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Schopenhauer (MVR1:361-365) – o presente

quarta-feira 22 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Antes de tudo temos de reconhecer distintamente que a forma do fenômeno da Vontade, portanto a forma da vida ou da realidade, é, propriamente dizendo, apenas o presente, não o futuro, nem o passado. Estes últimos existem só em conceito, somente em conexão com o conhecimento, na medida em que este segue o princípio de razão. Homem algum viveu no passado e homem algum viverá no futuro. Apenas o presente é a forma de toda vida, mas também sua posse mais segura e que jamais lhe pode ser arrebatada. O presente sempre existe, junto com seu conteúdo. Os dois se mantêm firmes, sem oscilarem, como o arco-íris sobre a queda d’água. Pois à Vontade a vida é certa e segura, e à vida o [361] presente é certo e seguro. Naturalmente, se pensarmos retrospectivamente nos milênios transcorridos, nos milhões de pessoas que neles viveram, perguntaremos: que foram elas? Que se fez delas? Por outro lado, precisamos só evocar o passado de nossas vidas e vividamente renovar suas cenas na fantasia, para de novo perguntar: que foi tudo isso? Que foi feito deles? Como no caso de nossa vida, assim também no caso da vida daqueles muitos milhões. Ou deveríamos supor que o passado alcançou uma nova existência ao receber o selo da morte? Nosso próprio passado, inclusive o dia mais recente e o anterior, é tão-somente um sonho nulo da fantasia; o mesmo é o passado de todos aqueles milhões. Que foi? Que é? A Vontade, cujo espelho é a vida, e o conhecer destituído de volição, que mira claramente a Vontade nesse espelho. Quem ainda não reconheceu isso ou não o quer reconhecer pode acrescentar à questão anterior, sobre o destino das gerações passadas, ainda esta: Por que precisamente ele, o questionador, é tão feliz em possuir este tempo presente precioso e fugidio, único real, enquanto aquelas centenas de gerações de homens, sim, os heróis e os sábios daqueles tempos, naufragaram na noite do passado e assim se tornaram nada, enquanto ele, seu insignificante eu, existe realmente? Ou, de maneira mais sucinta, embora estranho: Por que este agora, seu agora, é precisamente agora, e não foi há muito tempo? Quando questiona tão estranhamente, percebe sua existência e seu tempo como independentes um do outro, e a primeira como lançada no segundo. Em realidade, assume dois agoras, um pertencente ao objeto, outro ao sujeito, e maravilha-se com o acaso feliz de sua coincidência. Em verdade, entretanto, apenas o ponto de contato do objeto, cuja forma é o tempo, com o sujeito, o qual não possui figura alguma do princípio de razão por forma, constitui o presente (como é mostrado no ensaio sobre o princípio de razão). Porém, todo objeto é a Vontade na medida em que esta se tornou representação, e o sujeito é o correlato necessário do objeto. Objetos reais, entretanto, estão apenas no presente. Passado e futuro contêm meros conceitos e fantasmas, por consequência o tempo presente é a forma essencial e inseparável do fenômeno da Vontade. Somente o presente é aquilo que sempre existe e se mantém firme e imóvel, e, empiricamente apreendido, é o mais fugidio de tudo; contudo à mirada metafísica, a ver através de todas as [362] formas da intuição empírica, se apresenta como o único permanente, o Nunc stans [Presente contínuo] dos escolásticos. A fonte e o sustentáculo de seu conteúdo é a Vontade de vida, ou a coisa-em-si – que somos nós. Aquilo que continuamente vem a ser e perece, pois ou já foi ou ainda deve chegar a ser, pertence ao fenômeno enquanto tal, em virtude de suas formas tornarem possível o nascer e o perecer. Em consequência, deve-se pensar: Quid fuit? Quod est. Quid erit? Quod fuit [Que foi? O que é. Que será? O que foi], entendendo-os no sentido estrito do termo, não simile, mas idem. Pois à Vontade a vida é certa, e à vida o presente é certo. Portanto, cada um pode dizer: “Para sempre sou o senhor do presente e ele me acompanhará por toda a eternidade como a minha sombra; por isso não me assombro e pergunto de onde ele veio, e por que ele é, precisamente agora”. – Podemos comparar o tempo a um círculo que gira incessantemente: a metade sempre a descer seria o passado, a outra sempre a subir seria o futuro; porém, acima, o ponto indivisível que toca a tangente seria o presente inextenso. Ora, assim como a tangente não toma parte no movimento circular, tampouco o presente, o ponto de contato do objeto cuja