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A arete como possibilidade extrema do humano

Caeiro (Arete:§26) –A «eternidade» aparente do instante patológico

Fenomenologia da práxis em Platão e Aristóteles

domingo 18 de setembro de 2022, por Cardoso de Castro

      

Os fenômenos patológicos exercem o seu domínio sobre nós, não nos deixando medir as suas consequências. Da mesma forma que a adversidade   que se abate sobre nós e nos deita por terra  , trazendo dificuldade   e impedimento  , dando-nos a impressão   da sua absoluta inanulabilidade, se pode metamorfosear, dando lugar a uma abertura   e a uma nova clareira no futuro, a uma nova possibilidade de vida, assim também o prazer (ἡδονή), experimentado habitualmente como algo de bom, se pode transformar catastroficamente ao ponto de ser vivido como a origem   de uma forma de abatimento e impedimento à nossa manutenção numa boa disposição  . Tanto o prazer (ἡδονή) como a depressão (λύπη  ) podem dar origem a transformações no que lhes é aparentemente contrário [1]. É delas que depende a nossa existência e a qualidade   de cada instante   que se constitui na nossa vida.

Procura-se assim a possibilidade de constituição de um ponto de vista que tenha no seu horizonte   a «conservação da existência» [2]. Um tal objectivo só é conseguido através de uma anulação da potência do fenômeno   (δύναμις   τοῦ φαινομένου) e simultaneamente da aquisição de um ponto de vista que corrige e permite ver de uma forma adequada tudo quanto nos surge no horizonte. Um tal ponto de vista é interpretado como um olhar técnico. Uma tal perícia (τέχνη) tem a função primeira de desautorizar a compreensão tácita de que toda a afetação que se constitui num qualquer momento do presente   vivo — que, portanto, subsiste na intimidade e na proximidade absolutas do agora — detenha o sentido e determine o peso da existência. Só essa anulação e essa desautorização do vigor fenoménico do momento presente podem pôr a descoberto e desocultar a qualidade de vida em que se desenvolverá um determinado instante.

Em que medida, então, é que nós falamos daquelas coisas que nos dão prazer como sendo nocivas? [Prot., 357c9] O que é nocivo não é o prazer que elas dão momentaneamente nem o que há de agradável em cada uma destas afetações [Prot., 357d1-2], mas antes o que traz o tempo no instante seguinte [Prot., 357d2-4]. A forma da afetação dura um momento que é vivido como o que ficará para sempre. O que se lhe segue, porém, são consequências que metamorfoseiam o prazer (ἡδονή) em depressão (λύπη), uma depressão (λύπη) que é sentida em virtude da «perversidade» (κακία) do prazer sentido. A seguir ao prazer experimentado, produzem-se «doenças, pobrezas e coisas deste gênero  » [Prot., 357d3].

No seio do fenômeno da afetação há uma distinção a estabelecer-se entre o que se constitui «segundo a actividade do instante» e o que se gera «depois» [3]. Esta distinção não está baseada apenas num critério temporal ou cronológico, como se o prazer durasse apenas durante um instante, e o tempo que lhe segue durasse muito tempo. A diferença de quantidade de tempo não é nenhum critério à luz do qual se pode determinar se o prazer (ἡδονή) é pernicioso   (πονηρά) ou não. A diferenciação de que se fez menção enraíza na própria estrutura   fenoménica do sentido (πάθος  ) e, assim, constitui também as diferenças específicas de depressão (λύπη) e de prazer (ἡδονή) [4].


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[1Não nos podemos esquecer que estamos na esfera da patologia: o sofrimento é só um outro extremo em que o pathos se pode transformar. Ou seja, a camada que está a articular o sentido é sempre a patológica. Por isso é que pode tomar-se em prazer ou em sofrimento.

[2C. C. W. Taylor, Plato Protagoras. Translated with Notes, Clarendon Plato Series, General Editor: M. J. Woods, Clarendon Press, Oxford, 1976 (1989): «the preservation of our life». A tradução de Schleiermacher é «das Heil des Lebens». Por mais que seja indeterminado o que se possa entender por esta expressão, nós percebemos que não vai ser, obviamente, a partir da ἀριθμητικὴ τέχνη que passamos a saber de que é que se trata. A escolha do número par ou ímpar, de um número grande ou pequeno, próximo ou distante, não contribui nem de perto nem de longe para a σωτηρία τοῦ βιοῦ. O campo de aplicação desta ἐπιστήμη são números e quantidades. O máximo que ela pode fazer é anular a potência da aparência com que as coisas no mundo fenoménico dado objectivamente aí nos surgem e assim calcular de fato a verdadeira dimensão de qualquer coisa, o que de outra forma não poderia ser feito.

[3O que constitui a κακία da ἡδονή não é o seu efeito momentâneo, mas o que se constitui a seguir (Prot., 353d7).

[4A ἡδονή é, tal como toda a afetação, constituída no tempo de um instante, um instante que não nos permite antecipar o tempo que lhe segue [εἰς τὸν ὕστερον χρόνον (Prot 353d1), τίχ ὕστερον γιγνόμενα (Prot., 353e1)]. Mas ο παραχρήμα não é experimentado como παραῆρμα. A ἡδονή é vivida como se fosse a única presença a ser sentida agora e no resto da nossa vida, como se a qualidade desse instante se sobrepusesse a todos os instantes que há para viver. O que faz ver a qualidade «instantânea» do πάθος é a sua transformação catastrófica numa afetação patológica de sentido contrário ao que esteve presente a fazer vida, como é o caso da transformação da ἡδονή em λύπη, que é o que acontece quando o que está a dar sentido à ἡδονή é πονηρία.