Se o ternário concerne a din âmica íntima de todo sistema, o septenário é, em Boehme , o fundamento da manifestação de todo processo, em sua riqueza inesgotável. O septenário funciona em contínua interação com o ternário: é precisamente esta interação que fornece a chave de uma compreensão plena da Realidade, pelo menos na visão que nos é proposta por Jacob Boehme.
Para Boehme, «Deus é um deus da ordem ... Nele há principalmente sete qualidades, pelas quais todo ser divino está em atividade . Ele se mostra indefinidamente nas sete qualidades, e no entanto estas sete qualidades estão no primeiro nível na infinidade: é por esta lei que a geração divina é eterna e imperturbavelmente em sua ordem».
Todo processo da Realidade será assim regido por sete qualidades, sete fontes-espíritos, sete etapas, sete formas.
Os nomes que Boehme atribui a estas sete qualidades são poéticos e altamente evocadores, mas podem parecer um pouco ingênuos ou estranhos para um leitor moderno: azedume, doçura, amargura, calor, amor, tom ou som , corpo. Mas o que nos interessa aqui não são os nomes, mas o sentido que Boehme lhes atribui no contexto do ciclo septenário.
Forçado pela língua natural , Boehme adota de imediato uma descrição linear, cronológica destas sete qualidades em seu encadeamento no ciclo septenário, mas sua compreensão passa por uma consideração simultânea de sua ação. As fontes-espíritos se engendram uma a outra, permanecendo distintas. De novo, só uma lógica da contradição pode nos oferecer o acesso à compreensão do septenário de Boehme.
As três primeiras qualidades procedem do primeiro princípio. O Deus do primeiro princípio é, para nós, um Deus impenetrável, inconhecível. Aparece-nos como um Deus das trevas, da noite terrificante, pois insondável. Não podemos nem mesmo verdadeiramente denominá-lo Deus.
Uma luta antagonista da mais alta intensidade se engaja entre as três primeiras qualidades para permitir a este Deus das trevas se conhecer potencialmente ele mesmo. A primeira qualidade vai corresponder assim a uma força negativa, de resistência, a um fogo frio , respondendo ao desejo de Deus das trevas de permanecer o que é, independente de toda manifestação. A segunda qualidade vai corresponder a uma força positiva, fluida, tendendo à manifestação e logo radicalmente oposta à primeira qualidade: ela é como um «picador furioso». Enfim, a terceira qualidade aparece como uma força conciliadora sem a qual nenhuma abertura para a manifestação ser á possível. O deus do primeiro princípio vai se engajar assim em uma luta gigantesca com ele mesmo. Berdiaeff fala com razão de uma «tragédia divina» no mistério da criação. Trata-se simplesmente da morte de Deus a si mesmo enquanto Deus da pura transcendência: «O Deus de Boehme morre antes de nascer» (Pierre Deghaye ).
A luta sem trégua entre as três primeiras qualidades engendra uma verdadeira «roda da angústia». O mundo da primeira tríade do septenário é um «vale tenebroso», um inferno virtual. Boehme fala de um «parto angustiante, assustador, estremecedor, acre e em oposição». Algo deve se passar para permitir a este «parto», a passagem à vida, à manifestação.
É precisamente este ponto, quando a roda da angústia gira loucamente sobre ela mesma, em turbilhão caótico, infernal, que um princípio de descontinuidade deve se manifestar, para abrir a via do verdadeiro movimento evolutivo. Este princípio de descontinuidade não é outro senão o terceiro princípio, que aparece como o Fiat da manifestação, o verbo criador de Deus. Boehme chama esta descontinuidade o «relâmpago»: «Todos os sete espíritos, sem o relâmpago seriam um vale tenebroso...». O movimento louco da roda da angústia se detém para se transformar no movimento harmonioso. É agora que a vida pode nascer, que Deus nasce. O Fiat da manifestação, engendrado pelo terceiro princípio, faz parte integrante (mesmo se é virtual, pois corresponde a uma descontinuidade invisível sobre o plano da manifestação) da segunda tríade do clico septenário, compreendendo igualmente a quarta e a quinta qualidade: «Agora estes quatro espíritos ou estas quatro qualidades se movem na relâmpago. Pois estão vivos todos os quatro. Ora o poder destes quatro se eleva no relâmpago, como uma vida, que está em seu primeiro grau de ascensão; e o poder que se elevou no relâmpago é o amor. Eis aí o quinto espírito. Este poder ferve com delícias no relâmpago, como se um espírito morto se tornasse vivo, e fosse posto subitamente em uma grande claridade». O fato que a quarta e o quinta qualidade são intimamente ligadas ao relâmpago, e portanto ao terceiro princípio, é aqui claramente afirmada.
O fogo frio da primeira tríade se transforma assim no fogo quente de onde pode brotar a luz : «A quarta propriedade desempenha assim o papel de placa giratória ou de pivô de transmutação de todo o sistema...» — escreve Jean-François Marquet. Seremos mais tentados a dizer que esta placa giratória se situa no intervalo entre a terceira e a quarta qualidade, pois é aí que age o Fiat da vida, da manifestação.
Mas «nascimento» não quer dizer manifestação plena da luz. Com a segunda tríade, Deus nasce, toma conscientidade dele mesmo, mas não se manifesta ainda plenamente. Um segundo princípio de descontinuidade deve intervir para que o movimento evolutivo possa prosseguir. O Fiat de afirmação, de luz plenamente revelada, o Fiat celeste é necessariamente a ação do segundo princípio. «O segundo Fiat se situa no quinto grau» — afirma com justeza Pierre Deghaye. Mais precisamente encontra-se no intervalo entre a quinta e a sexta qualidade.
A intervenção do segundo princípio engendra uma nova tríade da manifestação (tríade, pois cada princípio deve se submeter a sua própria estrutura ternária). Esta última tríade é composta de três elementos: um elemento virtual (a descontinuidade engendrada pelo segundo princípio) e duas qualidades: «o tom» ou «o som» e «o corpo».
A sexta qualidade é aquela da alegria celeste, como um som de alegria que atravessa toda a manifestação: «O sexto engendramento em Deus, tem lugar quando os espíritos se saboreiam assim uns aos outros em sua geração...; ... é por aí e nisso que a alegria ascendente se engendra, e daí o resulta o tom. Pois é do tocar e da mobilidade que o espírito vivo se engendra, e este mesmo espírito porque através de todo os engendramentos; ele penetra suavemente, agradavelmente como uma deliciosa música, e quando o engendramento se opera, apreende a luz, e a pronuncia de novo na geração, por meio do espírito em movimento. É ao nível da sexta qualidade que Boehme situa a linguagem, o «discernimento », a «beleza».
Quanto a sétima qualidade, ela corresponde à manifestação plena, ao «corpo» de Deus, que não é outro senão a natureza ela mesma: «Ora, a sétima forma, ou o sétimo espírito na potência divina é a natureza, ou a expansão fora de seis outros... Este sétimo espírito é o corpo de todos os espíritos, no qual estes se engendram como em corporização. Também é deste espírito que todas as configurações e todas as formas tomam seu caráter...». O sétimo espírito «guarda os seis outros, e os engendra por sua vez; pois o ser corporal e o natural existe no sétimo». O círculo se fecha: a sétima qualidade junta-se à primeira, mas em outro plano, aquele da manifestação. A linha se metamorfoseia em círculo: paradoxalmente, na filosofia de Jacob Boehme, o Filho dá nascimento ao Pai.