Os fenômenos patológicos exercem o seu domínio sobre nós, não nos deixando medir as suas consequências. Da mesma forma que a adversidade que se abate sobre nós e nos deita por terra , trazendo dificuldade e impedimento , dando-nos a impressão da sua absoluta inanulabilidade, se pode metamorfosear, dando lugar a uma abertura e a uma nova clareira no futuro, a uma nova possibilidade de vida, assim também o prazer (ἡδονή), experimentado habitualmente como algo de bom, se pode transformar catastroficamente ao ponto de ser vivido como a origem de uma forma de abatimento e impedimento à nossa manutenção numa boa disposição . Tanto o prazer (ἡδονή) como a depressão (λύπη ) podem dar origem a transformações no que lhes é aparentemente contrário [1]. É delas que depende a nossa existência e a qualidade de cada instante que se constitui na nossa vida.
Procura-se assim a possibilidade de constituição de um ponto de vista que tenha no seu horizonte a «conservação da existência» [2]. Um tal objectivo só é conseguido através de uma anulação da potência do fenômeno (δύναμις τοῦ φαινομένου) e simultaneamente da aquisição de um ponto de vista que corrige e permite ver de uma forma adequada tudo quanto nos surge no horizonte. Um tal ponto de vista é interpretado como um olhar técnico. Uma tal perícia (τέχνη) tem a função primeira de desautorizar a compreensão tácita de que toda a afetação que se constitui num qualquer momento do presente vivo — que, portanto, subsiste na intimidade e na proximidade absolutas do agora — detenha o sentido e determine o peso da existência. Só essa anulação e essa desautorização do vigor fenoménico do momento presente podem pôr a descoberto e desocultar a qualidade de vida em que se desenvolverá um determinado instante.
Em que medida, então, é que nós falamos daquelas coisas que nos dão prazer como sendo nocivas? [Prot., 357c9] O que é nocivo não é o prazer que elas dão momentaneamente nem o que há de agradável em cada uma destas afetações [Prot., 357d1-2], mas antes o que traz o tempo no instante seguinte [Prot., 357d2-4]. A forma da afetação dura um momento que é vivido como o que ficará para sempre. O que se lhe segue, porém, são consequências que metamorfoseiam o prazer (ἡδονή) em depressão (λύπη), uma depressão (λύπη) que é sentida em virtude da «perversidade» (κακία) do prazer sentido. A seguir ao prazer experimentado, produzem-se «doenças, pobrezas e coisas deste gênero » [Prot., 357d3].
No seio do fenômeno da afetação há uma distinção a estabelecer-se entre o que se constitui «segundo a actividade do instante» e o que se gera «depois» [3]. Esta distinção não está baseada apenas num critério temporal ou cronológico, como se o prazer durasse apenas durante um instante, e o tempo que lhe segue durasse muito tempo. A diferença de quantidade de tempo não é nenhum critério à luz do qual se pode determinar se o prazer (ἡδονή) é pernicioso (πονηρά) ou não. A diferenciação de que se fez menção enraíza na própria estrutura fenoménica do sentido (πάθος ) e, assim, constitui também as diferenças específicas de depressão (λύπη) e de prazer (ἡδονή) [4].