forma é o tempo, toma parte no sujeito, que não possui forma alguma, pois não pertence ao cognoscível, mas é condição de todo cognoscível. Ou: o tempo é como uma torrente irresistível e o presente uma rocha contra a qual ela se quebra, sem no entanto poder arrastar a esta. A Vontade, como coisa-em-si, está tão pouco submetida ao princípio de razão quanto o sujeito do conhecimento, que definitivamente, numa certa perspectiva, é a Vontade mesma ou sua exteriorização. E, assim como à Vontade é certa a vida, seu fenômeno próprio, também é certo o presente, única forma da vida real. Conseguintemente, não temos de investigar o passado anterior à vida, nem o futuro posterior à morte, mas antes temos de conhecer o presente como a única forma na qual a Vontade aparece [citação em latim de Hobbes  , Leviathan, c 46.: “Os escolásticos dizem que a eternidade não é uma sucessão sem começo nem fim, mas um presente contínuo, isto é, possuímos o mesmo presente que foi o presente de Adão; noutros termos, não há diferença alguma entre o presente e o outrora.”]; ele não escapará da Vontade, nem esta, a bem dizer, escapará dele. Nesse [363] sentido, quem está satisfeito com a vida como ela é, quem a afirma em todas as suas maneiras, pode confiantemente considerá-la como sem fim e banir o medo da morte como uma ilusão a infundir-lhe o tolo temor de que poderia ser despojado do presente, ludibriando-o sobre um tempo destituído de presente, parecida com aquela ilusão relativa ao espaço, em virtude da qual alguém fantasia a exata posição ocupada por si no globo terrestre como a de cima, e as restantes como a de baixo. Justamente no mesmo sentido, cada um conecta o presente à sua individualidade e acredita que com esta o mesmo desaparece por inteiro; passado e futuro, assim, existiriam sem o presente. Entretanto, assim como no globo terrestre toda posição é a de cima, também a forma de toda vida é o presente, e temer a morte porque ela nos arrebata o presente não é mais sábio do que temer deslizar para baixo no globo terrestre redondo, a partir do topo, onde felizmente nos encontramos agora. A objetivação da Vontade tem como forma essencial o presente, ponto inextenso que corta o tempo infinitamente em duas direções e permanece firme e imóvel, como um meio-dia sempiterno, sem noite refrescante; como o sol real brilha sem interrupção enquanto apenas aparentemente se perde no seio da noite. Portanto, se um homem teme a morte como seu aniquilamento é simplesmente como se pudesse pensar que o sol se lamentaria diante da noite, dizendo: Ai de mim! Vou me perder na noite eterna” [Nas Conversas com Goethe  , de Eckermann (segunda edição, I, p 154), Goethe diz; “Nosso espírito é um ser de natureza totalmente indestrutível: ele faz efeito continuamente de eternidade a eternidade. É comparável ao sol, que parece se pôr apenas aos nossos olhos terrenos, mas que em realidade nunca se põe, brilhando incessantemente.” – Goethe tomou a comparação de mim, não eu dele. Sem dúvida ele a utilizou nessa conversa de 1824, em virtude de uma reminiscência, talvez inconsciente, da passagem acima escrita, pois esta aparece, com os mesmos termos aqui empregados, na primeira edição de minha obra, p 401, e também ocorre novamente na p 528, bem como na conclusão do §65. Aquela primeira edição lhe foi enviada em dezembro de 1818, e em março de 1819 ele mandou, por minha irmã, uma carta de congratulação para Nápoles, onde então me encontrava. À carta adicionava uma papeleta, onde assinalava os números de algumas páginas que especialmente lhe agradaram. Logo, ele lera o meu livro]. Contrariamente, quem está oprimido pelo peso da vida e ainda assim a deseja e afirma, porém sem [364] aceitar os tormentos dela, em especial sem poder suportar por muito tempo a dura sorte que lhe coube, não pode esperar da morte a libertação, nem pode salvar a si mesmo pelo suicídio. Apenas com aparências falsas lhe seduz o frio e tenebroso Orco, como se fora o porto da paz. A terra passa do dia à noite, o indivíduo morre; mas o sol brilha sem interrupção, eterno meio-dia. À Vontade de vida a vida é certa: a forma da vida é o presente sem fim. É indiferente como os indivíduos, fenômenos da Ideia, parecidos a sonhos fugidios, nascem e perecem no tempo. – Portanto, o suicídio já se nos apresenta aqui como um ato inútil e, por conseguinte, tolo. Quando tivermos avançado ainda mais em nossa consideração, ele aparecerá numa luz menos favorável ainda.


Ver online : O Mundo como Vontade e como Representação Tomo I