O Conto da Serpente Verde [1] de Goethe , escrito em 1795, ainda hoje é, de todas as suas obras, aquela que nos deixa mais perplexos.
Integra-se numa obra a que o autor deu o título de Conversas de Emigrantes Alemães. Mas nem o título, nem o teor geral das histórias narradas, ajudam a entender melhor o Conto com que a obra finaliza. Várias histórias são contadas pelos emigrantes uns aos outros, que assim vão matando as horas que têm de passar juntos. A ameaça do invasor francês foi a causa que os reuniu. Mas este pormenor histórico serve meramente de pano de fundo, não condiciona em mais nada os episódios que entre os emigrantes depois vão ocorrendo. Nem chega a modificar a natureza das histórias que são contadas. Estas relacionam-se com o mundo do sobrenatural, ou então pretendem que o leitor delas extraia alguma moralidade. A baronesa de C., viúva de meia-idade, em cuja residência os emigrantes se encontram reunidos, fala com insistência da generosidade de alma que é necessário ter, da capacidade de se sacrificar por outrém, pelo bem alheio, pelo bem comum, ’fuer andere zu leben, fuer andere sich aufzuopfern’, ’viver para os outros, sacrificar-se pelos outros’, eis uma qualidade rara que dificilmente se encontra nas pessoas, [2] diz ela. Algumas das histórias contadas pelo velho sacerdote são como que comentários a esta afirmação. E no Conto veremos como o sacrifício de um pelo bem de muitos é a forma que melhor conduz à auto-realização , à perfeição.
Já para os seus contemporâneos o Conto permaneceu um enigma . O sacerdote que narra a história limita-se a dizer dela que fará lembrar ’tudo e nada’. E Goethe não prestará, como autor, mais esclarecimentos. Numa carta a Humboldt , de 27 de Maio de 1796, afirma que lhe foi difícil ser ’ao mesmo tempo significativo e não dar uma interpretação’ [3]. Reconhece que se trata de uma obra de carácter simbólico, mas nada diz de concreto sobre o seu simbolismo.
Ronald D. Gray em Goethe the Alchemist [4] debruça-se sobre o mistério do Maerchen, que define como um ’conto de fadas, carregado de profecias misteriosas e de fantasias alegóricas, ou simbólicas, de natureza alquímica’. O Maerchen de Goethe, escreve Gray, é o ’rubi sem rival das alegorias alquímicas’.
De fato é para o domínio da alquimia , do seu mundo secreto, arquetípico, que o Conto nos arrasta, logo desde as primeiras páginas.
O sacerdote pede, antes de começar, que lhe deem algum tempo, para que, depois do seu habitual passeio, da raiz da alma lhe possam aflorar à consciência as ’singulares imagens’ que outrora tantas vezes o tinham entretido. [5]
E é à noite que inicia a narrativa.
Que Goethe noutros tempos também se tinha entretido com os mistérios da alquimia , sabemos nós muito bem. Fraeulein von Klettenberg foi a sua iniciadora. Agnès Bartscherer, em Paracelsus , Paracelsisten und Goethes Faust [6] chama a atenção para o fato de Goethe em 1769 ter sido curado da sua longa doença pela ’tintura universal ’ de um sábio paracelsista.
Das obras que leu e meditou durante o tempo desta doença, em Frankfurt, podemos destacar as de Paracelso, (como é lógico, quanto mais não seja devido ao misterioso processo da sua cura ), as de Boehme , a célebre Aurea Catena Homeri, e a não menos célebre Opus Mago -Cabbalisticum de Welling, bem como obras de Christian Rosenkreutz, de Basilius Valentinus , de Agrippa von Nettesheim, de Starkey, van Helmont, etc. [7]
Mas quantas outras obras não poderá ele ter lido, sem que o fato ficasse assinalado? Seja como for, em todas elas determinados símbolos constantemente se repetem, símbolos de que Goethe virá depois a servir-se, e muito explicitamente no Maerchen. Só à luz destes símbolos o conto se deixa desvendar.
Ronald Gray aponta como esquema básico da concepção alquímica ’uma polaridade inicial e um conflito de opostos , caracterizados pela divisão geral do macho e da fêmea, da luz e das trevas, e representando o estado de tensão que existe no mundo da natureza. A esta tensão não se pode fugir , mas ela pode ser vencida pela renúncia a diferenciação pessoal, pela morte do eu. Esta morte é simbolizada ao mesmo tempo como uma rotação e como um regresso à origem das coisas, na qual uma centelha de vida pode ser descoberta. Alimentando-se desta centelha o adepto renasce, identifica-se com Deus , e esta identificação é representada como uma união entre o macho e a fêmea’. [8] Elaborado em conto, transposto para um clima de maravilhoso, este esquema é o esquema do Maerchen.
Os acontecimentos narrados obedecem a uma imprevisível lógica, tão interior como a dos sonhos, e da qual só Goethe verdadeiramente nos poderia dar uma chave completa. Mas não o quis fazer.
As personagens que participam das grandes mutações verificadas no conto surgem de repente, sem serem anunciadas nem justificadas umas perante as outras e menos ainda perante o leitor. E mal surgem misturam-se e intervêm numa ação que está em curso e de que fazem parte integrante, como se conclui pela leitura, embora nada antes tivesse sido dito que o fizesse prever . E logo influem sobre os acontecimentos, e reagem umas perante as outras com a maior das naturalidades, como se tudo já tivesse sido explicado algures (noutro tempo, noutro espaço, noutra dimensão da narrativa) como se tudo fosse por demais evidente , o que não é o caso, e muito menos para o leitor desprevenido. Só mergulhando no mundo do inconsciente, só regressando a um tipo de imagens mais do que ’singulares’ (como disse Goethe) oníricas ou arquetípicas, se pode entender o Conto.
As personagens e os acontecimentos sucedem-se, apontando para uma grande mutação, para uma grande revelação final. Que personagens? Os fogos-fátuos, o velho barqueiro que os atravessa para o outro lado do rio, o próprio rio, a serpente verde, a bela Flor -de-Lis, o gigante, o rei de ouro, o rei de prata, o rei de bronze, e o rei dos três metais imperfeitamente misturados, o homem da lanterna, a sua mulher, o cão Mops, o Jovem, o canário, o Açor, etc. Ainda outros elementos intervêm, como o ouro , a luz , as pedras preciosas, os frutos da terra com que se deve pagar a travessia ao barqueiro e ao rio, o santuário ou templo , em que a serpente penetra e onde se encontram as estátuas dos quatro reis, esperando ’que chegue o momento’ e onde a conjunção final do rei e da rainha terá lugar (quando se cumprir a profecia e o templo surgir das águas) a ponte — tudo elementos de natureza simbólica que vão indicando, à medida que surgem, novas fases do desenrolar da ação.