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Espinosa (TTP:cap. XVII) – a decisão é sempre própria

quarta-feira 15 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Por muito que a doutrina do capítulo anterior sobre o direito dos soberanos a tudo e sobre o direito natural de cada um, que para eles é transferido, seja compatível com a prática, e por muito que esta possa estar regulamentada de maneira a aproximar-se cada vez mais de uma tal doutrina, é, todavia, impossível que em muitos aspectos ela não se fique pela mera teoria. Ninguém, com efeito, pode alguma vez transferir para outrem a sua potência e, consequentemente, o seu direito, a ponto de deixar de ser um homem. Nem tão-pouco haverá soberano algum que possa fazer tudo aquilo que quer: debalde ele ordenaria a um súdito que odiasse o seu benfeitor ou que amasse quem lhe causou dano, que não se ofendesse com injúrias, que não desejasse libertar-se do medo, e muitas outras coisas semelhantes que decorrem necessariamente das leis da natureza humana. Julgo que a própria experiência ensina isto de forma bastante clara: jamais os homens renunciaram ao seu próprio direito e transferiram para outrem a sua potência em termos tais que deixassem de ser temidos pelos que receberam deles o direito e a potência e que o Estado não estivesse mais ameaçado pelos cidadãos, ainda que privados do seu direito, do que pelos inimigos. Sem dúvida que, se os homens pudessem ser privados do seu direito natural a ponto de não poderem [339] depois fazer senão o que aqueles que detêm o direito supremo quisessem, então seria lícito reinar praticando impunemente as maiores violências sobre os súditos, coisa que julgo não passar pela cabeça de ninguém. Há, por conseguinte, que reconhecer que cada um reserva para si uma boa parte do seu direito, a qual, deste modo, não fica dependente das decisões de ninguém a não ser dele próprio.


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