O mais antigo, o mais completo e o mais importante dos relatos que compõem a Bíblia das Origens, o relato dito do Jardim do Éden ignora o verbo “Criar”. O que explica talvez que o “compilador final” deste documento o tenha feito preceder no texto pelo relato mais recente Relato dos Seis Dias, como de um léxico para facilitar a leitura, notadamente no que concerne a natureza do Homem . O único termo comum entre estes dois relatos que tratam do mesmo evento fundador é com efeito o criar homem.
Certamente o relato do Jardim do Éden vai mais longe e ainda mais profundo sobre o que o Relato dos Seis Dias denomina a Criação do Homem. Posto que junta o episódio da “Queda”, que nos ensina o que o Homem efetivamente “fez” da obra de Deus, a ele confiada, e de sua liberdade, com todas as consequências que dela sofremos na “condição humana”. Mas sobre o evento ou melhor o advento que fundou de uma vez por todas a natureza do Homem o Relato dos Seis Dias oferece a vantagem duvidosa de óculos que permitem melhor ver o que se poderia melhor ver sem, se pelo menos se pudesse evitar. Suas definições, suas precisões semânticas não têm a força sutil e imediata das alegorias “terrenas” do relato do Jardim do Éden, mas elas podem nos ajudar a “pô-las ao ponto”, a delas descobrir o sentido perdido para nossa mentalidade mais e mais citadina sem a bruma espessa da interpretação moralizante destes relatos, imposta desde milênios pela tradição tanto judia como cristã.
Esta tradução moralizante se acomoda muito bem na confusão das categorias , introduzida pela Septuaginta em todas as traduções de nossas bíblias, e que tentei dissipar no que concerne às noções de “fazer” e “Criar” no sentido bíblico, cuja distinção é tão importante para uma justa compreensão do Relato dos Seis Dias. Mas há uma outra confusão não menos grave que a Septuaginta operou — e que a Vulgata não tentou corrigir — traduzindo pela mesma palavra “ge” (“terra ” em grego) dois termos hebreus que se opõem ao longo destes dois relatos e em particular neste do Jardim do Éden.
Os dois termos aparecem lado a lado desde as primeiras desde as primeiras frases do relato do Jardim do Éden, que foram redigidos de maneira excepcional em relação ao conjunto da Bíblia das Origens. Seu regime sintáxico não é nem narrativo nem acontecível, e os situa na esfera da reflexão que precede ao início da execução do projeto divino que vai se seguir. A terra é ainda árida, sem chuva, sem vida (equivalente do “tohu-bohu” do relato posterior dos Seis dias) e YHWH Deus parece hesitar uma última vez antes de se lançar na aventura muito arriscada que vai concluir no advento de um ser livre, que ele imagina já em obra.
Mas atenção este ser livre hipotético não é ainda o Homem!
E é como consequência “lógica” a temer de um tal ser hipotético (que não mais existirá) que surge subitamente na Bíblia das Origens o termo que a Septuaginta traduzirá por “ge” terra em grego) justo depois de três outros “ge” significando, eles, verdadeiramente a terra nas frases precedentes. A terra Criada por Deus, enquanto não é necessário ser hebraizante para compreender que a dita consequência a temer não pode ser. (A princípio a Bíblia das Origens não diz jamais que ela o é).
Ela não é e não pode ser porque a palavra que a designa indica suficientemente em hebreu de quem ela é a emanação , a produção, o fantasma. Ou de quem todavia (posto que se trata de uma hipótese) Deus pode temer que ela se torne o fantasma, se ele dá vida a seu autor que só faz imaginar. Esta palavra em hebreu é “adama”. Derivada direta de “adam”.
O prólogo da história do Jardim do Éden evoca esse hipotético “adam” de uma forma muito negativa. Uma primeira vez atribuindo a YHWH o pensamento : "Nenhum adam, nenhum culto a ser temido da adama" (2, 5). E uma segunda vez na forma de um embrião de “adam”. Este é o significado na minha opinião de um "hapax" (palavra única na Bíblia) que nossas Bíblias traduzem como "vapor", mas que está escrito ’D (as duas primeiras letras de ’DM "adam") em uma frase onde YHWH é suposto "trazer da terra" como um mecromante um fantasma, este ’D, cuja "aparência" é suficiente para "fazer brilhar todas as miragens do adama" (2, 6). Em outras palavras, mesmo no estado embrionário, “pré-hominiano”, desse “adam” já emanariam todas as pretensões dessa “adama” que Deus teme e quer evitar para ele.
E será por acaso que a única "adama" da história dos Seis Dias (cronologicamente posterior à história do Jardim do Éden) aparece ali pouco antes (1.25) da menção desse hipotético "adam" (1.26) paralelo a aqueles — que são os mais antigos — de 2,5 e 2,6?
Então YHWH renuncia a fazer mais do que imaginar este “adam”. O texto sai da esfera da reflexão e volta à sua sintaxe normal para nos ensinar o que já sabíamos da leitura do conto anterior (que sendo mais recente é aliás a confirmação em termos mais “modernos” deste). Passando ao ato e do indeterminado ao determinado, Deus não "deixa de lado" o ser livre que projeta pela simples din âmica de sua Criação como efetivamente fez para os animais terrestres, e pretendeu, ao que parece, fazê-lo também em um nível superior para este “adam”, mas ele cria o homem.
Esse salto qualitativo é expresso, é verdade, na história mais antiga do Jardim do Éden por um verbo diferente de "Criar", mas é o Homem que é o mesmo complemento de objeto. E para o “compilador final” das duas histórias, reunidas por ele à frente da Bíblia das origens, os dois textos paralelos sobre o mesmo evento não podem se contradizer. Portanto, é não apenas aconselhável, mas essencial compará-los ponto a ponto, para entender o que às vezes se tornou obscuro para nós por culpa da tradição na língua, porém, a mais universal que é aquela, não urbana e, portanto, não bucólica, mas mais profundamente inteligente e mais imediatamente evocativa da história do Jardim do Éden.
Assim, a tradição persiste em fazer crer que o verbo Y(TS)R (pronuncia-se "yatsar") que serve como sinônimo de "Criar" (mesmo que não tenha sua especificidade) na história do Éden é inseparável do gesto do oleiro, daí a completa má interpretação do "Deus-oleiro modelando o contorno humano".No entanto, as duas outras atestações da raiz Y(TS)R na Bíblia original (Gn 6, 5 e 8, 21) confirmam que antes de se referir a qualquer trabalho manual, mesmo simbólico, conota um trabalho da mente ou imaginação . A tradução mais apropriada de Y(TS)R em 2, 7 é, portanto, “conceber”.