agora deve nos ocupar. Pode ser que a fenomenologia tenha algo, e talvez muito, a dizer a respeito das alucinações, das ilusões e, em geral, das percepções enganosas: é evidente , porém, que, assumindo o papel que desempenham na orientação natural, estas estão sujeitas à exclusão fenomenológica de circuito. Aqui nós não temos de interrogar a percepção, nem tampouco uma progressão qualquer do encadeamento perceptivo (como se considerássemos ambulando [3] a árvore em flor) com questões do tipo: há algo “na” efetividade que lhe corresponda? Essa efetividade tética não existe judicativamente para nós. Todavia, tudo permanece, por assim dizer, como antes. Também o vivido perceptivo fenomenologicamente reduzido é percepção desta “macieira em flor, neste jardim etc.”, e a satisfação fenomenologicamente reduzida é igualmente satisfação com eles mesmos. A árvore não sofreu a mais leve nuance em nenhum de seus momentos, qualidades, caracteres, com os quais ela aparecia naquela percepção, com os quais era “bela”, “estimulante” “naquela” satisfação etc.